O rio que me corta por dentro de Raul Damasceno

O rio que me corta por dentro, romance de estreia do escritor cearense Raul Damasceno (Astral Cultural, 2025) é um livro sensível e que nos prende desde a primeira página. Em um vilarejo chamado Carrasco, nas entranhas do sertão, conhecemos as famílias de Cícero e Luzimar, dois garotos que são unha e carne e que vão descobrindo que seus sentimentos um pelo outro são mais intensos do que a cultura daquele lugar permite.

Um era a correnteza do outro neste rio profundo em que o pé nunca alcançava o chão.


Criando uma atmosfera que nos faz sentir moradores de Carrasco, Raul Damasceno nos torna vizinhos de Cícero, Luzimar, Aneci, Zulmira, Nonato, Rosa, Chico Meteoro, Toin, entre outros personagens que são a pura magia do Brasil profundo.

Essa magia se movimenta através da escrita, onde o autor utiliza de maneira poética dos regionalismos que nascem das crenças, das falas, do sotaque e da cultura do sertão cearense. Raul utiliza de elementos tão familiares da nossa cultura, que algumas passagens evocam lembranças, cheiros e sensações.

Sábado à tarde. Nonato tomava banho com sabonete Senador; vestia camisa branca de abotoar e penteava o cabelo em frente ao espelhinho de moldura alaranjada. Depois de um gole de café, saía pedalando a bicicleta Monark vermelha. Com o cheiro da alfazema impregnado, era certo que ia ao Gogó da Ema.
Nos últimos anos, temos visto uma efervescência de histórias que voltaram seu olhar para a beleza do cotidiano e das pessoas ditas comuns. O que podemos perceber é que esse transitar pelas histórias nunca, ou pouco contadas é um caminho sem volta. Quanta beleza existe no cotidiano e nas pessoas que nos rodeiam? Quanta beleza existe nas vivências historicamente invisibilizadas? É uma resposta que vai sendo respondida a cada vez que uma narrativa como a de Raul Damasceno é escrita.

Carrasco poderia ser um vilarejo qualquer, de uma cidade qualquer, mas aqui o lugar ganha um status grandioso, exatamente porque parte da sua simplicidade. Cada história, de cada personagem, nos permite perceber que cada pessoa é um mundo a parte, dotado de características, dores e anseios que nos fazem ser quem somos e estar onde estamos.

Cícero, nosso narrador, está situado no lugar da espera. Sua mãe Aneci, como muitas mulheres de luta, precisou ir para a cidade grande tentar uma vida melhor e sempre volta uma vez por ano para visitar o filho que ficou aos cuidados dos avós. Apesar de ser bem cuidado onde vive, o menino sonha com o dia em que sua mãe o levará embora com ele, mas a cada Natal a mãe vem com seu “cheiro de hidratante e perfume dos bons” e depois parte deixando apenas saudades.

À noite, ouvindo Zezé e Luciano cantar baixinho “Me leva pra casa’, a saudade fazia um nó apertado no peito de Cícero. Apertava não saber nada sobre a mãe. Apertava quando os vizinhos perguntavam a respeito dela. Apertava ouvir Nonato chamá-la de rapariga sempre que chegava bêbado em casa. Apertava tanto que doía. Parecia que nem futuro existia mais. Tudo era tão distante neste sertão imenso.
Enquanto vive em estado de espera, Cícero divide a vida com seu amigo Luzimar. De forma bonita e um tanto conturbada, os dois vão descobrindo seus desejos e o amor brota de forma tão natural quanto o dia que vira noite.

Ao som da correnteza, com o sol queimando as nucas. Luzimar não queria falar nada. Ter Cícero ao seu lado já bastava. Não era preciso esticar o braço para um tocar no outro. Não era preciso dizer palavra para saber o que sentiam. Os olhos de Luzimar nos de Cícero. Seus corpos, perto demais, ameaçavam explodir. Todos os desejos e sentimentos se condensavam. Cícero não estava disposto a seguir lutando contra os desígnios carnais. Enfrentaria o que tivesse de enfrentar, pagaria o preço que fosse cobrado por seu ato, mas queria guardar Luzimar num abraço, cuidá-lo.
Os dois conhecem a cidade como a palma da mão, tem como lugar preferido a base de um velho cajueiro, que se torna cúmplice das conversas de Cícero e Luzimar, assim como o rio que corta a cidade. O rio é também um personagem e que pode ser interpretado como o próprio decorrer do tempo e da vida. Enquanto os fantásticos personagens da obra vivem as mais diversas felicidades e tristezas, o rio segue seu curso de forma incólume, ainda que carregando vida e morte.


Hospício é deus: diário I da Maura Lopes Cançado

Hospício é deus: diário I da Maura Lopes Cançado (Companhia das Letras, 2024) é um livro autobiográfico, onde a autora relata suas experiências após passagem por diversos hospitais psiquiátricos. Com um texto poético, visceral e também realista, Maura retrata a dura realidade dos chamados “hospícios” do início dos anos 60. Ao registrar seus dias em forma de um diário, a autora compôs uma obra que é ao mesmo tempo um exercício literário potente e uma denúncia sobre a forma como enxergamos e tratamos o tema da loucura. É uma obra que além de seu valor literário, também serve como norte para discutirmos sobre o contexto de uma época de manicômios e práticas psiquiátricas violentas.



Além de ser um relato íntimo, o livro chama a atenção pela sua forma. Nos vemos diante de um diário que mescla o texto de testemunho e autobiográfico com reflexões filosóficas. Maura possui um olhar sobre o todo que é instigante, onde não sabemos mensurar o que é parte da sua loucura e o que é parte de quem Maura é em sua essência.

A obra inicia com um relato que é fundamental para entendermos quem é Maura Lopes Cançado. A autora fala sobre sua infância em São Gonçalo do Abaeté, no interior de Minas Gerais, em uma época onde sua família era a mais rica e influente da região. É onde também conhecemos a relação de Maura com a própria família e principalmente com seu pai, figura com a qual possuía uma relação de amor intensa. Maura diz que se “não fosse a limitação do seu meio, seria o maior homem do mundo”.

Nasci numa bela fazenda do interior de Minas, onde meu pai era respeitado e temido como o homem mais rico e valente da região. Fui uma criança bonita, todos dizem, e sei pelos retratos. Há sete anos mamãe não tinha filhos quando se deu meu nascimento. Daí tornar-me objeto de atenção de toda família e orgulho de meu pai.
Desde a infância Maura se mostrava uma criança singular. Possuía uma saúde um tanto frágil, o que aumentava a vigilância de seus pais, como também já na infância demonstrava algumas atitudes e pensamentos que denunciavam o adoecimento de sua saúde mental. Maura diz em seu diário que “como criança, foi excessiva”. E o excesso será o tom de tudo em sua vida.

Movia-me num mundo que desprezava, por que ligar às convenções desse mundo?
Algo muito interessante das reflexões de Maura, é que, ela própria, possuía uma clareza muito forte de sua própria loucura, a ponto de se internar por vontade própria. A cada sentimento estranho, medos e paranoias quase inexplicáveis, ela utilizava da ajuda da escrita para pensar sobre a sua própria loucura de uma forma que nos assombra, pois é repleta de lucidez e contradiz o que o senso comum diz sobre os “loucos”.

Desde menina experimentei a sensação de que uma parede de vidro me separava das pessoas. Podia vê-las, tocá-las – mas não as sentia de fato. Acontecia ser tomada de tão grande pânico que corria para mamãe e papai, agarrava-me a eles, os objetos se me distanciavam, percebia modificações nas coisas – e não sabia explicar.
Um outro ponto característico da obra está na forma como a escritora produz uma narrativa que soa fragmentada e entrecortada. Maura pode opinar sobre um assunto em uma linha, para na seguinte já se colocar a contradizer tudo o que foi dito. É como se a sua escrita acompanhasse com fidelidade o seu fluxo de pensamento que, por vezes, estava à mercê de medicamentos e da violência diária do hospital.

A escrita de Maura, aliada a suas vivências e a uma inteligência admirável, nos leva a refletir sobre os limites ou as interseções entre loucura e lucidez. Na maior parte do tempo, Maura se apresenta como uma mulher completamente consciente, sã e com um olhar crítico sobre o mundo.

Não aceito nem compreendo a loucura. Parece-me que toda a humanidade é responsável pela doença mental de cada indivíduo. Só a humanidade toda evitaria a loucura de cada um.

Suas reflexões e provocações garantem trechos memoráveis sobre temas como a representação dos manicômios, sobre questões de subjetividade e identidade e até sobre dimensões existenciais e religiosas.  

Amar a Deus? Deus, meu pai? Ora, a meu pai eu abraçava, pedia coisas, tocava. Como podia ser meu pai um ser de quem só tinha notícias - além de tudo terríveis? Minhas relações com Deus foram as piores possíveis - eu não me confessava odiá-lo por medo da sua cólera. Mas a verdade é que fugia-lhe como julgava possível - e jamais o amei. Deus foi o demônio da minha infância. 
É bonito e humano rezar. Também não creio em nenhum deus, não creio nas divindades para as quais se reza. Rezo pela poesia da oração. Rezo para sentir-me próxima de meus semelhantes, ao fazer o mesmo pedido, ao externar a mesma necessidade. Eu rezo porque amo - é para mim o meio de comunicação.

A escrita e a vida de Maura Lopes Cançado sofreram um processo cruel de apagamento. Maura foi de membro influente da elite e da família tradicional mineira para uma total desconhecida após seus episódios de internações e demais desdobramentos de seu adoecimento mental. Uma mulher que escrevia para um dos maiores jornais do país, teve seu texto enterrado juntamente com sua história. Por isso é justo e necessário ver sua obra sendo redescoberta, pois Maura evoca temas importantes sobre saúde mental e direitos humanos.

Verão de lenço vermelho de Elena Malíssova e Katerina Silvánova

Verão de lenço vermelho da russa Elena Malíssova e da ucraniana Katerina Silvánova (Editora Seguinte, 2024) é um romance que explora as emoções do primeiro amor em plena adolescência. Iura e Volódia se conhecem durante um acampamento de férias, onde Iura é um pioneiro um tanto rebelde e Volódia é um dos monitores e a própria encarnação da responsabilidade. É exatamente essa diferença que irá servir como imã e o mundo dos garotos irá colidir de forma intensa. Estamos nos anos 80, em plena União Soviética, em uma região onde hoje se encontra a Rússia. A homoafetividade além de ser vista como desvio de caráter e doença, também era algo do qual não podia se falar. Em momentos furtivos e em lugares escondidos, os garotos irão construir um vínculo que mudará para sempre suas vidas, pois estarão à mercê da falta de liberdade pessoal e diante de uma opressão institucionalizada.


O livro começa vinte anos a frente dos acontecimentos que serão relatos. Iura é um homem adulto, tentando localizar a região onde antes existia o acampamento Andorinha. A União Soviética já não existe mais e o local do acampamento se encontra em ruínas e com vestígios de que se tornará um condomínio residencial. Conforme caminha pelos lugares marcantes de sua infância e adolescência, Iura começa a nos contar a história que vivera ali.

Iura invade o local onde era o acampamento Andorinha, e enquanto reconhece os espaços através dos escombros e da escuridão, vai juntando os pedaços de suas próprias memórias e nos transportará para o verão de 1986.

No entanto, ao frear perto da placa de entrada familiar – apagada, capenga e com as letras quase ilegíveis -, Iura se deparou com o que mais temia. Da cerca metálica que antes se estendia por todo o perímetro, sobravam apenas os postes de ferro; nem as hastes, nem os gradis haviam sobrevivido. Os bonitos portões vermelhos e amarelos, quase majestosos, estavam quebrados: uma das portas mal se segurava nas dobradiças enferrujadas e tortas, a outra jazia ali ao lado, coberta pela grama que crescia, pelo jeito, havia mais de um ano.
O acampamento andorinha é algo parecido com o que conhecemos por aqui como escoteiros. Um lugar bonito, cercado por mata, com um rio que passa por perto, com atividades e todo projetado para estimular o desenvolvimento e a interação entre os jovens. Tudo isso em prol de cultivar noções de amadurecimento, responsabilidade e no período em questão, representava também uma forma de fidelizar as próximas gerações ao regime da União Soviética.

Os pioneiros... Lenços vermelhos, ginástica, formações em fila, banhos de rio e fogueiras - fazia tanto tempo. Na época da União Soviética, os pioneiros eram tipo escoteiros. A gente aprendia os valores comunistas e da vida em comunidade e participava de atividades cívicas, jogos, brincadeiras e acampamentos. Todo mundo sabia que uma criança era pioneira por causa do lenço vermelho no pescoço, seu bem mais precioso.
Assim como nos anos anteriores, Iura chegou para mais uma temporada no acampamento sem grandes expectativas. Participar daquelas atividades era algo que realizava mais por obrigação do que por gosto. Inclusive, Iura era conhecido no acampamento por seu temperamento rebelde e sempre recebia algum tipo de castigo durante a temporada, mas naquele ano, sua atenção foi capturada pelo monitor Volódia.

À direita do mastro da bandeira, rodeado pelas crianças da tropa cinco, estava o novo monitor. De short azul-escuro, camisa branca, lenço vermelho e óculos. Devia estar na faculdade, provavelmente no primeiro ano, era o monitor mais jovem e o mais tenso. O vento aromático acariciava seus cabelos, que escapavam de debaixo do barrete escarlate, as pernas brancas tinham manchas vermelhas (recentemente coçadas) de picada de mosquito, e seu olhar concentrado passeava entre os cocurutos das crianças, os lábios murmurando: - Onze, doze, ter... treze.
O processo de apaixonamento dos garotos é tratado de forma bonita, lenta e sensível. Devido ao contexto em que a história se passa, onde a homossexualidade não era nem um assunto, Iura demora a entender realmente o que passa a sentir por Volódia e apenas obedece a uma espécie de instinto e vontade de estar sempre por perto.

Estava começando a gostar de Volódia de verdade. E, ao pensar no que significava a palavra gostar, Iura ficava meio confuso. Era estranho, porque gostar queria dizer que existia um sentimento de simpatia e afeição, que não era bem o que ele sentia em relação ao monitor. Assim, sem saber como explicar a si mesmo o que sentia, chamava aquele sentimento de “vontade de fazer amizade”, ou até “grande vontade de fazer amizade”. Nunca havia acontecido algo do tipo com Iura.
“Verão de lenço vermelho” é um romance juvenil que consegue tratar de temas importantes, como homofobia e repressão política. Ao ambientar a história em um acampamento soviético, em um período que a própria URSS já caminhava para seu declínio, as autoras demonstram o poder da repressão cultural através da personalidade de cada um dos personagens e da sua forma de ver o mundo.

Iura é um garoto que se permite mais, que questiona ordens arbitrárias e precisa entender o porquê das coisas, enquanto Volódia foi moldado a seguir as regras, a ser um garoto exemplar. Essa visão de mundo é transportada para os afetos, pois enquanto Iura quer viver o amor da forma que será possível viver, Volódia cede ao medo e ao discurso da homossexualidade como doença e passa a ver as terapias de conversão como uma possibilidade.

Quando foi publicado e instantaneamente se popularizou na internet, a obra foi censurada na Rússia, país que possui leis retrógradas contra a comunidade LGBTQIAPN+. Políticos conservadores alegaram que o livro “desfigura a ideia do que era a União Soviética”, “promove valores ocidentais” e contém “propaganda LGBT”. Leis sancionadas pelo presidente russo tornam ilegal o que eles chamam de “propaganda gay”, que seria a divulgação de informações sobre relacionamentos LGBTQIAPN+ à qualquer cidadão do país através da internet, mídia, livros, serviços audiovisuais, cinema e publicidade. 

As autoras de “Verão de lenço vermelho” Elena Malíssova e Katerina Silvánova, tiveram que abandonar o país por conta das ameaças que passaram a receber e da ampliação das leis homofóbicas. Com isso, “Verão de lenço vermelho” se tornou um símbolo de resistência, ainda que não possua nada de transgressor em suas páginas, além de uma descrição delicada da descoberta do amor. Esse fato, só demonstra o quanto a literatura pode ser um instrumento poderoso de resistência à repressão política.

Tormenta na Vila dos Tecidos de Anne Jacobs

Tormenta na Vila dos Tecidos da Anne Jacobs (Arqueiro, 2025) é o quinto volume da série “A Vila dos Tecidos”. A saga acompanha a história da família Melzer, que vive em uma grande mansão conhecida como Vila dos Tecidos e são donos de um conglomerado têxtil em Augsburgo na Alemanha. Do primeiro volume para cá, acompanhamos as conquistas e as perdas da família através dos tempos, onde não só o amadurecimento de cada personagem dita a narrativa, como também as grandes mudanças sociais do século.


Em “Tormenta na Vila dos Tecidos” vemos uma nova geração da família Melzer no centro da história, como por exemplo, os filhos de Paul e Marie, que estão na faixa dos 19 anos de idade. O mundo que Paul e Marie conheciam se tornou outro e esse choque geracional ajuda a dar o tom da obra. Vemos o desenrolar das significativas mudanças políticas da Alemanha do pós-guerra, como também o processo de emancipação das mulheres, que começam a se vestir com mais liberdade, a explorar seus desejos e ocupar cargos que eram exclusivos para homens.

Nesse ponto da história, temos uma narrativa envolvente e ao mesmo tempo bastante tensa. O ano é 1935 e o Partido Nacional-Socialista está ganhando força na Alemanha após um período de grave crise econômica. É angustiante a forma como a autora vai nos inserindo, aos poucos, no clima de medo e repressão que toma conta do país. De repente, suásticas são avistadas por todas as partes, assim como a imagem de Adolf Hitler. O seu próprio nome se tornou uma saudação obrigatória, onde todos aqueles que não a proferiam, eram automaticamente considerados inimigos do partido.

Existia algum lugar no mundo para os exilados? Um país no meio do nada, flutuando entre o céu e a terra e onde pessoas de todas as nações e de todas as cores convivessem amistosamente umas com as outras?
Logo, a descendência judaica de Marie, passa a ser motivo de preocupação. O partido nazista iniciara seu plano de perseguição ao povo judeu e o afastamento das pessoas de origem judaica, assim como qualquer tipo de contato afetuoso e financeiro, passa a ser encorajado. Marie, é a primeira da família Melzer, a perceber o perigo que o nazismo representava, inclusive para sua existência, e o abandono de sua própria pátria passa a ser a única alternativa.

Não era turista e não estava visitando parentes. Mas planejava abandonar seu lar por um longo tempo e tornar-se americana. Não estava fazendo aquilo por livre e espontânea vontade, mas porque era judia. Porém, não se sentia particularmente ligada aos muitos imigrantes judeus no navio, mesmo que dividisse aquele destino com eles. Ela era judia porque três de seus avós tinham sido judeus. Mas ela própria nunca se enxergara como tal até então. Não conhecera seus avós, seu pai também morrera antes de ela nascer, e só tinha uma lembrança distante de sua mãe que desvanecia cada vez mais com o passar dos anos. Fora criada de forma cristã no orfanato, e nunca ninguém lhe dissera que era judia. Marie se sentia estranha, solitária entre aqueles dois mundos, não pertencendo a nenhum deles, e perguntava-se com amargura qual seria de fato a diferença entre um alemão “ariano” e um alemão “judeu”, já que, até então, eles tinham convivido todos juntos e tinham lutado lado a lado pelo mesmo país na guerra.

A família Melzer passa então a lidar com diversos dilemas morais. São vigiados de perto pela GESTAPO, a polícia política do estado nazista e Paul, precisa decidir até onde está disposto a abrir mão de suas convicções para salvar a tradicional fábrica de tecidos e proteger sua família.

Setembro negro de Sandro Veronesi

Setembro negro, do escritor italiano Sandro Veronesi (Autêntica Contemporânea, 2025) é um romance de formação, onde acompanhamos os sentimentos e as descobertas do jovem Gigio Bellandi. Em pleno verão de 1972, na Versilia, noroeste da Toscana, na província de Lucca e com apenas 12 anos de idade, nosso narrador constrói uma teia de acontecimentos que entrelaçam a formação e o amadurecimento de Gigio com a cultura e os fatos políticos que fizeram desse ano um período singular.


O livro começa com um ritmo lento que obedece à necessidade do narrador de deixar muito bem demarcado de que lugar Gigio fala. Ele é apenas um garoto de férias e que está vivendo o rito de tratar cada descoberta da vida com a intensidade que os adolescentes o fazem. Gigio achou que aquele verão seria apenas mais um verão agradável como os demais, mas seria um verão que mudaria para sempre sua vida e de sua família.

O pulo do gato da obra, está na maneira como Gigio narra sua própria biografia. Ele vai montando uma colcha de retalhos, através de um passeio pelo tempo e pelas suas próprias memórias. Nesse ponto, Veronesi utiliza das diversas possibilidades que um autor possui em mãos através da exploração da memória. Toda a narrativa é construída com aquilo que Gigio se lembre, mas também com aquilo que pode ser uma mera projeção de um homem adulto tentando se reconectar com quem era aos 12 anos de idade.

Faço bem em recordar, em reconstruir. Quanto mais o faço, mais consigo ver o menino que eu era, e vê-lo vale muito mais que sabê-lo, para mim, que estou tentando dizê-lo.

A obra versa sobre temas como a formação e a perda da inocência, através de acontecimentos que fogem ao nosso controle. O passar da infância para a vida adulta é representado através de um trauma que irá expulsar Gigio da sua rotina sem aviso prévio e que irá moldar o adulto que irá se formar.

Para começar a contar esta história, preciso falar dos meus pais. Naquela época, eles eram os guardiões da minha serenidade, e isso significa que eram bons pais.

Os capítulos iniciais do livro se dedicam a nos mostrar quem é o garoto Gigio e sua família, que é composta por ele, sua irmã e seus pais. É onde também acompanhamos o florescer de seus desejos, através do encantamento da primeira paixão. Ao lado de Astel, Gigio vive diversas emoções característica da sua idade, que são entremeadas de muita música e literatura. Seu tio Gigio, também é uma figura que nos ajuda a ambientar na narrativa. Ele é um exemplo de como algumas figuras afetivas podem se tornar um marco de nossa infância e servirem como um farol, um ponto de encontro que separa nossas vidas em eras diferentes.

Se até aqui contei todas essas pequenas coisas, não é porque as considere importantes em si – sei muito bem que não são -, mas para que vocês se deem conta de quem eu era naquela época e do que era composta minha vida, no auge da minha infância, ou melhor, um pouco mais além, aos doze anos, no verão de 1972; e, assim procedendo, esforçando-me para recordá-lo e narrá-las a vocês, também me dou conta disso.

Paralelamente a todo o processo de amadurecimento de Gigio, o contexto social da época é explorado de forma interessante. Gigio era apaixonado por esportes e acompanhava com muita empolgação o início das Olimpíadas de Munique, evento que ficaria marcado por um triste atentado terrorista, também conhecido como Setembro negro.


Sandro Veronesi escreve de forma magistral, e durante toda a obra, evoca sensações e interpretações sobre o contexto da obra, através da exploração de cores, sons, cheiros e imagens de uma infância bem vivida e que não volta mais. A obra explora as memórias de Gigio e cresce ainda mais ao demonstrar a força das memórias coletivas.

 

Não fossem as sílabas do sábado de Mariana Salomão Carrara

Não fossem as sílabas do sábado da Mariana Salomão Carrara (Editora Todavia), ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura, é um romance que demonstra, mais uma vez, a capacidade da escritora em contar histórias com teor altamente emocional, ao mesmo tempo em que explora palavra e narrativa. Mariana possui um jeito muito peculiar de escrever, fato que a coloca entre os principais nomes da literatura brasileira contemporânea. Certa vez, a poetisa Adélia Prado, ao refletir sobre a dificuldade de manter o olhar poético perante a realidade, escreveu que às vezes "olho pedra e vejo pedra”. A Mariana Salomão em “Não fossem as sílabas do sábado” olha para um acontecimento dramático e trágico, e surpreendentemente, continua a ver poesia. Ainda que, por vezes, seja a poesia mais cortante que você possa ler.


Mas é importante para as tragédias que elas sejam descobertas imediatamente, porque cada segundo que elas passam ocultas vira um ano a mais de luto, isso é um capricho que as desgraças têm.
Na história conhecemos a Ana, uma arquiteta com uma vida estável e com um casamento feliz que tem sua rotina transformada por uma queda. Ana esperava impacientemente seu marido André encontrá-la a poucos quarteirões do prédio em que moram, para ajudar a carregar uma moldura para casa. Ao mesmo tempo em que André saía apressado do prédio, Miguel, um vizinho que morava ali pelo décimo andar, pulava de sua janela para uma morte que deveria ser apenas dele, mas que o acaso quis que não fosse.

De um segundo para o outro, Ana se vê viúva e sua vida se entrelaça com a de outra mulher – Madalena, a viúva de Miguel. Duas famílias que mal sabiam da existência uma da outra, se cruzam por conta de uma tragédia. A morte de André fora tão repentina que Ana nem tivera tempo de anunciar que estava grávida. Seria uma surpresa junto com a moldura. A partir daí, acompanhamos uma mulher gestando morte e vida.

Era preciso revelar a cada almofada que dali em diante não havia mais o abraço dele…, era preciso explicar para as nossas bebidas guardadas, era preciso que eu parasse de descobrir logo novos detalhes do André, [….] André morto de repente me revelando uma obsessão por estocar pastas de dente, guardar meias dentro dos sapatos, é necessário que um apartamento morra junto, não se pode deixar que sobreviva porque tudo toma um ar fantasmagórico.
A narrativa de “Não fossem as sílabas do sábado” é angustiante, pois temos acesso aos sentimentos mais profundos de uma mulher em luto por conta de um acidente tão incomum que beira o grotesco. Ana olha para o acontecimento sob diversas perspectivas e através de todas elas a dor continua a mesma. Como todo enlutado, ela se vê rodeada de “e se...”. E se eu não tivesse insistido para o André me encontrar? E se André tivesse pelo menos parado para conversar um pouco mais com o porteiro? E se ele demorasse um pouco mais para descer as escadas?

Nesse ciclo de perguntas e nessa necessidade de respostas, a fim de aplacar a dor, a narrativa entra em um dos pontos mais angustiantes em minha opinião, que é a aproximação que ocorre entre Ana e Madalena. A relação entre as duas é de pura tensão. Enquanto Ana está moldada em dor e revolta, a ponto que o nome de Miguel ou qualquer outro detalhe sobre sua vida é proibido ser mencionado entre as duas, Madalena carrega uma espécie de culpa que transforma em atos de serviço. Ela tenta compensar a grande perda de Ana (e a sua) ajudando a cuidar da casa de Ana, da saúde de Ana e também de Catarina, filha de Ana e André. Cada encontro das duas mulheres é como um macabro encontro de casais, pois André e Miguel estão sempre presentes, ainda que pelo peso da ausência.

O livro gira em torno das questões que perpassam luto e memória, onde estrutura e estilo narrativo nos conduzem de forma não linear por capítulos breves e intensos que obedecem ao fluxo de consciência de Ana. “Não é que o tempo diminua a saudade, o que ele faz é diluir a memória.” O texto é lírico, poético e ao mesmo tempo brutal, o que nos faz vislumbrar os processos de luto da narradora. Ao mesmo tempo que em uma frase Ana possa soar como mais conformada, centrada em focar na continuidade de seus dias e dedicada à educação de sua filha, na frase seguinte ela já pode estar completamente tomada por dor e culpa e seus pensamentos saem brutais e cheios de verborragias.

O sábado da morte de André de repente deixa de ser um sábado qualquer, e os outros sábados subsequentes na vida de Ana, Madalena e Catarina, passa a carregar esse estigma. “Faz mais de nove anos que estou presa dentro daquela meia hora”. Para além do tema da morte e do luto, que consequentemente nos levam a pensar em possibilidades de superação, o livro é também uma obra sobre mulheres e vivências femininas, onde até mesmo uma experiência universal como a morte e o luto são impactadas pela singularidade do que é ser mulher.

Se Deus me chamar não vou de Mariana Salomão Carrara

Se Deus me chamar não vou da Mariana Salomão Carrara (Editora Nós, 2019) é um romance onde acompanhamos de perto os pensamentos de uma menina de apenas onze anos de idade - quase doze (ela gostaria que isso ficasse bem claro). Maria Carmem é simplesmente genial, de inteligência e perspicácia acima da média. Após descobrir que possui intimidade com as palavras e a escrita, começa a registrar em seu arquivo no word tudo que se passa em sua vida, o que depois ela vai chamar de livro, pois quer ser escritora. Assim, passamos a ter acesso a um verdadeiro ensaio sobre crescimento e demais descobertas da vida, através do olhar de uma criança. Maria Carmem se pergunta e também responde, observa e tenta entender os porquês em relação a questões de gênero, orientação sexual, relação com os idosos, preconceitos, amizade, amor.

Eu pareço bem mais velha do que eu sou, porque sou muito mais alta e tenho peso, então as pessoas concluem que eu tive mais tempo para crescer e engordar e, por isso, só posso ser mais velha. Daí a idade que pensam que eu tenho não combina nada com a roupa que eu uso, e com a minha voz e as minhas perguntas.
Maria Carmem inicia seu processo de escrita com uma atividade da escola, ao escrever uma redação hilária em que bate um papo com o Homem-Aranha e depois compartilhava com a sua professora a título de correções e toques necessários. Até que ela nota que sua percepção sobre os colegas e a própria dinâmica da escola poderiam gerar alguns incômodos e fica com a escrita para si. Resolve registrar o seu ano.
Esta é a história deste ano, deste meu ano, não do ano de todo mundo, porque cada um está tendo um ano todo seu e eu só posso contar a história do ano que é meu. A não ser quando eu for escritora, aí sim vou poder contar a história do ano dos outros.
Uma das coisas mais fantásticas sobre “Se Deus me chamar não vou” está na forma como a autora coloca uma criança no centro da narrativa. O tempo todo, enquanto lia a obra, fiquei pensando nas crianças com quem convivo e a forma como nós, adultos, dedicamos a maior parte do nosso tempo em evitar que as crianças morram. O senso de proteção física vem acima de tudo e acabamos nos esquecendo de que, às vezes, uma criança também quer ser verdadeiramente ouvida e vista como um indivíduo. É uma pena que nos esqueçamos desse sentimento de ver tudo pela primeira vez quando vamos nos tornando adultos. Talvez assim, seríamos mais atentos em relação às descobertas e individualidade das crianças.
São diversos os temas que perpassam a mente aguçada de Carmem e a reflexão sobre a escrita e o que é ser uma escritora são um dos destaques do relato.
Minha professora falou que eu escrevo muito bem. Eu nem sabia que era possível escrever mal, pensava que ou se sabia escrever, ou não.
O ato de escrever soa tão natural para Carmem, que o texto surge como se escrever fosse o mesmo que respirar e, por vezes, diante dos sofrimentos que a vida impõe, mesmo a uma criança, percebemos que a escrita realmente é o seu respiro, a sua forma de organizar o mundo. A menina olha com curiosidade para a vida e para sua própria produção. É assim e não pela consulta à gramática que ela descobre, por exemplo, como encerrar capítulos.
Não sei em que momentos encerrar capítulos. Decidi que cada vez que eu precisar sair do computador, tipo para tomar banho, comer ou ir para a escola, vou encerrar um capítulo. Assim os capítulos do livro vão ficar parecidos com os capítulos da vida de verdade.
Não serão poucas as vezes que você irá gargalhar com as reflexões de Carmem. Seu olhar irônico sobre a vida surge não da intenção de ser irônica, mas do fato de que seu olhar é verdadeiramente analítico e sincero. Carmem mostra que se pararmos para olhar com a devida atenção para o cotidiano com um pouco da curiosidade de quem está descobrindo o mundo, veremos que algumas de nossas convenções sociais podem soar bastante questionáveis e até mesmo ridículas.
Por exemplo, um guarda de trânsito. Quem coloca ele ali? Quem paga esse homem? Se eu pudesse chutar diria que é a prefeitura, mas eu chutaria prefeitura para tudo. Ou, ainda, quando meus pais chamam em casa um homem pra consertar alguma coisa, e dão muito pouco dinheiro, é evidente que aquele homem não estudou, e então quem ensina um adulto que não estudou a fazer algo que é tão difícil que dois adultos que estudaram não conseguem fazer? A prefeitura também?
Maria Carmem é solitária, o que ela define como “pior idade do universo” e justamente a sua solidão que aguça a interpretação sobre tudo que a rodeia. Em casa não falta nada a Carmem, mas seus pais passam quase todo o tempo lutando para que o negócio da família vingue. Eles herdaram uma loja que vende todo tipo de produtos geriátricos, o que Maria Carmem chama de “loja de fazer velhos”. A menina os ajuda sempre que pode e sua observação sobre os idosos que utilizam dos serviços da família, também ajudam a formar seu caráter e sua empatia perante as pessoas.
Minha mãe diz que quando eu for mais velha todos esses colegas que eu hoje admiro vão me causar pena e eu vou rir dessa minha inveja. Mas quando eu for mais velha vou precisar de fraldas e andadores e meias de compressão, então essa risada não vai valer de muita coisa. Acho que existem crianças mais solitárias que os velhos.
Mariana Salomão Carrara descreve também a forma como a garota vai descobrindo seu próprio corpo e os códigos que a sociedade utiliza para colocar as pessoas dentro de estereótipos que parecem intransponíveis.
Esse ano eu descobri que sou gorda. Ou pelo menos um pouco gorda. Nunca tinha verdadeiramente me dado conta disso, só ia pondo roupas largas e achava que desse jeito ninguém ia perceber, e não tinha importância. Só que fui fantasiada de Branca de Neve pra uma peça da escola, e um colega me disse que essa princesa estava muito gordinha. E dentuça. Descobri isso também, o problema com os dentes.
Com seu texto sem falhas, Mariana Salomão Carrara nos insere em uma vida inteira de um fôlego só, em um livro que consegue ser belo, engraçado e denso ao mesmo tempo e que também nos transporta para memórias da infância que talvez estivessem esquecidas, nos lembrando que ser criança pode ser muito solitário.

As viúvas passam bem de Marta Barbosa Stephens

As viúvas passam bem de Marta Barbosa Stephens (Folhas de Relva Edições, 2023) finalista do Prêmio LeYa de 2021 é um romance que se passa na cidade do Recife em meados dos anos 90 e nos apresenta a uma gama de personagens complexos e cativantes. Dentre eles, estão as viúvas Margarete e Guiomar, duas mulheres que vão perceber, que apesar de toda a dureza da vida, a mesma é feita de um movimento que pode nos levar a lugares nunca antes imaginados.


Margarete e Guiomar são vizinhas de porta e após uma violenta briga, por motivos torpes, seus respectivos maridos, Richard e Alexandre se matam. Com direito a golpes de faca e um único tiro certeiro, o corredor do prédio vira uma piscina de sangue e o destino das duas famílias se entrelaçam em uma corrente de ódio. As mulheres se tornam inimigas, entram em uma briga que nunca perde fôlego e que é acompanhada de perto pelos moradores da vila.

O ódio entre Margarete e Guiomar era genuíno, tão explicável e entendível que não havia lados ou partidos entre os moradores da vila. Ninguém torcia por uma, ou por outra. Alguns talvez torcessem contra as duas, e sigilosamente desejassem que sumissem, aliviando-os de presenças tão pesadas.
A narradora do livro é uma mulher adulta revisitando suas memórias de adolescência. Aparentemente, ela acompanhara de perto a história de Margarete e Guiomar. Partindo de suas memórias fragmentadas e do típico “disse me disse” da vizinhança perante uma história que se tornara quase uma lenda de tão famosa, faremos um passeio pelo passado e o presente das duas viúvas e de uma série de personagens importantes para entendermos o universo que as rodeiam.

O que descrevo a seguir, permita-me alertar, tem origem no olhar de uma menina de 13 anos, abobalhada pelas descobertas de sua idade e curiosa por tudo o que não lhe era familiar. Possivelmente, muita coisa foi fantasiada. Não posso me assegurar de toda a verdade com tantos anos de distância. Ainda mais por ter sido uma adolescente presa no mundo paralelo das histórias e personagens que criava, e só eu via.
Após a morte de seus maridos e convencidas de que o amor já não seria mais uma realidade em suas vidas, a vingança passa a ocupar um lugar de importância na vida de Margarete e Guiomar. Enquanto cuidam das tarefas de casa, do pagamento das contas e da educação dos filhos, sempre arrumam um tempinho para acender uma fogueira embaixo da janela da outra e com precisão para que a fumaça chegue a seu destino, descartar a correspondência alheia no lixo para perder prazo de boletos e convites de festas, trocar, embaralhar e sumir com os cadernos do jornal do dia, dar um sumiço no gatinho de estimação, desaparecer com o vestido que seria usado em uma festa.

Apesar de estarmos diante de duas mulheres enlutadas que compraram uma culpa e uma briga sem sentido, as passagens onde as vinganças são relatadas acabam sendo muito engraçadas. Como não são capazes de perpetuar uma violência extrema, como a executada por seus maridos, as viúvas se dedicam a pequenas trolagens diárias que se arrastam por anos, como se tivessem feito um pacto de ódio que nunca poderia ser quebrado. Desconfio, inclusive, que com o passar dos anos, o ódio de Margarete e Guimar se tornara mais um costume, uma tradição, do que um sentimento em si.

Nossa narradora nos leva até o passado das viúvas e esses capítulos memorialísticos são muito interessantes, pois passamos a entender um pouco mais das intenções de Margarete e Guiomar e porque se tornaram tão apegadas a seus casamentos, a ponto de acreditarem que com a morte daqueles homens, a parcela de amor pertencentes a ela, nesta vida, simplesmente acabara.

Revisitando o passado das viúvas, também vamos conhecer outros personagens tão interessantes quanto elas. A junção das histórias de vida das mulheres vai se somando às histórias de outras mulheres e homens que também foram atingidos por episódios de violências e perdas. O desfilar das memórias é feito com habilidade e fluidez. Como a escrita é envolvente e os capítulos são curtos, nos vemos presos em uma teia de fatos, onde cada início de capítulo apresenta um gancho narrativo e temporal que nos impede de deixar o livro de lado.

“As viúvas passam bem” é um livro sobre amores e afetos e trabalha bem com a noção de que tais sentimentos não são simples e não bastam por si só. A Marta Barbosa Stephens desenhou algo complexo, que são as relações humanas, através de um texto simples e com camadas onde ninguém pode ser definido como bom ou mau. Nem Margarete e nem Guimar são vilãs. Não existe uma luta do bem contra o mal. Existem personagens lutando para sobreviver com as armas que aprenderam a usar desde que nasceram. Narrador, personagens, o decorrer da vida e o próprio Recife, ajudam a compor uma obra magnífica que é mais um exemplo da qualidade da literatura contemporânea brasileira.

Sou uma tola por te querer da Camila Sosa Villada

Sou uma tola por te querer da escritora argentina Camila Sosa Villada (Editora Tusquets, 2022) é um livro de contos singular e a obra chama atenção pela forma como constrói as narrativas. Através de um tom que mescla realidade e fantasia, embarca em temas que na maioria das vezes são vistos apenas pelo viés de sua dureza e violência. A visibilidade das mulheres trans é o mote principal da obra e para quem costuma ignorar essas vivências, as histórias do livro podem soar como uma oportunidade de humanização de uma parcela da sociedade que ainda é muito marginalizada, mas que entrou com unhas e dentes no embate através da apropriação da palavra.


A escrita é confessional e ao mesmo tempo visceral. Como a autora possui experiência de atuação nos palcos, no cinema e na televisão, percebemos fortemente a escrita, a performance e a oralidade em uma dança espetacular. O primeiro conto, que tem forte teor autobiográfico, é uma grande abertura para o que iremos encontrar adiante, onde as personagens aparecem, cada uma a seu modo, rompendo silêncios e reivindicando o uso da palavra e da narrativa.

Não posso evitar escrever sobre a violência, porque escrevo coisas que vivi.
A obra foi a minha porta de entrada para a escrita de Camila Sosa e acredito que não poderia ter começado melhor. Os contos propiciam diversas formas de exploração do exercício da escrita e em “Sou uma tola por te querer”, Camila nos presenteia com diversas experimentações ao abordar a vivência travesti. A escritora possui uma destreza admirável com o uso das palavras, daquele nível de nos fazer arrepiar com algumas passagens.

Durante todas as histórias, somos apresentados a personagens fortes e muito bem construídos, onde a nossa imaginação opera ao criar situações e cenários por onde o universo criado pela autora desfila. Camilla Sosa embarca em um estilo latino americano de contar histórias que nos remetem diretamente à força da oralidade, como também existe ali algo bem “almodovariano”, que nos faz sonhar com uma parceria entre essas duas mentes criativas.

É impossível não sair impactado pelo conto que dá título ao livro, onde a autora transforma Billie Holiday e Louis Armstrong em personagens. Na história, Billie se torna amiga das travestis Maria e Ava, após uma noite intensa de bebedeiras e drogas. Nos deparamos com tudo aquilo que é considerado “lixo e luxo” transitando de mãos dadas, em uma história onde a autora conduz a narrativa exatamente para onde bem entender e é nítido como ela coloca as travestis como figuras redentoras.

Trouxeram para mim seu penúltimo disco, Lady in satin, produzido inteiramente com cordas. É meu disco preferido, direi isso por toda a eternidade. Tinha uma dedicatória: ‘María, sou uma tola por te querer. Billie’. Um beijo estampado com batom cor de terra.
O conto “Sou uma tola por te querer” poderia ser chamado de uma verdadeira opera rock, se não fosse uma verdadeira “opera jazz”. É uma delícia embarcar no ritmo e na cadência que Camila Sosa constrói para o conto. Com muito lirismo, ela brinca com a tensão entre a ficção e a autobiografia, ao mesmo tempo em que sentimentos como solidão, amor, rejeição e perda são explorados de forma intensa, partindo da inspiração na música de Holiday.

“Sou uma tola por te querer” é uma literatura marginal e sua maior potência está aí. Ao apresentar personagens fora do convencional e que desafiam a norma social, Camila Sosa faz com que a existência de pessoas marginalizadas e oprimidas ocupem seu espaço no mundo. A narrativa voltada para as feridas e para a resistência, além de terem um caráter provocativo, também podem ser uma voz potente para a denúncia da violência. Em um mundo onde as representações de gênero, identidade e sexualidade decidem quem vai viver e quem vai morrer, é lindo ver como Camila Sosa Villada utiliza da literatura como campo de resistência.


A contagem dos sonhos de Chimamanda Adichie

A contagem dos sonhos de Chimamanda Adichie (Companhia das Letras, 2025) é um romance que chegou às mãos dos leitores, após dez anos da publicação de “Meio sol amarelo”. Havia uma grande expectativa com a obra e acredito que os leitores, já cativados pela escrita de Chimamanda, sairão satisfeitos com o que vão encontrar. Na trama acompanhamos as histórias de quatro mulheres negras, de classes sociais diversas e com sonhos particulares, mas que se veem unidas por uma teia de acontecimentos.



A obra que tem como ponto de partida o período de isolamento social que vivemos com a pandemia, irá se desdobrar por uma infinidade de outras temáticas que pareciam ser impossíveis abranger em uma obra só, mas que Chimamanda consegue fazer com fluidez. Por trás de vivências universais relacionadas ao amor, trabalho e família, encontramos um recorte que nos leva a pensar sobre os impactos da tradição, da cultura, da imigração e da construção da identidade cultural.

Na história conhecemos Chiamaka, Zikora, Kadiatou e Omelogor, quatro mulheres que estabelecem uma amizade inusitada e que tem Chiamaka como o fio que as conectam. No capítulo de Chiamaka, vemos uma mulher bem sucedida financeiramente, uma nigeriana que mora nos EUA e que tem a oportunidade de rodar o mundo como escritora de viagens e turismo. Chia passa o capítulo relembrando suas péssimas escolhas amorosas, assim como os desafios que encontra em sua carreira, pois seus sonhos subvertem o lugar reservado às mulheres negras pelo senso comum.

Zikora, que talvez seja a mais tradicional das amigas, também possui uma vida bem estruturada atuando como advogada. Apesar de todas as conquistas materiais, vive assombrada pelo medo de não conseguir um casamento e um filho. A maternidade é uma obsessão para Zikora, o que ganha contornos ainda mais graves através da pressão familiar apoiada nas tradições de seu país. Em seu capítulo, chama a atenção a questão da maternidade e também do abandono.

No capítulo de Kadiatou, temos a luta de uma mulher de origem humilde, que após passar por muitas privações, parte para os EUA para encontrar com o grande amor da juventude acreditando na promessa de uma vida melhor. Kadiatou conhece Chiamaka e se torna uma espécie de governanta em sua casa, além de trabalhar como camareira em um grande hotel. Neste mesmo hotel, a personagem sofre agressão sexual de um hóspede de luxo, o que se tornará um grande problema para sua vida e irá escancarar a forma como as mulheres ainda são frágeis perante as leis. Para a história de Kadiatou, Chimamanda se inspirou na história real da Nafitassou Diallo, imigrante guineense que em maio de 2011 acusou Dominique Strauss-Kahn, diretor do Fundo Monetário Internacional - de agressão sexual.

Por fim, conhecemos Omelogor, a mais “pé no chão” e cerebral das amigas. Omelogor é uma mulher prática e objetiva, que com bastante esforço conseguiu um cargo bem posicionado como financista no banco em que trabalha. Para provar seu valor e sua capacidade, ela aprendeu a dizer as coisas que os poderosos queriam ouvir e a passar por cima da própria ética em busca de sucesso profissional. Quando se vê satisfeita com sua posição, uma frase proferida por sua tia, que sugeria que Omelogor fingia estar satisfeita com a própria vida, a mesma entra em um estado de paranoia e começa a refletir sobre sua própria identidade e alienação no trabalho.

Olhando para a histórias de Chiamaka, Zikora, Kadiatou e Omelogor vemos o retrato de uma realidade que assola as mulheres em diversas culturas, não só a africana, mas que com elas ganham um recorte cultural e racial. As mulheres buscam um lugar no mundo, enquanto precisam lidar com tradições que vigoram na religião, na família e no Estado e que colocam em risco suas liberdades.

“A contagem dos sonhos” é um livro que combate estereótipos ao mesmo tempo que nos leva a olhar para realidades distintas e refletir sobre o que são nossos sonhos genuínos, e o que são os sonhos impostos pela cultura e as convenções sociais. A leitura nos deixa muitas perguntas sobre o estado dos amores na contemporaneidade e se é possível amar de forma verdadeira sem abrir mão de quem somos e do queremos verdadeiramente.