Ressuscitar mamutes da Silvana Tavano

Ressuscitar mamutes da Silvana Tavano (Editora Autêntica, 2024) é uma leitura com teores cinematográficos. Ao mesclar ciência e literatura, nos sentimos imersos em uma espécie de documentário e esse tom ensaístico do texto não nos prepara para de repente cairmos em uma narrativa poética e memorialista. Em pouco mais de cem páginas, Silvana Tavano apresenta um texto original e que vai se desnudando aos poucos, por necessariamente precisar de um tempo de arqueologia e de polimento de fóssil para chegar em seu objetivo final.


Ressuscitar passados, inventar futuros: ciência e literatura viajam no tempo dos sonhos para chegar ao impossível. 
A autora faz o que chama de “o percurso dos mamutes” logo nas primeiras páginas da obra. Ela nos conta sobre estudos e notícias reais que falam sobre a possibilidade de ressuscitar mamutes e como essa ressurreição poderia contribuir para “evitar que perigosas quantidades de gás metano contaminem a atmosfera”.

Restituir os mamutes à vida soa como ficção, como pareciam ser os foguetes espaciais, os marca-passos, as cirurgias robóticas e centenas de achados fantásticos que se tornaram banais – a internet, os celulares, o mapeamento genético do DNA. A visão quântica de um corpo ocupando vários lugares ao mesmo tempo ou a imagem de uma Galáxia Fantasma, a trinta e dois milhões de anos-luz, registrada pelas lentes do Telescópio Espacial James Webb, ainda parecem um tipo de mágica. A que talvez também recrie mamutes.

Começar a leitura de “Ressuscitar mamutes” sem saber muito bem para onde a obra caminharia, foi algo positivo para minha experiência de leitura, pois embarquei de cabeça em seu convite para viajar pelo tempo e espaço. A cada página ficava surpreso e maravilhado com a destreza com que a autora foi apresentando temas como saudades, tempo e memória, tendo a importância da história por trás de todas as coisas como ponto de partida.

Os mamutes e todas as histórias e informações que se tem acesso após o estudo de um fóssil revelam um universo expandido e na obra de Silvana essa expansão nos levará para questões aparentemente banais, mas que também são dignas de arqueologia: as relações familiares.

Utilizando dos mamutes como uma grande metáfora, a narradora nos leva para uma investigação sobre a vida de sua mãe falecida. Como sua mãe era uma mulher extremamente discreta e de pouca fala, vemos a narrativa se transformar em um verdadeiro sítio arqueológico, onde os mínimos detalhes são de fundamental importância. É emocionante acompanhar como a narradora redescobre a própria mãe e com isso acaba se tornando também uma outra pessoa. A escrita funciona como um trabalho arqueológico das memórias.

A memória é colorida pela invenção. Encobrimos o que se apagou com os tons da imaginação, uma paleta de cores que refaz pessoas e cenários entre pinceladas de calma ou de fúria, com texturas ora aveludadas, ora vibrantes, retoques de última hora, às vezes sombrios. Mas quantas nuances se perdem quando tentamos recuperar uma tela do passado?
Em “Ressuscitar mamutes” vemos a literatura desempenhando seu papel mais bonito, que é o de eternizar histórias, sentimentos e pessoas. Fazer um contraponto com a arqueologia e tudo que emerge a partir da descoberta de um fóssil foi uma jogada de mestre e que abriu infinitas possibilidades de se discutir sobre a perenidade das coisas, algo que também se encaixa para as emoções e os afetos. Ao remontar a sua vida ao lado da mãe, a narradora faz um percurso que permite olhar para o passado, avaliar o presente e projetar um futuro.

12321: o amor é um palíndromo da Marina Kon

12321: o amor é um palíndromo da Marina Kon (Editora Penalux, 2022) é um romance que se estrutura como uma conversa entre dois amantes. Nas páginas da esquerda lemos os desabafos, reflexões e perguntas da mulher e nas páginas ao lado, temos os contrapontos do homem. É um diálogo que não necessariamente chega a respostas, pois partem de um desacordo emocional, de uma história a dois que está desmoronando - e o mais importante – onde a mulher está acordando para os abusos emocionais da relação e para o fato de que “estava amando sem reciprocidade”.


Marina Kon descreve com destreza os ciclos do abuso narcisista no posicionamento de um homem que manipula, distorce os fatos e mescla elogios com críticas para manter a vítima presa à relação. Por outro lado, a mulher vai se vendo cada vez mais confusa, com auto estima baixa, em estado de sofrimento e alimentando uma falsa esperança de que a relação melhore. Tudo isso acontece enquanto ela está totalmente quebrada e presa em um ciclo disfuncional "onde ficava feliz com coisa pouca".

Nas páginas de “O amor é um palíndromo” as dinâmicas do machismo são expostas de forma muito corajosa. O assustador é que por mais que estejamos diante de uma obra de ficção, ficamos embasbacados por quanto as situações parecem “normais” ou “comuns”. Existem acontecimentos e diálogos narrados na obra que soam familiares e isso demonstra o quanto os ciclos de dominação, controle, adestramento, traição e manipulação estão no cerne da sociedade patriarcal e nos faz esquecer seu alto grau de violência.

tenho vontade de machucá-la para que aquilo que dói em mim doa em você. eu penso que poderia lhe dizer absurdos e você ainda encontraria humor nas minhas palavras. quero antes suas lágrimas, confirmação do amor de quem sente a dor do outro. ser homem é muito duro às vezes. você beberia o meu sangue? morreria por mim? dizem que o maior prazer que você pode dar a uma pessoa é deixar que ela te mate.
Nos pegamos pensando em quantas vezes presenciamos um casal imerso em situações como a dos protagonistas do livro, dizendo as mesmas frases e repetindo os mesmos padrões de controle, dominação e manipulação. Conseguimos nos reconhecer na perpetuação de alguns ciclos de abuso emocional.

Por amá-lo, eu gostava um pouco menos de mim. Na tentativa de manter a mulher forte, eu me tornei ainda mais frágil. Eu não consegui ir embora sem olhar para trás. Mas você nunca me teve. Me ter só na hora que quer nunca será me ter por completo e as coisas apenas são na integridade. A palavra dor tem duas sílabas.
A escrita de Marina Kon é envolvente. Ao mesmo tempo em que nos toca profundamente ao materializar as angústias de alguém que sofre por amor, que está percebendo que está diante de uma relação que o outro “se recusa a lhe perder, mas também não a quer ganhar”, também consegue colocar em palavras a sensualidade latente de dois corpos, que mesmo partindo de projeções diferentes, se desejam profundamente. “Há sempre coisas rasgando dentro de mim e você compreende quando me engole”. Violência e sensualidade se tornam quase palpáveis.

Os corrompidos se reconhecem. Logo que te conheci, me deparei com a sua loucura. Acho que a gente só conhece alguém genuinamente quando há um pouco de insanidade na fala e no quarto. Você pegava a minha mão e entrelaçava os dedos, me atraindo com seu gesto pouco comum. Naquela época, eu não sabia que por trás das suas mãos dadas havia tanta posse e tão pouca entrega. No seu afeto, havia sempre uma agressão velada: os dedos roxos, a limitação dos movimentos, a violência disfarçada de cuidado. Você me destratava como fez com inúmeras mulheres, de forma que no início parecia apenas um amor mais feroz que os outros. Eu tenho esse vício que as pessoas chamam de intensidade: meu prato fundo. Ali só havia restos. E a fome não pôde ser ignorada por muito tempo. Ao enxergá-lo, eu me deparei com a minha própria escassez.
A exploração tão forte e íntima da dinâmica entre um indivíduo narcisista e sua vítima, transforma “o amor é um palíndromo” em uma obra necessária para todos os tipos de relações. Muito se fala sobre relacionamento tóxico e abusos emocionais, mas vê-los mapeados e dissecados em uma obra que consegue abranger as sequelas de estar em um relacionamento doentio, e também a redenção de se acordar para a realidade, coloca a temática em um lugar onde se torna impossível fingir que a violência não existe.


Coelho maldito da Bora Chung

Coelho Maldito, obra de estreia da escritora sul-coreana Bora Chung (Editora Alfaguara, 2024) é um livro que reúne dez contos que apostam no surreal, no grotesco e no insólito para falar de temas sociais. Bora Chung normaliza cenários e situações bizarras e ao fazê-lo, consegue mostrar o absurdo como absurdo. Os contos passeiam pelo terror, pelos contos de fadas, pela fábula, pelo realismo mágico e pela ficção científica, tendo a dura realidade da vida como fio condutor das narrativas. Ao dar olhares de exagero (emprestados da literatura fantástica) para todo o mal que banalizamos, um véu se desnuda diante de nossos olhos e nos vemos impactados pela banalidade da violência de gênero, das desigualdades, da ganância, do capitalismo.


O livro foi publicado na Coreia do Sul no ano de 2017. Após ser lançado nos Estados Unidos em 2022 foi finalista do International Booker Prize, o que ajudou a obra a se popularizar e o nome de Bora Chung entrou nos circuitos literários. Bora diz que os contos são uma junção de diversos trabalhos que escreveu em diferentes momentos de sua vida, e alguns partiram de experiências pessoais.

Sua escrita é bastante direta e sem floreios. A autora vai sempre direto ao ponto e muitos dos contos parecem se estruturar em um eterno estado de clímax que acaba ditando nosso ritmo de leitura. Apesar da simplicidade da proposta do livro, suas temáticas são complexas e a narrativa nunca se mostra previsível. A escritora fisga os leitores já no primeiro conto quando diz:

"Tudo que é usado em maldição deve ser bonito” era o que o meu avô sempre dizia.

Todo objeto tem a própria história. Esse abajur não foge à regra, principalmente porque também foi usado para rogar uma praga. Sentado na sua poltrona ao lado do abajur, meu avô conta e reconta essa história que eu já tinha ouvido inúmeras vezes.

Uma família recebe de presente um abajur amaldiçoado em formato de coelho, uma mulher conversa com uma cabeça que mora em seu vaso sanitário, uma mulher engravida por excesso de uso de anticoncepcional, um casal compra um prédio habitado por fantasmas e onde um dos inquilinos morre esquartejado em uma panela de sopa. Estas e outras situações dignas de um pesadelo, servem de ponto de partida para falar sobre a sociedade que vivemos e como lidamos com o horror diário.

É genial como o exagero funciona bem na narrativa de Bora Chung. É através dele que a autora consegue nos conduzir para as provocações que estão escondidas no texto. Em “Coelho maldito” o horror funciona como forma e conteúdo.

A escritora apresenta diversas nuances sobre o universo feminino e a atmosfera de terror de seus contos servem como uma estratégia para denunciar os pesadelos vividos pelas mulheres. Ela utiliza também do folclore coreano para falar sobre as exigências, o controle e as violências vividas pelas mulheres coreanas, mas são dilemas que são facilmente transportados para qualquer cultura. Muitos dos medos femininos passeiam pelas histórias de Bora, portanto suas temáticas podem gerar gatilhos em alguns leitores.


O grande dia: uma micro-odisseia carnavalesca de Pierre Cormon

O grande dia: uma micro-odisseia carnavalesca do escritor suíço Pierre Cormon (Editora Quixote, 2025) acompanha um dia na vida de três personagens a poucas horas do grande desfile de carnaval na Sapucaí. Em cada capítulo, seguimos de perto os passos de um personagem, que inicialmente parecem não ter ligação, mas que fazem parte da roda que faz girar a maior festa popular do planeta. Dandara, Tainá e Ronildo representam o grande amor do brasileiro pelo carnaval e como essa celebração possui raízes identitárias e sociais muito fortes.


Último dia do Carnaval do Rio. Dandara se prepara para desfilar pela primeira vez no sambódromo, Tainá ajuda a organizar o evento e Ronildo fica pronto para uma noite de loucura com um bate-bola. Mas, na Cidade Maravilhosa, a sedução, o acaso ou a violência podem inviabilizar até os projetos mais bem preparados...
As três histórias principais do livro se entrelaçam e traçam um panorama interessante sobre o carnaval, sobre a cidade do Rio de Janeiro e as desigualdades que assolam o nosso país. O autor consegue demarcar muito bem como funciona a lógica que separa o povo do morro do povo do asfalto e como o carnaval insere, ainda que por pouco tempo, uma nova lógica de acesso à cidade. A Cidade Maravilhosa vira um grande palco e o povo preto e periférico são os protagonistas.

Empurrou com ambos os pés, mas o chão ficava firme debaixo dos seus pés, como se lhe dissesse que ela não pertencia a esse mundo abaixo, que tinha que ficar na superfície, onde tiroteios podiam ocorrer a qualquer momento, onde cada tempestade destruía casas na comunidade, onde se estudava sabendo que havia poucas chances de levar a boa vida que as pessoas do asfalto conseguiam sem esforço.
O transitar de nossos personagens se assemelha ao roteiro de um hino de escola de samba. Todos os elementos estão ali. Na história de Cormon a tensão se torna quase corpórea ao acompanharmos cada detalhe para que um grande desfile de uma escola aconteça. As quadras se tornam uma espécie de energia vital para quem está prestes a realizar o sonho na avenida e a bateria marca o compasso do coração dos personagens, assim como os vários trechos da obra que são cheios de tensão.

Para quem acompanha pelas arquibancadas ou pela TV todo o universo da Comissão de Frente, Mestre-sala e porta-bandeira, Baianas, Bateria, Puxador, Passistas, Velha Guarda, Ala Carnavalescos, Samba-enredo, Enredo, Fantasias e Alegorias pode não ter a noção de como o carnaval é também um rito transcendental e ao mergulhar na intimidade dos personagens, percebemos o carnaval para além da celebração.

No romance samba enredo de Cormon, desfilam diante de nós alguns aspectos importantes sobre o fazer da cultura em nosso país. O carnaval, propriamente dito, se torna revolucionário e transgressor ao nadar contra a maré de uma sociedade elitista e racista. Ao mesmo tempo em que o autor descreve com minúcias todos os sacrifícios e a dedicação dos personagens para que o carnaval aconteça, a violência e o racismo estrutural do Rio de Janeiro se manifesta em pequenos e grandes atos que não conseguem conter a alegria, a sensualidade e a magia do carnaval.

O jornalista e escritor Pierre Cormon possui uma relação muito bonita com o Brasil e o Rio de Janeiro. Ele diz que sua fascinação nasceu por pura sorte já na primeira visita. Imediatamente se encantou pela paisagem, pela cultura, pelo samba e também encontrou o amor no Rio. É admirável a destreza de Pierre ao escrever sobre o Brasil e o Rio de Janeiro utilizando de elementos e maneirismos muito brazucas. A cada página percebemos a admiração que ele sente por nossa terra. O autor escreveu o romance diretamente do português.


Asterix: omnibus (vol.1) de René Goscinny e Albert Uderzo

Asterix: omnibus de René Goscinny e Albert Uderzo (Editora Record, 2024) é uma edição que compila os três primeiros capítulos da série de quadrinhos, sendo eles: Asterix: o gaulês, Asterix: a foice de ouro e Asterix e os godos. Os quadrinhos foram criados na França no ano de 1959, e foram um sucesso instantâneo. A história é ambientada na Gália (Bretanha), no ano 50 a.C. em um período dominado pelo Império Romano, mas existe uma pequena aldeia que resiste bravamente à ocupação romana e que possui um grande segredo que garante o sucesso da resistência.


Ainda hoje, a série é cultuada pelos amantes de HQ não só da França, mas em escala global. Seu primeiro volume “Asterix: o gaulês” é considerado um marco do gênero e foi a edição responsável por nos apresentar ao herói Asterix, seu amigo inseparável Obelix e o cachorrinho Ideafix.

Por conta de uma poção criada pelo druida Panoramix, o povo da tribo se torna praticamente invencível após tomá-la. Cada um dos integrantes da tribo passa a ter a força de dez homens e essa sobre força que garante a soberania da resistência. É com essa força que os gauleses aproveitam para humilhar as forças romanas que sempre saem escorraçados das batalhas.

Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor. E a vida não é nada fácil para as guarnições de legionários romanos nos campos fortificados de Babaorum, Aquarium, Landanum e Petibonum...


Poucas coisas me fazem gargalhar como as aventuras de Asterix e Obelix. É um dos quadrinhos mais divertidos que já li e é uma série que acompanho faz um tempo. Os criadores da HQ elevam o deboche, a ironia e a caricatura a um nível extraordinário. Não é fácil tirar humor de algo aparentemente simples e é isso que eles conseguem.

Apesar de ser uma sátira criada na França no ano de 1959, baseada no povo gaulês e nos tempos de dominação do Império Romano, suas provocações poderiam caber em diversos outros contextos. Com muito humor, eles escancaram toda a burrice dos "podres poderes" dos tiranos. César e sua horda são retratados como a própria encarnação da burrice e isso garante muitas gargalhadas durante a leitura.

Nadando no escuro do Tomasz Jedrowski

Nadando no escuro do Tomasz Jedrowski (Astral Cultural, 2024) é um romance onde acompanhamos o florescer de uma paixão entre dois garotos. A história se passa nos anos 80 em um período conturbado da história da Polônia com o início do declínio do partido comunista. O autor utiliza do cenário de tensão, repressão e conservadorismo para fazer um contraponto com a realidade que muitos homens enfrentam ao se descobrirem como homossexuais e que os jovens, como um todo, enfrentam ao ter seu desejo de liberdade e exploração do mundo negado. É um relato tocante sobre a sede da juventude por liberdade e como amor e sexualidade também são atos políticos.


Na escrita de Jedrowski, conseguimos adentrar em um clima que desenha muito bem a Polônia do pós-guerra e as formas como o país precisou se redesenhar por conta do regime. A narrativa é contida e nos obriga a ler como se tudo fosse um sussurro. É como se estivéssemos sempre com a sensação de alguém espiando atrás de uma porta. Sendo assim, o grande mote da obra está nas entrelinhas, nas sutilezas, em tudo aquilo que é dito através de sensações.

Enquanto os jovens que passeiam pela trama experimentam algumas migalhas de notícias, músicas e filmes que atravessam as fronteiras de seu país, acompanhamos Ludwik e Janusz se apaixonando e vivendo um romance que também precisa ficar contido e não pode ultrapassar certas fronteiras. Após participarem de um acampamento agrícola, os dois decidem esticar mais um pouco as férias de verão e passam algumas semanas à beira de um lago isolado, dormindo em uma barraca, pescando e se entregando aos próprios desejos. Eles experimentam a liberdade de ser quem são, mas com data para terminar.

- Não existe uma lei que proíbe o que estamos fazendo.

- Eu sei disso. – Sua voz se suavizou. – Mas nós precisamos agir como se existisse. Sabe o que fizeram com Foucault?
“Nadando no escuro” conversa de perto com uma obra emblemática da literatura universal, que é “O quarto de Giovanni do James Baldwin. Ludwik consegue acessar um exemplar do livro, o qual ele precisou arrancar a capa e colar outra por cima por se tratar de um livro proibido. “O quarto de Giovanni”, que ele compartilha com Janusz posteriormente, se torna um segredo a dois.

Naquela noite, tirei O quarto de Giovanni das reentrâncias mais profundas da minha mala e comecei a ler à luz de uma lanterna depois de os outros terem dormido. O livro me assustou e me reconfortou – mesmo estando apenas nas primeiras páginas. A culpa do narrador em relação à noiva, seu desejo por Giovanni e o arrependimento profundo por seja lá o que tenha feito com ele. Havia algo no ritmo, na linguagem, nos fatos implícitos e na sensação de ruína interna que dialogava diretamente comigo.

Como a história se passa em um contexto de conservadorismo e repressão, onde para um cidadão ser considerado transgressor bastava muito pouco, o afeto e a sexualidade aparecem como ponto focal para tratar de temas como liberdade e identidade. Existe a fronteira de um país fechado e existem corpos que também estão fechados em si. Se por um lado temos dois jovens impedidos de viver livremente o amor por conta da demonização da homoafetividade, por outro lado temos também um dilema universal, que é a castração dos desejos tão inerentes à juventude.

Ludwik, o narrador da história, é um jovem sonhador e com ideais de liberdade. Ele cresceu junto de sua mãe e sua avó ouvindo notícias sobre o contexto político da Polônia através de uma rádio clandestina escondidos no quarto. Com isso, ele estabeleceu uma outra vivência com o partido. Seu olhar estava atento a todas as privações que o povo enfrentava, apesar do silêncio que imperava. Para Ludwik existiam dois caminhos, lutar ou partir.

Janusz estabeleceu uma outra relação com a realidade. Para ele era mais fácil se moldar ao que estava imposto e arrumar formas de viver bem apesar de tudo. Ele não acreditava em uma mudança e assim acaba por até colaborar com o partido comunista. Ele consegue um cargo em um departamento do governo como censor de livros. Precisava identificar qualquer tipo de provocação ou propaganda contra o regime. Ironicamente, falamos do mesmo Janusz que lia “O quarto de Giovanni” às escondidas. Para Janusz ir embora não era uma opção. Ele acreditava que seu país era sua casa.

A narrativa de “Nadando no escuro” em primeira pessoa e estruturada como se fosse uma carta de Ludwik para Janusz de um futuro próximo, nos aproxima muito de Ludwik. Podemos sentir fortemente seus dilemas, suas angústias, seu amor e principalmente sua solidão. Apesar do contexto político que é muito importante para a narrativa, o livro não é sobre política, mas sim sobre a descoberta do amor.

Dentes do Domenico Starnone

Dentes do escritor italiano Domenico Starnone (Todavia, 2022) é um romance emocional e com uma escrita cirúrgica que sabe muito bem para onde quer levar o leitor. Domenico cria um universo que gera incômodo, ao mesmo tempo em que nos instiga a permanecer para ver qual caminho a história irá tomar. Um homem perde seus dentes incisivos após uma agressão e ao ficar desdentado, também fica nu diante dos leitores. Todas as suas dores, angústias, medos, decepções, dificuldades e desamores começam a escapar pela fenda dos dentes. O vazio imposto pela boca sem dentes revela seu vazio existencial.


Uma das características mais impressionantes da obra, está no fato como Domenico consegue extrair reflexões e construir situações importantes para a narrativa através do comum e do banal. Nos vemos diante de um personagem com uma vida que não possui grandes reviravoltas, nem grandes surpresas, sendo a perda dos dentes, talvez, aquilo de mais extraordinário, ou fora da curva que o acomete. Através de uma vida quase enfadonha, o autor fala sobre sonhos, frustrações e dificuldades que fazem um retrato inteligente sobre as dificuldades da vida e os dilemas da masculinidade.

No início da tarde do dia 6 de março de três anos atrás, perdi dois incisivos numa tacada só. Eram os que me serviam para pronunciar meu nome.
A perda dos dentes de “Oico”, som que ele consegue pronunciar sem os dentes da frente, serve como metáfora para devassar a identidade de um homem comum, mas que carrega questões que acompanham muitos homens. É uma estratégia genial do autor nos dar apenas um vislumbre sobre qual seria o nome do personagem, pois, ao perder os dentes, o próprio personagem se vê em uma crise com sua própria identidade e a privação do próprio nome deixa essa crise exposta, em carne viva.

Nosso narrador é um professor que trabalha, ganha pouco e sobrevive sem grandes luxos. Vive com Mara, sua ex-amante que agora se tornou oficial e também é a responsável pela agressão que dilacerou seus dentes. Tem dois filhos de um casamento anterior e, por ser um pai ausente, possui uma relação problemática com a ex-esposa.

Tudo é narrado em um ritmo e uma intenção onde pequenas e grandes violências não são tratadas com alarde. Tudo parece “normal” ou um sintoma de uma vida já acostumada com as privações e com as perdas. “Oico” nos passa um misto de sentimentos, pois, ao mesmo tempo que nos sentimos solidários com suas dificuldades, nos irritamos com sua opacidade perante a vida.

Peguei papel e caneta e, para me ancorar, comecei a fazer contas. Queria saber onde podia achar o dinheiro necessário para corrigir os dentes de Michela. Vamos partir daqui, me impus. Mas a depressão cresceu quando, seguindo o fio do dinheiro que me seria necessário, de repente percebi que, financeiramente, eu não valia nada.
A busca do personagem por um dentista que poderia resolver o problema de sua boca é construída de forma trágica e satírica ao mesmo tempo. A maneira como “Oico” é tratado por cada dentista que passa por ele, constroem um microcosmo da realidade, que define muito bem quem terá acesso ou não a uma boa saúde, a uma boa moradia, a um bom salário, a boas horas de lazer. “Oico” sabe do lugar que ocupa e, portanto, não espera grandes coisas da estrutura social em que vive.

Então resolvi tomar o rumo da desigualdade social. “Já reparou como os ricos têm belas dentaduras?
Em “Dentes” tudo é muito normalizado e ao mesmo tempo muito grotesco. É uma obra construída em volta da exploração da sensação de dor, de bocas arregaçadas e na trajetória de um homem inseguro e imaturo, uma espécie de herói fracassado.

Nunca vou te perdoar por você ter me obrigado a te esquecer do Jacques Fux

Nunca vou te perdoar por você ter me obrigado a te esquecer do Jacques Fux (Faria e Silva, 2023) é um romance brasileiro que se estrutura como uma conversa entre um casal que terminou uma relação. Entre declarações e lembranças boas e ruins, os dois lutam não para salvar um amor que talvez não tenha mais volta, mas para tentar extirpar a dor. É um romance que bate fundo para grande parte das pessoas que já sentiram aquela dor de quase morte de uma separação, principalmente quando ela vem quando ainda existe sentimento.



O casal do livro é formado por um escritor e por uma atriz, então, de forma brilhante, Jacques Fux brinca com o que há de poético no ofício da escrita e da atuação para compor seus personagens. Na narrativa do escritor, vemos o amor se derramar de forma intensa, como o próprio exercício da escrita geralmente se desenrola e onde o sentir se torna o próprio material de sua função.

A minha memória é involuntária, M. Ela resulta de acasos e surpresas. Epifanias. Estilhaços de você – que ainda tento resguardar – eclodem, apesar de escaparem furtivamente por entre as lacunas da deslembrança. O que resta são farrapos de registros e retalhos. Escrevo porque essa história não poderia desaparecer com o afastamento. Preciso reter o que persiste, estancar o tempo, emoldurar as sombras que ainda perduram em pontos, riscos e marcas. É necessário escolher o que deve desmoronar a fim de preservar aquilo que desejamos que volte e sobreviva.
A atriz possui intensidade em igual medida, mas com uma dose de pé no chão, com uma dose de bom senso e de análise do cenário, assim como é montado o palco de um teatro, onde cada emoção possui seu momento certo de aflorar, onde cada passo é ditado por uma marcação. O escritor se interessa pela obra que fica, enquanto a atriz anseia pela vivência do exato momento em que as coisas acontecem. Um lado constrói o relato, enquanto o outro representa.

Não desejo que nada volte, Jacques. Você não entende? Terminei com você. Compus um réquiem, teci um epílogo. Está acabado. O que perdura é o que ainda não se apagou com o tempo. Eu não sorrio quando me lembro de você, Jacques. Não tenho nostalgia, vontade, desejo. Não me dói saudade nenhuma.
Nunca vou te perdoar por você ter me obrigado a te esquecer é o amor colocado a prova. Uma maneira que o narrador encontrou de tentar amenizar dores e ausências evocando tudo aquilo que foi mais intenso durante a relação, para depois se perguntar: se era assim, como pode ter acabado?

O fascismo eterno do Umberto Eco

O fascismo eterno do Umberto Eco (Editora Record, 2018) foi originalmente um discurso proferido em uma conferência de um simpósio organizado pela Columbia University, em 25 de abril de 1995. No texto, o autor faz reflexões sobre como as garras do fascismo e do nazismo foram ganhando espaço na Europa e no mundo, sendo o termo “fascismo eterno” uma ilustração de como essa ideologia política autoritária perdeu grande parte de sua força, mas nunca mais saiu da espreita.


O Ur-fascismo, ou fascismo eterno, ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: 'Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!'. Infelizmente, a vida não é tão fácil assim! O Ur-fascismo pode voltar sob vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas - a cada dia, em cada lugar do mundo.

Como diria Bertold Brecht, "a cadela do fascismo está sempre no cio", e infelizmente, nos esquecemos disso. O avanço da extrema direita no mundo vem nos mostrando que a luta pelas democracias e pela dignidade humana não pode cochilar. Um político, com fortes tendências fascistas, acaba de se eleger em um dos países mais poderosos do mundo e no dia de sua posse o homem mais rico do mundo fez uma saudação nazista em comemoração e para todo mundo ver.

Mais do que nunca, precisamos relembrar o contexto histórico que permitiu a ascensão do fascismo e do nazismo no mundo, para assim evitar uma escalada de violência e a perseguição dos direitos fundamentais das minorias. O livro "O fascismo eterno", é uma obra importante, pois além de evocar a história para explicar conceitos e avaliar cenários, possui uma linguagem acessível.

Umberto Eco inicia a reflexão partindo de sua experiência pessoal, ainda como um jovem italiano imerso em uma sociedade regida por fascistas. Ele, assim como boa parte da população, repetiam discursos de cunho fascista que estavam sendo normalizados na época. Acontece que essa mesma sociedade não tinha a verdadeira dimensão da repressão que estava em voga. Eco fala de um período em que “liberdade ainda não significava libertação”. Em plena guerra, uma grande maioria da população nem ao menos sabia da existência de campos de concentração.

Nos meses seguintes, descobri que a Resistência não era apenas um fenômeno local, mas europeu. Aprendi palavras novas e excitantes como ‘réseau’, ‘maquis’, ‘armée secrèt’, ‘rote kapelle’, ‘gueto de Varsóvia’. Vi as primeiras fotos do Holocausto e assim, antes mesmo de conhecer a palavra, conheci seu significado. Descobri que havíamos sido libertados.
De forma didática, Umberto Eco vai demonstrando como o termo “fascismo” pode se adaptar a diversos contextos e que mesmo eliminando um ou outro conceito básico que o define, ele continuará sendo chamado de “fascismo”. As formas como o fascismo age nos tempos de hoje, são completamente diferentes da forma como se desenhou na Itália de Mussolini para depois se espalhar por diversos países. Atualmente, por exemplo, estamos vendo os ideais fascistas fantasiados de liberdade de expressão.

Na sequência, o autor lista o que ele chama de características típicas do regime fascista, como culto à tradição, tradicionalismo aliado a recusa da modernidade, irracionalismo, não aceitação de críticas, sendo o desacordo considerado traição, utilização da frustração individual ou social, obsessão da conspiração, entre outros. Se olharmos com atenção para o modus operandi dos principais políticos de extrema direita do mundo, veremos essas mesmas estratégias se aflorando de formas diferentes.

O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso utilizando e exarcebando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou que está se tornando fascista é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição.

Os vizinhos morrem nos romances de Sergio Aguirre

Os vizinhos morrem nos romances do Sergio Aguirre (Editora Dimensão, 2019) é um romance policial instigante que utiliza de alguns elementos que o tornam diferente de outros livros do gênero. A obra se vale de várias estratégias de metalinguagem, onde história, personagens e motivações brincam e homenageiam o gênero. Sergio Aguirre, que também é psicólogo, parte da importância dos diálogos para criar um thriller com dois personagens principais densos e nada confiáveis.


A metalinguagem alcança um outro nível, uma vez que o ponto principal da obra está na busca de inspiração de um escritor frustrado para o seu novo livro, enquanto trava uma conversa, que é quase uma batalha, com uma senhora com uma história bizarra para contar.

Cada vez que se mudava de casa, John Bland tinha o costume de se apresentar a seus vizinhos. Assim haviam feito sempre seus pais, e lhe parecia que não se realizava essa visita de cortesia, algo faltava para terminar de se estabelecer em seu novo lar.
Após ficar sozinho em sua nova casa, John, que não queria desembalar e organizar tudo sozinho, decide dar uma volta pela localidade e aproveita então para bater à porta de sua vizinha para se apresentar. Ele conhece a enigmática senhora Greenwold.

John se vê dentro de uma casa cheia de livros e se apresenta como um escritor de romances policiais. Assim, acaba aguçando a curiosidade da senhora que é apaixonada pelo gênero e que o convida para tomar um chá. Os dois se sentam diante de uma lareira e, a partir daí se desenrola todo o livro. Nós só saímos daquela sala levemente aquecida pela lareira, quando John ou a senhora Greenwold nos transporta para outra localidade através de uma de suas histórias.

Quando John diz à senhora Greenwold que está sem inspiração para um novo romance, a mesma se empolga e começa a contar um caso de assassinato, que aparentemente, ela mesma presenciara. Uma história com direito a janela indiscreta, perseguição e uma viagem de trem.

À minha direita, a janela só me mostrou a escuridão da noite, e, em um extremo, o reflexo de meu próprio rosto, olhando-me do vidro. O som das ruas chegava de longe, como que afogado pelo silêncio que parecia reinar naquele lugar. E por um momento tive a consciência de que, para nós que estávamos ali, aquele trem era nosso único mundo naquela noite, um pequeno labirinto em penumbras, estreito, ameaçador, e, lá fora, apenas frio e velocidade.
Acontece que quanto mais o tempo vai passando, a conversa vai se tornando um campo de batalha, onde ambos trocam provocações veladas e disputam sobre a capacidade narrativa de cada um. Ao mesmo tempo que isso acontece, vamos embarcando em uma narrativa onde tudo ou nada que está sendo relatado pode ser uma verdade e onde até mesmo o caráter de ambos os personagens se torna uma incógnita.