O Homem-Espelho de Lars Kepler

O Homem-Espelho de Lars Kepler (Editora Alfaguara, 2023) é mais um volume da série de romance policial do investigador Joona Linna. Lars Kepler é o pseudônimo usado pelo casal de escritores suecos Alexandra Coelho Ahndoril e Alexander Ahndoril. Os dois possuem sua própria obra literária, são escritores reconhecidos em seu país e a série Joona Lina é um projeto que já está em seu oitavo livro. Os suecos possuem um jeito muito peculiar de escrever romances desse estilo. Eles apostam em uma narrativa rápida, violenta e muito soturna, onde as características e personalidade dos vilões são construídas em detalhe.


Jenny Lind, uma adolescente de dezesseis anos, é sequestrada em plena luz do dia. Jogada na carroceria de um caminhão, ela é levada para um lugar onde enfrentaria seus piores pesadelos. Cinco anos depois, numa noite chuvosa, seu corpo é encontrado em um parque, pendurado num gancho.
O grande diferencial das histórias criadas pelo casal Ahndoril está na capacidade de criar vilões memoráveis e de conseguir segurar o clímax da revelação de sua identidade e suas motivações até as últimas páginas. Enquanto leitores, ficamos completamente obcecados pela construção dos vilões, pois todo o texto é construído em cima de enigmas, metáforas e diversas referências que vão nos encaminhando para a resolução dos crimes.

Assim como a personalidade do vilão é fundamental para a narrativa, temos também a figura do investigador Joona Linna. Sua inteligência e capacidade de percepção dos detalhes é impressionante. Joona consegue começar a desenhar um caso a partir de detalhes muito pequenos da cena do crime e de informações que retira de uma simples palavra proferida por um suspeito ou até de uma reação sutil. Apesar de sua genialidade, Joona está sempre envolto em problemas, pois ela não poupa esforços para resolver um mistério. Mesmo que tenha que utilizar de métodos nem um pouco éticos.

Em “O Homem-Espelho” os investigadores se veem diante de um dos casos mais difíceis até então. O pouco que sabem é que estão diante de um serial killer que sequestra meninas adolescentes e seus corpos aparecem anos depois, o que demonstra que elas ficam em cárcere privado e sendo mantidas vivas por muito tempo. A única testemunha de um dos crimes e que pode ajudar a solucionar o caso, é um homem que sofre de um grande trauma psicológico que o impede de perceber a realidade com clareza e até de se comunicar.

Isso se aplica a cada um de nós: se não formos capazes de suportar a visão de nós mesmos refletidos no espelho de nossas memórias, tampouco conseguiremos sofrer o luto por aquilo que aconteceu, superar e seguir em frente. Pode parecer um paradoxo, mas quanto mais tentamos ignorar as partes dolorosas da vida mais poder elas têm sobre nós.
A história que já é fluida por conta de sua própria narrativa e de seus capítulos curtos e cheio de reviravoltas, ganha ainda mais intensidade com a nossa ânsia de chegar ao clímax do livro. Os autores trabalham muito bem com uma mistura de horror e drama psicológico, onde não podemos nos apegar a nenhum personagem, pois na página seguinte eles podem já não estar mais respirando.

Mentiras que contamos de Philippe Besson

Mentiras que contamos do Philippe Besson (Astral Cultural, 2024) é um romance francês que nos conta a história de dois homens que se conhecem ainda na adolescência e iniciam um romance escondido, com data para terminar e nenhuma possibilidade de esquecimento. De forma tocante, o autor demonstra como o preconceito e a homofobia podem definir o destino das pessoas através da privação dos sentimentos e dos desejos. É um livro que prende o leitor em uma narrativa quase etérea e que ao mesmo tempo é angustiante e sensual.


A história parte do ponto em que Philippe, nosso narrador, é um homem adulto e um escritor de romances bem-sucedido. Ele está no saguão de um hotel, concedendo uma entrevista para uma jornalista sobre o lançamento de seu novo livro. De repente, sua atenção é desviada para um jovem que passa apressado, saindo do hotel. Ele então começa a chama-lo por um nome que o remete ao passado e se levanta bruscamente atrás do rapaz. Quando ele o alcança e toca seu ombro, somos transportados para o ano de 1984.

Philippe e Thomas são dois adolescentes no último ano da escola e pertencem a grupos completamente distintos. Philippe sempre sentiu uma forte atração por Thomas, que sempre chamou atenção por sua beleza, mas nunca ousou ter qualquer tipo de interação com ele, nem mesmo um cumprimento. Para além de sua beleza, algo que sempre chamou atenção para o rapaz era sua maneira mais observadora e silenciosa, mesmo quando estava cercado de seu grupo.

Até que um dia Philippe é surpreendido com uma aproximação de Thomas e um convite inusitado. Aceitando viver um “romance” às escondidas, um amor clandestino, Philippe vai se apegando ao nível de afeto que Thomas consegue dar e aos poucos vai descobrindo que a personalidade dele é moldada por “um medo de si mesmo, um medo do que ele”.

Ele me acaricia com mãos experientes, sabe o que precisa fazer. Morde meus quadris, meu peito. E geme. Ouço esse gemido que ele não conseguiu conter, que deixou escapar talvez sem perceber: isso me comove muito. Acho que já escrevi: nada me emociona mais do que esses momentos de abandono, de esquecimento de si mesmo.
A obra, principalmente na figura de Thomas, consegue nos levar a uma reflexão sobre um tipo de violência que por vezes se manifesta de maneira silenciosa e sutil, mas que possui um poder devastador sobre a construção da identidade, da subjetividade e dos afetos de um homem gay. Por conta de todo um histórico, que é afirmado todos os dias pelas convenções sociais, Thomas foi convencido de que seu afeto não pode sair dos porões.

Existe essa loucura de não podermos aparecer juntos. Loucura agravada neste caso pela situação (inédita) de nos encontrarmos no meio de uma reunião e termos que nos comportar como estranhos. Loucura de não poder demonstrar nossa felicidade. Uma palavra pobre, não é? Os outros têm esse direito e o exercem, não se privam dele. Isso os deixa ainda mais felizes, os enche de orgulho. Mas nós somos atrofiados, comprimidos, em nossa censura.
A melancolia dita o tom dessa obra, que coloca seus protagonistas em situações onde a reflexão sobre a própria identidade nos puxa para outros pensamentos sobre saúde mental, memória, sexo e sexualidade, felicidade, dor, privação, e principalmente sobre o fim e a devastação, para o bem e para o mal, do primeiro amor.

A voz da casa de Marina Colasanti

A voz da casa de Marina Colasanti e Santiago Régis (Alta Books, 2024) é um livro que nasceu de uma crônica escrita em 2017 e publicada originalmente no site oficial da Marina. A ideia de transformar a crônica em um livro ilustrado, partiu do ilustrador Santiago Régis, que após se encantar com o texto, propôs o projeto para a escritora. O texto de Marina, com as ilustrações de Santiago, nos coloca como visitas em uma casa que tem muita história para contar sobre amizade, tempo e memória.


Conheci a obra da Marina através do Santiago e rapidamente ela se tornou uma das minhas escritoras favoritas. Lá em meados de 2009, eu e Santiago tivemos a ideia de criar um blog para agregar fotos, vídeos, biografia, entrevistas e a obra da Marina em um só local, uma vez que ela não tinha um site. Fizemos isso como uma “coisa de fã” e um dia recebemos um e-mail da própria agradecendo a criação do blog e dizendo que nós fizemos algo que ela nunca faria, pois não levava jeito nenhum com as redes.

Começamos a trocar e-mails regulares com a Marina, tivemos vários encontros em eventos literários, o blog virou site e ela passou a enviar toda semana uma crônica inédita para o site, que também ganhou um perfil no Instagram. O bonito é que a Marina sempre disse que as crônicas eram um presente pra gente. O blog se tornou um site oficial, que cuidamos até hoje.

O livro "A voz da casa" é a realização de um sonho. O Santiago sempre quis ilustrar uma obra da Marina e quando ele propôs que a crônica se tornasse um livro ilustrado, Marina deu total liberdade de criação para que ele fizesse o livro do jeito que sonhara. Sinto um orgulho imenso em ver Marina e Santiago creditados em uma mesma obra, que também celebra a beleza dos encontros que a literatura proporciona.

Na narrativa de “A voz da casa” estamos diante de uma narradora que olha para uma casa com olhos saudosos e dotado de memórias. O leitor se vê diante de um sentimento que é muito comum quando nos deparamos com aquelas casas que capturam nossos olhos por desafiarem o tempo e que através de suas características e até mesmo de seu estado de conservação, nos conta uma história de forma silenciosa e com a sua própria voz, a voz da casa.

A noite, no quarto que conserva sobre os móveis a coleção de objetos miúdos, limpos e arrumados como no passado, a casa falou si. Na parede atrás da cama corre funda rachadura. A construção sólida, de tijolos deitados, concebida pelo patriarca para proteger a família e sua descendência ao longo de várias gerações, resistiu como pode à gravíssima inundação que atingiu a cidade há alguns anos. Mas teve que ceder, e guarda até hoje a ferida. Passei os dedos em carícia nas beiras do corte. Depois deitei, e adormeci embalada pela voz da casa.
Com seu texto poético e certeiro, Marina convoca fissuras, rachaduras, manchas, cheiros e até mesmo os móveis da casa a contarem uma história. Uma mesa, uma cadeira ou até mesmo o cômodo de uma causa pode servir como um catalisador das nossas memórias mais profundas e que podem vir à tona como que carregados por um vento que nunca esquece nada. A voz da casa fala sobre o que passou, o que está em curso e também sobre o que há de vir.

As ilustrações de Santiago Régis captam a essência do texto ao firmarem cada cômodo e cada móvel como um personagem. Uma janela não é apenas uma janela, uma cadeira não é apenas uma cadeira e um armário de louças aparece impositivo, como que sacramentando seu lugar de senhorio, de objeto pertencente a um mesmo lugar por muito tempo.


Serei sempre o teu abrigo de Valter Hugo Mãe

Serei sempre o teu abrigo do Valter Hugo Mãe (Biblioteca Azul, 2021) é um livro sensível, onde um garoto olha para os avós com amor e ternura, ao mesmo tempo em que vai aprendendo sobre os efeitos do envelhecimento. Com o já característico texto poético de Valter, somado a ilustrações do próprio autor e um projeto gráfico que casa com o tom etéreo e fantástico da narrativa, viajamos por uma história que celebra os afetos, a memória e o amor e respeito aos mais velhos.


A história nos dá a impressão de estarmos diante de uma configuração de família diferente. Parece ser uma família composta apenas pelo neto e os avós. A criança olha para seus avós como quem olha para seus heróis e faz suas próprias análises sobre os jeitos, os costumes e principalmente a forma singular que cada um deles tem de demonstrar amor.

Um dia entendi que os velhos são heróis. Passaram por muito, ganharam e perderam tanta coisa. Perderam pessoas. Persistem sobretudo para cuidar de nós, os mais novos, e nos assistirem. Observam-nos. São heróis. Ainda sabem amar depois de tantas dificuldades.

Valter Hugo Mãe utiliza de elementos do realismo mágico para desbravar as subjetividades dos avós e os meandros da importância da memória. Tudo isso surge em contraponto com os desafios que a velhice impõe. No texto, a doença enfrentada pela avó e o silêncio calculado do avô são ilustrados com ares de fantasia, que muito se aproxima da visão das crianças para as questões do mundo, onde realidade e fantasia coexistem.

Além de exaltar o amor do neto pelos avós e dos avós pelo neto, a obra eleva sua importância ao falar sobre o amor na terceira idade. Ainda existe muito pudor em relação às vivências amorosas depois que envelhecemos, mas em “Serei sempre o teu abrigo”, o autor demonstra a força e a beleza da manutenção do amor e do desejo amoroso na velhice. Inclusive, o próprio título do livro, remete a um dos momentos mais bonitos do texto, onde os avós declaram seu amor um pelo outro e não havia palavra melhor do que “abrigo” para descrever um amor que decide se manter vivo por décadas.

Ficar perplexo podia ser uma certa aflição. Por isso, o avô desceu o rosto sobre mim, chegou bem perto e disse: o beijo da tua avó acende o mundo. Eu sorri.
“Serei para sempre o teu abrigo” é um livro sobre o amor que convida a uma reflexão sobre o respeito e a celebração das pessoas que amamos. A obra olha de forma leve e ao mesmo tempo pungente para as histórias alheias, nos colocando como observadores e admiradores da vitória que é existir, persistir e construir laços e memórias afetivas.

Casa de Mário Alex Rosa

Casa do Mário Alex Rosa (Impressões de Minas, 2020) é um livro de poesias que foi concebido durante o período de isolamento social da pandemia. Ele parte desse lugar da casa, que é carregado de simbologias que remetem a repouso e proteção e que depois da pandemia foram mais acentuados, uma vez que a necessidade de proteção ganhara nome e sintomas. Mário esquadrinha os cinco cômodos principais de uma casa convencional, então o livro é dividido em cinco sessões denominadas sala, cozinha, área de serviço, quarto, banheiro.



O livro é um exemplo de exercício de escrita, pois percebemos que o projeto de Mário Alex seguiu as exigências do seu processo criativo, mas também a uma estrutura muito bem fundamentada que conseguiu transformar o objeto livro em morada. O projeto gráfico de Elza Silveira, com desenhos de João Diniz e Ronald Polito transformam “Casa” naqueles livros que já ganha o leitor pela capa.

Enquanto caminha por cada um dos cômodos, o autor exercita seu poder de observação, onde sons tão íntimos de uma moradia são dotados de um significado maior e ocupam seu lugar de familiaridade dentro de uma casa, como em “mesa posta/caderno sozinho/ouve pingo no filtro” e em “no bico do bule/assobia/água fervendo”. São dois exemplos de como os textos curtos do autor, evocam barulhos que de tão cotidianos soam quase escondidos da nossa percepção e como uma breve descrição dos mesmos tem o poder de nos localizar geograficamente no mapa de uma casa.

Mario Alex exalta sons, imagens, texturas e cheiros que fazem parte de uma casa de tal maneira que o percebemos transformar o processo de reclusão em observação. Todo o livro é um olhar de dentro pra dentro e nos faz perceber a casa, a morada e a si próprio com um olhar diferente para o óbvio essencial, como no poema que diz “no espelho/a solidão/é de dois”.

A obra que Mario Alex chama de “casa-livro” explora as nossas ações diárias, que beira o ritualismo, e que por sua própria existência demonstra como nossa casa se torna uma extensão de quem somos, do que sentimos e que materializam também as mudanças de ciclos da vida, como na sessão área de serviço: “estendida no varal/ a roupa espera/ uma nova era” e no poema que diz “recolher o lixo/ do que foi o dia/ renovação garantida”.

Uma mulher da Annie Ernaux

Uma mulher da Annie Ernaux (Editora Fósforo, 2024) nos apresenta um relato realista, corajoso e emocional onde a autora se debruça sobre a história de vida de sua mãe. A narrativa parte do dia de sua morte, 7 de abril, e viaja em um tempo que não tem interesse na cronologia, mas nas memórias que sempre ajudaram a traçar a personalidade de sua mãe. Annie diz ter a sensação de escrever para ela mesma poder trazer sua mãe ao mundo. Esse parto as avessas e induzido pela literatura, recoloca sua mãe no mundo, olhando para as incoerências, dores e afetos que a constituíam enquanto mãe e mulher.


Meu projeto é de natureza literária, pois trata de buscar uma verdade sobre a minha mãe que só pode ser alcançada por meio das palavras. (Ou seja, nem as fotos, nem minhas lembranças, nem os testemunhos da família podem me dar essa verdade.) Mas quero permanecer, de certa forma, abaixo da literatura.

Além de ser a maneira com que Annie Ernaux encontrou de lidar com as nuances do luto e com a ideia de que nunca mais veria sua mãe – que ela sacramenta com a frase “minha mãe nunca mais estará em lugar nenhum do mundo” - sua escrita consegue também estabelecer um distanciamento seguro do sentimentalismo por si só, pois existe sempre uma procura por uma verdade que escancara contornos sociais. Ao falar sobre sua mãe, Annie sabe que está falando sobre as vivências das mulheres operárias da França de meados dos anos 20, sobre violência política e opressão de gênero.

Annie Ernaux se dedica aos pequenos e grandes detalhes para desenhar a história de sua mãe. Ela conta não só sobre os momentos dos afetos, como também sobre aqueles onde só cabia conflito e um rechaçamento natural de tudo que a figura materna representa. Annie olha para falas, gestos e atitudes de sua mãe, e ao fazê-lo, agora através da névoa do luto e do amadurecimento, é que ela enxerga sua mãe através da subjetividade.

Tento não considerar a violência, os transbordamentos afetivos, as censuras de minha mãe apenas como traços pessoais de caráter, mas situá-los também em sua história e sua condição social. Essa forma de escrever que me parece ir na direção da verdade me ajuda a sair da solidão e da confusão produzidas pela lembrança individual, pois descubro um significado mais amplo. Mesmo assim sinto que alguma coisa em mim resiste e gostaria de conservar, de minha mãe, imagens puramente afetivas, calor ou lágrimas, sem lhes dar um sentido.

Ler as obras de Annie Ernaux é sempre algo inesperado e imersivo. A forma como ela apresenta e defende a própria escrita e as suas decisões narrativas, nos leva para um lugar onde não cabe espaço para indagações sobre o que é ficção e o que é realidade, pois Annie se coloca completamente nua diante de seus leitores. “O que eu espero escrever de mais exato se situa, sem dúvida, na articulação entre o familiar e o social, o mito e a história”



Caminhávamos pela beira da Lolita Campani Beretta

Caminhávamos pela beira da Lolita Campani Beretta (Editora Aboio, 2023) é uma obra singular. Com uma prosa poética muito bem escrita, a autora nos leva por um passeio pelas bordas e pelas beiras. Descobrimos que, mesmo diante das pequenas coisas ou daquilo que de tão usual e corriqueiro, quase se tornara invisível, existe um universo. Ao ler o texto de Lolita, lembrei de uma frase da escritora Marina Colasanti que diz: “as mulheres fazem astronomia olhando uma migalha de pão”.


Na primeira parte do livro, é exatamente isso que Lolita Campani faz, só que olhando para baixo. Toda a primeira parte do livro é dedicada aos pés. A autora consegue, ao longo de várias páginas, olhar para os nossos pés, uma de nossas beiras fundamentais e traçar um verdadeiro histórico poético, social, sexual e quase científico do lugar em que os pés nos plantam.

Com sua escrita fronteiriça, que passeia pela poesia e pela prosa, o livro também demonstra o caráter fronteiriço da literatura de caminhar pela beira de qualquer assunto, de explorar qualquer cenário e sentimento. Tudo isso emerge na obra, aliado às características da escrita de Lolita, que propõe a exaltação das possiblidades que a escrita guarda em si em relação à observação da vida.

em uma mesma família, os pés de diferentes pessoas podem se assemelhar a ponto de ouvir dizer, com alguma admiração, “é igualzinho ao de seu pai!”. o mesmo dificilmente será observado sobre cotovelos, ainda que idênticos.
por dificuldades logísticas e por desinteresse, pés semelhantes de pessoas que se desconhecem não costumam ser identificados e, diferente de rostos, se cruzam em avenidas sem que isso seja jamais descoberto.
Durante a leitura eu me perguntava o tempo todo: “Como é possível ter tanto a falar sobre os pés?” É impressionante a maneira minuciosa com que Lolita fala sobre aspectos que vão desde o uso dos pés, algo tão automático para nós e que não pensamos sobre, como também sobre outras abordagens que são culturais, gestuais e simbólicas. Assim como os pés, que nos levam adiante, o livro de Lolita também nos convida a ultrapassar algumas fronteiras.

embora a alternância dos pés tenha como principal objetivo a locomoção, ao movimentar um pé após o outro em passos lentos, espera-se, principalmente, circular por espaços sem que outras pessoas o notem. enquanto a caminhada padrão costuma ter êxito garantido, sua performance vagarosa com o objetivo de invisibilidade nem sempre conta com a mesma sorte.
Terminei a leitura com a conclusão de que, olhando pelos olhos da literatura, o espanto não deve ser pelo nível de exploração de um tema - deve ser o contrário - pois a literatura nos convida e nos dá instrumentos para conseguir olhar além, seja partindo das beiradas, seja partindo do âmago.

Tem visita no Condomínio dos Monstros de Alexandre de Castro Gomes

Em “Tem visita no Condomínio dos Monstros” de Alexandre de Castro Gomes e Cris Alhadeff (Editora RHJ, 2018) retornamos ao prédio roxo onde moram o esqueleto, o vampiro, a mula sem cabeça, o lobisomem, o Saci, o Frankenstein, o bicho-papão, a bruxa e o fantasma. E dessa vez, não voltamos sozinho. O condomínio está recebendo uma visita e até mesmo Zé Chico, o porteiro, ficou surpreso com a aproximação de alguém do tão temido endereço dos monstros.


Rua Mortinho da Silva, nº 13. Era o que estava escrito no papel amassado revelado pela luz da lua cheia. Não havia poste de iluminação naquele trecho de calçada e as sombras não permitiam ver quem passava àquela hora. O vulto tornou a guardar o endereço no bolso e levantou o volumoso objeto que pousara no chão.
A visita que chega ao condomínio dos monstros é uma múmia aymara, prima da múmia que aparece no primeiro livro e que já não mora mais no prédio. Sem ter onde ficar, pois pretendia passar uns milênios na casa da prima, a múmia irá aceitar a oferta de hospedagem de cada um dos monstros que vivem no condomínio. Acontece que a cada casa que ela passa, vai descobrindo um modo de viver, uma mania, que a incomoda profundamente.

Partindo das manias exóticas de cada um dos monstros, os autores convidam os leitores para através da brincadeira e da diversão, realizar uma discussão sobre o autoconhecimento, respeito às diferenças e à individualidade. Quem não tem a sua mania?

A série “condomínio dos monstros” faz um ótimo uso da figura dos monstros para se aproximar das crianças. Através do fascínio das crianças pelos monstros e criaturas folclóricas, os autores conseguem transportar as crianças para a pele dos personagens e vivenciar os dilemas e as aventuras que o livro propõe.


O porteiro do Condomínio dos Monstros de Alexandre de Castro Gomes

O prédio roxo da Rua Mortinho da Silva, número 13 está com um porteiro novo. Zé Chico, após trabalhar por cinco anos em um cemitério, aceita o convite para trabalhar no Condomínio dos Monstros. Ele recebe o convite do próprio Conde Vlad, que ele chama de Vladimir por achar muita intimidade chamar o patrão pelo apelido. Para quem estava acostumado com a paz e o silêncio do cemitério, Zé Chico logo começa a perceber que trabalhar para os excêntricos moradores daquele prédio será uma grande aventura.


Com a mesma criatividade e humor de “Condomínio dos Monstros”, Alexandre de Castro Gomes e Cris Alhadeff nos conta mais uma aventura dessa turma assombrosa em “O porteiro do Condomínio dos Monstros (Editora RHJ, 2013). Após conseguir contratar um novo porteiro, os monstros precisam encenar uma certa normalidade para que Zé Chico não se assuste e abandone o condomínio.

Um som que lembrava o bater de asas de um pombo gigante o perturbou um pouco. Correntes pareciam ser arrastadas. Ouviu gritos e pensou ser de alguma televisão ligada ao máximo – vai ver a velhinha era surda e aumentava o volume na hora da novela. Um uivo longo e triste indicara que alguém ali tinha um cachorro. As luzes piscaram. Na certa a fiação do prédio era tão velha quanto a data da construção.
Enquanto os moradores fingem não serem monstros e criaturas de todo tipo, o coitado do Zé Chico diverte o leitor ao não entender de onde vem toda a estranheza que ronda os moradores do prédio. A verdade se mostra o tempo todo a sua frente e ele fica tentando encontrar outras explicações para os ossos que encontra esquecido pelos corredores, para os pedidos estranhos de compras do Sr. Frankenstein, para as senhoras de chapéu pontudo que sempre visitam uma das moradoras e demais peculiaridades que parecem existir apenas nesse condomínio.


Com um texto que brinca com as histórias e lendas dos monstros e criaturas mais famosas da nossa literatura e da nossa oralidade e ilustrações que contam outros capítulos e oferecem várias pistas e piadas para os pequenos leitores, “O porteiro do condomínio dos monstros” é uma ótima indicação para leitura compartilhada com as crianças. Além de brincar com a temática do terror e dos monstros, é um livro que faz rir e aguça a curiosidade dos leitores ao explorar as principais características dos monstros e criaturas que povoam nosso imaginário. Será que Zé Chico vai descobrir com quem está lidando?

Condomínio dos monstros de Alexandre de Castro Gomes

Imagine um condomínio, situado na Rua Mortinho da Silva, número 13, onde moram uma múmia, Frankenstein, fantasma, bruxa, lobisomem, bicho-papão, esqueleto, Drácula, Saci e toda sorte de monstros do imaginário infantil. Esse é o universo criado por Alexandre de Castro Gomes e ilustrado pela Cris Alhadeff no livro infantojuvenil “Condomínio dos Monstros” (RHJ Editora, 2020).


“Condomínio dos monstros” é mais uma história que entrou em meu radar enquanto bibliotecário e mediador de leitura, por conta de sua grande procura na biblioteca. Sempre fico curioso com as histórias que, de repente, viram febre entre as crianças e que nem voltam para a estante, devido ao número de empréstimos.

Entre tantos outros, existem dois temas que são quase uma unanimidade entre as crianças que frequentam a biblioteca e que são exclusivos de uma faixa etária específica: dinossauros e monstros. A figura do monstro e a exploração do grotesco, dialoga com as crianças, pois além de trabalhar de perto com a fantasia e a imaginação, também exerce um papel de nomeação de tudo aquilo que soa confuso para as crianças em sua relação de aprendizagem do mundo. É uma forma de olhar de frente o estranho, o assustador, o imprevisível.

Muito mais do que sentir medo, percebo que as crianças procuram histórias de terror e de monstro, ainda que inconscientemente, como uma forma de nomear sentimentos e de lidar com medos particulares que fazem parte da apreensão do mundo e seus desafios.


Os monstros foram chegando ao playground, onde a Múmia já esperava, com muito sono e mau-humor. Frankenstein desceu pelas escadas, pois não cabia no elevador. A Mula sem cabeça veio galopando pela porta da garagem. O Saci chegou em um redemoinho de vento. O Fantasma atravessou as paredes. A Bruxa estrou voando com a vassoura, junto com o Drácula, transformado em morcego. Já o Lobisomem, o Bicho-Papão e o Esqueleto vieram pelo elevador mesmo.
“O condomínio dos monstros” é um livro cheio de monstros e muito divertido, que dá vazão a essa experimentação do grotesco, do imprevisível e do medo através da linguagem da fantasia. Os monstros, que moram todos no mesmo condomínio, se juntam em uma reunião, convocada pela múmia, para resolver um problema de convivência e os diálogos e as soluções encontradas pelos moradores divertem crianças e adultos.