Sátántangó do escritor húngaro vencedor do prêmio Nobel de literatura 2025 László Krasznahorkai (Companhia das Letras, 2022) é um romance desafiador e que chama atenção por sua qualidade estética. A história se passa numa vila da Hungria, bem próximo da queda do regime comunista. Para embarcar na história proposta pelo autor, é necessário estar disposto a desbravar, pois nada é entregue de bandeja para o leitor.
Desde a estrutura narrativa, até a construção dos cenários e do ambiente, é necessário fazer um exercício de persistência, pois o texto é difícil e se desenrola através de fluxos de pensamento e de consciência. Assim como os personagens são quase engolidos pela melancolia, afogados pela chuva constante e pela lama daquele vilarejo, ao menor deslize, nós, enquanto leitores, podemos patinar na mesma lama.
A obra é dividida em duas partes e o autor nomeia essa estrutura como “sequência de danças”. O tango e seus movimentos ditarão a forma como o livro se divide e a maneira como a própria história se movimenta no tempo e no espaço. A primeira parte é dividida em seis capítulos, que vai de um a seis, enquanto a segunda parte, também de seis capítulos, vai de seis a um. Essa contagem faz referência aos passos do tango.
O livro foi publicado pela primeira vez em 1985, mas sua tradução só chegou ao Brasil em 2022. A ótima tradução ficou por conta de Paulo Schiller, que em um episódio do podcast da Companhia das Letras relatou que quase desistiu de traduzir o autor por conta de sua complexidade e que mudou de ideia após assistir e se encantar pela adaptação cinematográfica da obra, que conta com mais de sete horas de duração. Paulo levou dois anos para traduzir Sátántangó.
A história se passa em um assentamento agrícola decrépito, de uma região onde a chuva parece nunca cessar e seus personagens passeiam por caminhos lamaçais que muito se assemelham a suas personalidades ambíguas, como também exploram elementos da literatura fantástica. A história tem um forte apego de crítica aos regimes populistas e o faz através de metáforas rebuscadas e alta literatura.
É um cenário apocalíptico que funciona como metáfora para todos os dilemas e medos que enfrentam e a facilidade com que narrativas salvacionistas se impõem em contextos de miséria e desesperança. Um tom “diabólico” e de tensão desfila por toda a obra e aparece mais como metáfora do desastre social do que como fato sobrenatural. É uma radiografia da dança entre a esperança e a desesperança. A aldeia é completamente inóspita e um lugar onde parece que a única opção de sobrevivência é o estado de espera.
Como a narrativa parte da questão da espera, a escrita de Krasznahorkai irá investir na experimentação do tempo, o que torna o livro contemplativo. Isso se reflete em frases e parágrafos muito longos, onde as digressões de um personagem para outro obedecem a um ciclo que não avisa ao leitor quando acontece a mudança da voz narrativa. A estrutura do livro o torna uma leitura densa e muito difícil, mas que começa a fazer sentido a partir do momento que você vai se familiarizando com uma espécie de orquestra tocando várias músicas distintas ao mesmo tempo.
A leitura de Sátántangó é claustrofóbica e angustiante em um cenário pessimista e desolador. Acompanhando o fluxo de pensamentos dos personagens, vamos percebendo o quanto aquelas pessoas de uma comunidade agrícola que aparenta ter sido próspera, hoje se encontram em total estado de abandono e à espera de algum tipo de salvação. Não é à toa que o livro começa com o soar misterioso de um sino, que ninguém entende de onde vem, como se fossem as trombetas do apocalipse.
Desde a estrutura narrativa, até a construção dos cenários e do ambiente, é necessário fazer um exercício de persistência, pois o texto é difícil e se desenrola através de fluxos de pensamento e de consciência. Assim como os personagens são quase engolidos pela melancolia, afogados pela chuva constante e pela lama daquele vilarejo, ao menor deslize, nós, enquanto leitores, podemos patinar na mesma lama.
Numa manhã do final de outubro, não muito antes que as primeiras gotas das chuvas impiedosamente longas de outono se desprendessem sobre a terra rachada, ressequida, do lado ocidental do assentamento (para que depois o mar pútrido de lama tornasse intransitáveis os caminhos, e também a cidade ficasse inacessível), Futaki despertou ao som de sinos.
Ao receberem a notícia de que Irimiás e Petrina, dois moradores do assentamento que todos acreditavam estarem mortos, estão a caminho do vilarejo, todas as atenções se voltam a chegada da dupla. Movidos por teorias e conspirações, os poucos moradores da região se reúnem na taverna e bebem, dançam, cantam, confabulam enquanto ficam à espera dessa chegada.
Em seguida, o som sumiu de repente. Ficaram somente o silêncio, os olhares desconfiados... O copo tremia na mão de Irimiás, Petrina tamborilava nervosamente no balcão. Todos estavam sentados em seus lugares de cabeça baixa, olhos fechados, ninguém teve coragem de se mexer.Com a chegada de Irimiás e Petrina à aldeia, a história muda de tom e o mais fantástico é a aura de mistério que László constrói sobre a natureza dos forasteiros. Nós não sabemos ao certo se eles são uma espécie de Messias, se são alguma aparição, a materialização de uma maldição que assola o assentamento esquecido por Deus, se são ladrões ou até mesmo o próprio diabo.
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