A dança dos cabelos do Carlos Herculano Lopes

A dança dos cabelos do Carlos Herculano Lopes (Atual Editora, 1993) é um romance que além de nos transportar para toda a dor e beleza de sua narrativa, também nos leva a um estado de apreciação da escrita enquanto arte. O viés literário que o autor explora no livro, demonstra um domínio impressionante da escrita e o mais surpreendente é que o mesmo tinha apenas vinte e cinco anos quando escreveu a obra. Cada vírgula, cada frase, cada parágrafo foi construído com maestria, pois são os fios condutores de uma viagem no tempo. Acompanhamos as memórias de três mulheres, de gerações diferentes e que carregam o mesmo nome. Três Isauras: avó, mãe e filha. “ A dança dos cabelos” foi o romance vencedor dos prêmios Guimarães Rosa (1984) e Lei Sarney (1988).



Como ponto de partida para entendermos o fio que liga as três mulheres, temos a história da Isaura avó, que passou pelo sofrimento de ter e criar quatorze filhos do homem que foi responsável pela tragédia que moldaria sua família e as demais Isauras. Ela fora obrigada a se casar com o homem que matou toda a sua família, até que um dia Isaura cumpre um desejo antigo, que a acompanha desde que sua vida fora roubada, que era jogar-se nas águas do rio Suaçuí.

Mesmo sabendo que aos poucos eu apodreço e que em breve não serei mais que um monte de ossos em uma cova qualquer onde talvez nasçam umas margaridas ou em alguma manhã venham pousar os canários, e, por mais definitiva que seja esta certeza, pelo fascínio cada vez mais forte que em mim exercem as águas cujo canto, em horas de calmaria, se mistura ao das acauãs que tornaram a voar ao redor da minha janela, eu ainda insisto em desvendar o obscuro de certas coisas que me aconteceram e ainda acontecem.
A obra demarca como um episódio extremo de violência pode deixar uma marca que perpassará por gerações e o Carlos Herculano Lopes faz isso de forma genial. Todo o texto é como um fio a ser bordado, que entremeia três histórias de vidas que são distintas em diversos pontos (por se tratarem de mulheres diferentes), mas que andam sempre com um fio invisível que parece impossível de romper.

Foi então, Isaura, que neste instante, eu percebi a dimensão da tragédia. E tive para sempre a certeza de que todos estavam mortos. E que nada mais adiantaria ser feito, pois Deus, com todos os seus seguidores e crenças, não passavam de mentirosos. E muito mais, muitas outras infâmias, eu pensei naqueles instantes em que tudo daria para também morrer.
Carlos Herculano Lopes explora de uma forma muito bonita e ao mesmo tempo dura, a complexidade do universo feminino. Ao olhar detidamente para a vida de três mulheres, de três gerações diferentes, deixa claro como os ciclos de violência e a desigualdade de gênero sempre foram um desafio para a dignidade e a liberdade das mulheres. Ainda que a cada geração, a posição das mulheres tem se movimentado para contextos cada vez melhores, algumas violências perpetuam, seja apoiada em causas sociais ou geracionais.

O autor trabalha com essa ideia, ao construir um texto que apresenta várias vozes e que não se preocupa em demarcar muito bem quando a voz narrativa muda. Ele dança entre as vozes da Isaura avó, da Isaura mãe e da Isaura filha, dando a entender que em diversos aspectos é como se aquelas mulheres fossem uma só, de tão enlaçadas que estão por um mesmo ponto de partida.

Mas fui obrigada a me calar pela violência de seus gritos seguidos da aridez de suas frases enquanto ele dizia: eu me cansei, Isaura, eu me cansei desta merda toda (...) E tem mais, muito mais: eu não quero você, te rejeito como desprezei o meu diploma e os louvores e as medalhas de melhor aluno. Eu não gosto, nunca gostei de você, que jamais me completou como homem e que simplesmente – e isto não basta – rezou e abriu as pernas.
A questão da memória é muito presente na obra. As vozes das três mulheres se cruzam, fazendo um trato realista do contexto social. O livro consegue tratar sobre as questões que perpassam as vivências femininas, apenas através de um relato de realidade. A dança dos cabelos é uma representação dos movimentos da vida, pois a vida, assim como os cabelos soltos ao vento, sempre obedecerá ao caminhar e as intempéries da vida.

Um garoto como outro qualquer do Pedro Karam

Um garoto como outro qualquer do Pedro Karam (Editora Urutau, 2025) é um romance onde acompanhamos a infância, adolescência e vida adulta de um garoto se descobrindo enquanto homem gay. A obra trata com realismo impressionante a forma como a identidade de gênero é uma das facetas mais importantes da nossa formação enquanto indivíduos e como pequenos e grandes episódios de violência podem impactar a vida de uma pessoa. É um livro de fácil identificação para a comunidade LGBTQIAPN+ e principalmente para homens gays, pois transita por diversas situações que são quase certas no processo de entender a própria sexualidade.


Eu nasci um garoto como outro qualquer. Mas algo em mim mudou quando aflito, confuso e sem chão, tomei consciência de que meu destino era ser veado. Bicha para mim era uma coisa, assim... como posso dizer? ... muito feminina. Não se encaixava. Gay era neutro demais, sem brilho. Homossexual... parecia quase científico. Veado era a melhor palavra, definitivamente. Eu sabia que, se era mesmo inevitável ser isto que eu sou, que eu fosse me acostumar ao tal do veado então. A partir desta tomada de consciência, o jogo começava para valer.

Pedro Karam trabalha em sua narrativa com muitas questões gerais e também específicas que abrangem o entendimento da homossexualidade. Durante a leitura, me lembrei por diversas vezes do sentimento, tão forte quanto, que tive ao ler “O fim de Eddy” do escritor francês Édouard Louis. Na obra de Louis me impactou a forma como nós, gays, somos obrigados a pensar sobre o sexo propriamente dito, quando ainda não estamos prontos para isso. Acontece sempre que um adulto repreende uma criança com frases do tipo “homem não anda assim”, “homem não chora”, “isso aí não é brincadeira de menino”.

Enquanto estamos ali, apenas vivendo a infância e sem nenhum despertar para nada que seja referente a sexo e sexualidade, pois cada um terá o seu tempo a depender do contexto e da forma como foi criado, a homofobia nos rouba a infância e a oportunidade de nos descobrir de forma saudável. Incute confusão e medo, onde deveria haver apenas infância.

Em “Um garoto como outro qualquer”, experimentei sensação de pertencimento parecida quando Pedro Karam relata a nossa cansativa tentativa de se adequar, de se enquadrar no que é dito masculino para tentar fazer parte de um grupo que é visto como o normal.

Eu queria falar merda, coçar o saco, ouvir rap, deixar a bermuda arriada com quase um palmo de cueca aparecendo, adquirir naturalmente o borogodó de um moleque solto na vida, feliz consigo e ciente, porém, ao mesmo tempo, ingênuo acerca de sua condição de ser superior, ser macho. Pois para mim era isso que meus colegas eram: seres superiores. Não havia dúvidas quanto a isso. Eu sofria, eles não.
Durante muito tempo somos convencidos de sermos um erro, uma vergonha, ou até mesmo aquela palavra horrível que fundamentalistas religiosos usam para se referir a nós: abominação. E, por vezes, a própria reação da família, seja por homofobia ou por pura ignorância, pode nos enterrar em um buraco onde muitos não conseguem ter braços suficientes para se erguer de lá. Então nossos desejos passam a encontrar lugar apenas nas ruas escuras, nos parques arborizados, na urgência de um banheiro. A reação da família de nosso protagonista é um bom exemplo da forma sutil, mas não menos violenta que a homofobia e o preconceito podem se apresentar.

O garoto não é agredido após dizer ao pai e a mãe que se sente atraído por garotos, mas ao invés de acolher o filho e oferecer apoio para que ele possa entender com clareza o que está sentindo, ele recebe o desespero dos pais em forma de palavras duras e choro. Uma das coisas mais dolorosas para alguém em formação é frustrar a expectativa daqueles que nos criaram.

A partir da conversa fica semeado o terreno para crescimento de dor, dúvida, inadequação, não pertencimento e isolamento. O capítulo onde o narrador, de forma intensa e verborrágica, exprime para seus pais exatamente como se sente, onde a escrita do Pedro Karam se apresenta em fluxo contínuo, sem parágrafos, é uma coisa linda e dolorida de se ler. O personagem parece saber que nunca mais teria a oportunidade de uma conversa tão franca com os seus pais.

A gente torce pelo personagem e pelo seu processo de autoaceitação, que é ainda amais importante do que a aceitação externa. É o que dá a força necessária para pensar em direitos, amor, prazer e outras esferas da vida que nos faz humanos. Além de ser um livro sobre as experiências de um garoto gay, a obra de Karam é também uma história de amadurecimento e uma história de amor de um homem que é salvo por diversas manifestações da arte.

A boba da corte da Tati Bernardi

A boba da corte da Tati Bernardi (Editora Fósforo, 2025) é uma obra de autoficção onde a autora revisita a história de sua ascensão social da zona leste à elite intelectual paulistana. Ela olhava de longe para um grupo que queria muito fazer parte e munida do conselho de sua mãe, que se tornou quase um mantra – “você precisa ganhar dinheiro” – Tati chegou lá. Virou a prima bem sucedida que é o terror da ala dita “fracassada” da família, mas a estrutura social vai mostrar a ela que a elite funciona pela ordem do pertencimento de classe.

A personagem sou eu, as coisas, em certa medida, aconteceram mesmo, só que de forma menos exagerada do que coloco na história. Costumo dizer que meus livros partem de uma base de verdade e a ficção é todo o exagero que tem em volta”.


O livro começa como um disparo. Não temos tempo de fôlego. A autora narra com intensidade um episódio violento que desencadeou uma crise de pânico e ativou sua percepção de deslocamento social. Para comemorar seu aniversário de quarenta e três anos, Tati reúne alguns amigos em sua casa no requintado bairro de Higienópolis. Em dado momento, recebe uma mensagem aflita de uma amiga que havia parado no endereço errado por conta da similaridade dos nomes. Hoje Tati mora na rua Maranhão em Higienópolis, mas passou sua infância e adolescência no Largo do Maranhão, zona leste de São Paulo, periferia.

Quando a foto da localização dela chegou, apareceu o largo do Maranhão, o lugar em que brinquei tantas vezes quando era pequena. O lugar em que experimentei pela primeira vez uma palmilha para consertar minha pisada ‘pra dentro’ e me senti tão segura que saí correndo pelas ruas, enquanto meu pai desesperado me procurava de carro, com a minha mãe nervosa ao lado. Meu avô caminhava ali, no largo do Maranhão, depois de todas as refeições, porque acreditava que expelir os gases ao máximo era o que de melhor poderia fazer por sua longevidade. Ali eu empinei pipa, aprendi a andar de bicicleta (...)
O acontecimento a tira do eixo e a festa perde sentido. Uma de suas amigas mais próximas estava com medo de morrer exatamente no lugar onde ela havia nascido. Tati começa a olhar em volta, para seu apartamento e se questionar sobre a legitimidade do lugar que passara a ocupar. Por um momento, se sente uma estranha em sua própria existência, e também se tornam estranhos todos aqueles amigos ricos, influentes e intelectuais progressistas.

A boba da corte. É como Tati começa a se sentir a partir de então. Segundo o google, este é “um termo que se refere a uma figura que, na Idade Média e no Renascimento, era parte integrante das cortes reais e nobres (...) a principal função de um bobo da corte era entreter, mas também tinha uma licença para criticar, muitas vezes de forma irônica e sutil, os poderosos, sem sofrer consequências.

Tati passa a lembrar de vários episódios onde era tratada como a amiga ou a convidada excêntrica. De como a mesa de convidados se divertia com seus relatos de garota suburbana. No campo dos relacionamentos e do amor, ela relembra como era sempre cobrada a ser uma pessoa que não gostaria e que até mesmo não conseguia ser.

Quando Tati entende que seu desejo de pertencer, nunca será de fato um pertencimento real, passa então a olhar para tudo aquilo que torna a elite intelectual paulista insossa, desinteressante e contraditória. Passa a enxergar o poder do privilégio daqueles que nasceram ricos, tiveram a oportunidade de frequentar os melhores colégios, as melhores faculdades, os melhores lugares, mas que não foram capazes de produzir nada a partir dessas vivências. Tati debocha da elite, dá nome aos bois e percebe que ainda que não seja herdeira, possui uma história muito mais interessante que grande parte deste grupo.

Eu saí de uma casa sem livros, sem diplomas, sem qualquer incentivo à leitura e cheguei a algum lugar. Então vem um homem que teve tudo e está cercado de gente que não sabe para onde ir. Não sabe quem é. E então ele me diz, do alto do seu diploma de superioridade de alma elevada: ‘se você não pode mudar, realmente não sei aonde estamos indo’
Tati nos leva por uma narrativa sem filtros, cheia de contradições, corajosa e com percepções sobre sua própria vida e as pessoas que a rodeiam. Ninguém sai ileso do olhar aguçado na narradora. Nem ela mesma. Não pensa duas vezes em colocar no colo de cada um a responsabilidade pela própria inconsistência. Seja em questões que vão da família à sociedade, da amizade ao amor, Tati não tem medo de se mostrar vulnerável a algumas e nem de deixar claro aquilo que é, sempre foi ou se tornou inegociável para si.

Ela acumula versatilidade atuando como publicitária, contista, romancista, cronista, crítica literária, podcaster, roteirista e consegue transportar para o texto essa urgência de falar e de ser vista. Para quem, como eu, consome as produções de Tati do áudio visual, acaba acontecendo uma conexão um pouco maior, pois ao lê-la é como se também estivéssemos ouvindo o tom de voz de cada um de seus desabafos. Tati não tem medo do cancelamento, não tem medo de demonstrar raiva, desprezo e narra seus episódios de sucesso com o mesmo afinco com que exibe o fracasso e o constrangimento, o que é um prato cheio para o tipo de literatura que ela produz.

Caderno proibido da Alba de Céspedes

Caderno proibido da escritora italiana Alba de Céspedes (Companhia das Letras, 2022) é um romance escrito na década de 50 que chama atenção pela forma franca e intimista com que relata a situação da mulher em uma sociedade machista em pleno pós-guerra. A obra é o próprio fluxo de pensamento da narradora Valéria Cossati, enquanto registra seus dias em um caderno. A premissa é simples: uma mulher envolta com a rotina da família, da casa e de seu trabalho. O genial é que Alba de Céspedes consegue, a partir do simples, fazer a radiografia de uma sociedade e de uma época, apenas com a observação da própria realidade. É uma obra que perpassa questões psicológicas, sociais, existenciais, assim como o poder da escrita para repensar a própria identidade e a descoberta da subjetividade.


Alba trata de várias questões sobre a condição das mulheres, que ainda hoje são negligenciadas ou foco de violência de gênero e revelam o abismo que existe quando falamos sobre igualdade. Durante a leitura é impossível não tentar mensurar o impacto que o livro deve ter causado na época de seu lançamento. A autora nos coloca dentro da mente de Valéria e quando a personagem começa a registrar o próprio cotidiano, o fato de escrever faz com que, de alguma forma, as desigualdades e a falta de sentido da realidade venham à tona. Ficamos diante de uma mulher de 43 anos e educada de forma mais conservadora tentando equilibrar seus desejos e uma ânsia cada vez mais crescente por algum tipo de liberdade.

Existe, em minha índole, uma coisa que não consigo decifrar. Até agora, sempre pensei ser clara, simples, a ponto de não reservar a mim mesma, nem aos outros, nenhuma surpresa. No entanto, de uns tempos para cá já não tenho tanta certeza disso, mas não saberia definir de onde vem essa impressão. Para me reencontrar tal como sempre pensei ser, preciso evitar ficar sozinha: ao lado de Michele e dos meninos, readquiro aquele equilíbrio que era minha prerrogativa. A rua, ao contrário, me atordoa, me lança numa singular inquietação. Não sei explicar, mas fora de casa não sou mais eu. Basta sair pelo portão e me parece natural começar a viver uma vida totalmente diferente daquela costumeira, sinto vontade de percorrer ruas que não estão em meu itinerário cotidiano, encontrar pessoas novas, que desconheço até aquele momento, com as quais eu possa ficar alegre, rir. Talvez tudo isso queira dizer apenas que estou cansada, deveria tomar um fortificante.
A estrutura narrativa de “Caderno proibido” é muito bem executada. A escrita se apresenta como um diário, o que torna a leitura mais intimista e confessional. Como Valéria escreve em segredo e apenas para si, existe um medo sempre presente de que o caderno seja descoberto por seu marido Michelle, ou por um de seus filhos - Mirella e Riccardo - mas conforme os relatos se tornam um hábito e uma necessidade, o medo de ser franca com seus próprios sentimentos diante do caderno não existe. Ainda que por vezes soe ambíguo ou hipócrita, é empolgante acompanhar a visão de mundo de Valéria entrando em colapso.. O relato em primeira pessoa nos coloca muito próximos da personagem, o que gera sentimentos de repulsa e também de identificação.

O “Caderno proibido” é o simples decorrer da vida, portanto, não acontecem grandes sobressaltos ou reviravoltas mirabolantes. Ainda assim, é uma obra que captura o leitor desde as primeiras páginas, pois seus temas naturalmente se conectam com o cotidiano e alguns dilemas que conhecemos bem.

A questão do feminino e da emancipação das mulheres é o grande tema da obra. Embora traga reflexões que são muito mais fortes para a vivência das mulheres, em relação aos homens, a leitura acaba sendo uma oportunidade de pensar sobre temas importantes como jogos de poder, opressão e patriarcado. Felizmente, os temas não aparecem de forma didática ou professoral - eles estão ali carregados pela arte da escrita literária, estão ali porque existe uma personagem narrando a própria vida e ao fazê-lo os processos de repressão emocional, sexual e intelectual apenas brotam na frente dos nossos olhos exatamente como operam a gerações.

No entanto, jamais consigo me isolar, e só renunciando ao sono é que encontro um tempinho para escrever aqui. Se, quando estou em casa, interrompo o que estou fazendo, ou à noite, na cama, paro de ler e olho o vazio, há sempre alguém que pressurosamente me pergunta em que estou pensando. Mesmo que não seja verdade, respondo que estou pensando no escritório ou fazendo umas contas; em suma, devo sempre fingir só pensar em coisas práticas, e essa dissimulação me desgasta. Se dissesse que estou pensando em um problema moral, ou religioso, ou político, sei lá, eles começariam a rir, caçoando afetuosamente de mim, como fizeram na noite em que afirmei meu direito a ter um diário.

Enquanto acompanhamos Valéria relatar a relação com sua mãe e sua filha, percebemos, através da observação de três gerações de mulheres diferentes, como as questões de repressão, liberdade e os conflitos entre papeis sociais e identitários foram se modificando. A relação das mulheres com o trabalho, funciona como um bom exemplo. Enquanto a mãe de Valéria foi criada apenas para prover o lar e o trabalho fora de casa era algo impensável, Valéria já precisou entrar no mercado de trabalho movida por uma necessidade financeira. Já sua filha Mirella, estuda e decidiu trabalhar movida mais pelo gosto e em prol de sua visão de mundo.

“Caderno proibido” consegue ser uma obra atual, o que nos demonstra o tempo que leva para algumas convenções sociais alcançarem um novo paradigma. No livro vemos não só Valéria, mas milhares de mulheres que ainda hoje precisam enfrentar conflitos sobre a própria identidade, sobre a prisão dos papeis de gênero, imposições da família tradicional, envelhecimento, entre outras questões. O livro é a exploração do grande conflito entre a mulher que a sociedade espera ver e a mulher que elas realmente querem ser.

Velar por ela do Jean-Baptiste Andrea

Velar por ela do escritor francês Jean-Baptiste Andrea (Editora Vestígio, 2024) é um romance de formação que acompanha a trajetória de Mimo Vitaliani. Mimo é apelido para Michelangelo Vitaliani, nome que recebeu do seu pai que era escultor. Com um texto afinado e poético, o autor nos apresenta um personagem complexo e que transita por uma Itália que transpira arte e cultura, mas que também está sendo tomada aos poucos pelo fascismo. Toda a história é incrementada por um contexto histórico e alguns acontecimentos e personalidades reais passeiam pela narrativa. A obra venceu os prêmios Fnac e Goncourt de 2023.


O livro inicia no ano de 1986, com Mimo Vitaliani em idade avançada e dando os últimos suspiros em seu leito de morte. Ele está cercado de um grupo de religiosos com os quais viveu os últimos quarenta anos de sua vida, isolado em uma abadia. Mesmo não tendo feito votos religiosos, Mimo passou a viver ali, longe dos olhares públicos, em um local que também acolheu sua última grande escultura em mármore, a Pietà Vitaliani – escultura envolta em uma aura de mistério que precisou da intervenção do Vaticano. Mimo e sua Pietà vivem escondidos ali por um motivo que vai se revelando à medida que voltamos no tempo e acompanhamos a vida do personagem surgir diante de nossos olhos, assim como uma escultura nasce da pedra.

Eles são trinta e dois. Trinta e dois que ainda moram, naquele dia de outono de 1986, na abadia ao fim de uma estrada que faz empalidecer os que a percorrem. Em mil anos, nada mudou. Nem a íngreme estrada nem sua vertigem. Trinta e dois corações sólidos – é necessário tê-lo quando se vive à beira de um abismo -, trinta e dois corpos que também foram sólidos, na juventude. Em algumas horas, eles serão um a menos.


Ainda criança e após perder o pai para a guerra, Mimo é enviado por sua mãe da França para a Itália para ficar aos cuidados de “Tio Alberto”, um amigo da família que também era escultor. O intuito de sua mãe era dar ao filho a chance de seguir os caminhos artísticos de seu pai, aquele que o ensinara que uma escultura é uma anunciação, mas ao lado de Alberto, Mimo começará a experimentar uma vida cheia de privações.

Desde muito cedo, o garoto terá que lidar com as dificuldades da vida. A primeira delas vem de sua condição social, que inclusive provocou o afastamento de sua mãe que precisou correr atrás do próprio sustento. A segunda delas, está ligada a sua aparência física. Mimo possui um tipo de nanismo e mesmo quando chega em sua fase adulta, o máximo que consegue alcançar é um metro e quarenta de altura. Com isso, ele precisa lutar ainda mais para mostrar seu valor.

Os caminhos de Mimo se cruzam com o vilarejo de Pietra d’Alba, local que passará a fazer parte de sua vida até o dia de sua morte. Lugar que Mimo se conecta com a excêntrica Viola, a herdeira da família mais rica da região e uma garota que além de se tornar o amor da vida de Mimo, também será a incorporação de sua musa inspiradora.

Ela estendeu a mão, e eu peguei. Sem mais nem menos, infringindo de uma só vez insondáveis abismos de convenções e barreiras de classe. Viola estendeu a mão e eu a peguei, uma façanha que ninguém jamais comentou, uma revolução silenciosa. Viola estendeu a mão e eu a peguei, e foi nesse exato momento que me tornei escultor. Por serem de mundos completamente distintos, os dois amigos passam a se ver de forma furtiva, sendo o cemitério de Pietra d’Alba o ponto de encontro principal. Através de Viola, Mimo começa a ter acesso aos livros que ela pega escondido da biblioteca de sua família. Duas mentes inquietas se encontram e eles constituirão um relacionamento por vezes conturbado, mas que parecem unidos por um imã incapaz de romper a ligação.
Enquanto vemos a vida de Mimo passar por altos e baixos e seu próprio crescimento, acompanhamos o seu florescer enquanto artista. As passagens onde o personagem explora sua visão como artista são de pura beleza. Durante todo o texto somos colocados diante da dualidade de acompanhar uma vida que enfrenta diversos tipos de violências diárias e da poética relação entre um artista e sua arte.

O ato de esculpir, além de ser uma expressão artística, também funciona como uma metáfora da própria existência de Mimo. Ele faz nascer imagens das arestas da pedra, ao mesmo tempo em que busca motivos para viver, esculpindo sua própria história, que é tão dura quanto a matéria prima de seu trabalho.

É difícil imaginar que um dia ela foi uma simples montanha. A montanha se tornou uma pedreira em Polvaccio. De lá, um bloco de mármore foi retirado e entregue a um homem de rosto rude, com marcas de uma briga com um colega invejoso. O homem, fiel a sua filosofia, atacou a pedra para libertar a forma que ela já continha. E a mulher apareceu, de uma beleza indescritível, inclinada sobre o filho entregue ao sono da morte sobre seus joelhos. Um homem, um cinzel, um martelo, pedra-pomes. Tão pouco para produzir a maior obra-prima do Renascimento italiano. A mais bela estátua de todos os tempos, que estava simplesmente escondida dentro de uma pedra. Por mais que Michelangelo Buonarroti procurasse, gritasse, ele nunca mais encontrou nada igual em nenhum outro bloco de mármore. Suas outras Pietà parecem esboços da primeira.

Aos poucos, Mimo vai conquistando espaço e importância no Vilarejo em que vive, o que o leva a conhecer outras cidades. Enquanto isso a Itália vai se transformando através da ideologia fascista de Mussolini e o personagem inicia uma relação de apatia perante o regime.

O ano de 1917 desaguou lentamente nas margens de 1918, houve uma festa na praça do vilarejo para celebrar a transição de um mundo em guerra, em que homens se matavam, para um mundo em guerra, em que homens se matavam.

Durante boa parte da obra, Mimo fecha suas percepções para a realidade política e só tem olhos para sua ascensão enquanto artista e para continuar crescendo na cena artística, começa a realizar trabalhos de escultura para os fascistas e a frequentar os mesmos ciclos. Enquanto Viola tenta abrir seus olhos para os horrores do regime, Mimo apenas repete seu discurso de que o que ele faz é arte e não política, até que as garras do fascismo vão ficando cada vez mais afiadas.

Eu não fazia política, eu não fazia religião. Mas embora seja possível escapar da segunda, a primeira é uma amante perversa, cujos ardores acabariam por me alcançar.

 “Velar por ela” é uma obra que versa sobre o amor impossível, sobre a importância da memória e da resistência diante de tempos de opressão no período entre as duas guerras mundiais. Levanta diversas reflexões sociais e coloca o papel da arte como uma forma de sobrevivência. Andrea tece uma narrativa que desnuda os sentimentos e mostra a maneira como eles moldam a nossa identidade.

Oblivion do Fabrício Martins

Oblivion do Fabrício Martins e da Laura Jardim (Edição de autor, 2021) é um quadrinho que nos apresenta a personagem Anna, uma mulher tentando seguir o roteiro que a vida nos entrega ao nascer. Ela mora sozinha, tem uma boa casa, um gatinho amoroso, um emprego que não gosta, mas que paga suas contas, uma família cheia de cobranças, mas que a ama, alguns amigos fiéis e uma possível paquera em andamento. Acontece que Anna não está feliz e ao explorar sua melancolia diante da vida, a história nos transporta para lugares incômodos e muito familiares.


No posfácio da HQ, os autores contam um pouco de como surgiu o projeto e descobrimos que ele partiu da seguinte frase: “Se você pudesse começar sua vida novamente, você o faria?” Logo nos primeiros frames do quadrinho, Anna, que estava sentada em um parque, avista ao longe uma pessoa conhecida, uma garota sentada em um banco e na companhia de um livro. Ao se aproximar de forma efusiva daquela moça, que em algum momento havia feito parte de sua vida, a mesma demonstra não saber quem é a Anna e interrompe seu discurso cheio de lembranças com um cartão que dizia:

A pessoa que te entregou esse cartão passou pelo procedimento de apagamento do córtex pré-frontal do cérebro e reestruturação do hipocampo para começar uma nova vida. É provável que você tenha sido apagado da memória dela, assim como muitos acontecimentos em que estiveram juntos. Por favor, respeite a vontade da portadora e evite comentários sobre o passado. Para ganhar você também uma nova vida, entre em contato e conheça nossos pacotes promocionais.
Anna fica com aquele acontecimento na cabeça e segue para sua rotina vivendo um dia após o outro. Enquanto empurra a vida com a barriga e sofre episódios de assédio moral no trabalho, onde tem um chefe que nem sabe seu nome, vamos percebendo também que Anna possui uma personalidade mais retraída e isolada. Anna vai afundando cada vez mais em um estado de desânimo, tristeza e cansaço e quando vários acontecimentos tristes a pegam de surpresa, ela entra em estado de depressão.

Eu ando me sentindo meio triste e sozinha. Sei lá o que há de errado comigo. Meu trabalho é horrível, mas ele paga as contas, e nem com meus amigos eu me sinto feliz como antes. Às vezes, eu... eu... me sinto cansada o tempo todo. Mas ao mesmo tempo, como reclamar se tem tanta gente em situação pior? Vivendo na miséria, sendo perseguido por ser diferente, vivendo em conflitos armados. É muito egoísmo da minha parte. Mas, sei lá... Estou cansada. Eu nunca conversei com ninguém sobre isso. E, aí? Você sabe o que eu posso fazer para me sentir melhor?
Basicamente, Anna vive para o trabalho e quando está em casa desfruta apenas da companhia de seu gato e de um Smart drone, que é uma espécie de robô flutuante inteligente que a ajuda com as questões burocráticas da vida e outras nem tanto. O robozinho irônico é um dos pontos altos da história, pois ele é divertido e tem umas sacadas muito boas sobre a vida. É um personagem que também ajuda a demarcar o fato de que a história se passa no futuro.



O episódio da moça que teve a memória apagada volta a ocupar a mente de Anna após ela passar por uma série de situações desagradáveis. Anna acaba se deixando dominar por uma sensação, que em algum momento da vida todos nós experimentamos - a de que nada está dando certo.

Eventualmente nós vamos nos sentir perdidos e ao trazer a questão para o centro da história, “Oblivion” se torna uma narrativa difícil de não causar uma conexão imediata com os leitores. A HQ é um relato sobre a vida adulta e as questões difíceis que certamente iremos enfrentar. Ao mesmo tempo que Fabrício Martins e Laura Jardim utilizam da personagem para ilustrar o que é se sentir no fundo do poço, também aproveitam para nos mostrar alguma possibilidade de redenção.

Quando Anna se vê diante da possibilidade de apagar todas as suas memórias com a promessa de iniciar uma nova vida, ela precisa responder à pergunta inicial: “Se você pudesse começar sua vida novamente, você o faria?”


O vírus é uma linguagem do Gilson Ribeiro

O vírus é uma linguagem, escrito e ilustrado pelo Gilson Ribeiro, é uma HQ que utiliza da pandemia e do período de isolamento social para embarcar em diversos temas sobre a condição humana, sendo um dos focos principais a nossa relação com a comunicação. Quando nos vimos isolados pela crise sanitária, muitos dos nossos medos ficaram ainda mais evidentes e as desigualdades sociais ainda mais gritantes. Com a única opção de olhar para si e a própria realidade, o quadrinho nos coloca diante de um conto intimista e sensível, onde seu personagem demonstra na fala e nas expressões um grande espanto diante da vida.


Você há de concordar que, antes, histórias e poesia saíam aos jorros e as pessoas ouviam em roda. Depois passaram a lê-las sozinhas. Muito mais tarde já nem liam mais. Assistiam. Agora elas apenas se estilhaçam sensorialmente diante de informações fragmentadas que não geram conhecimento. Abduzidas por uma caixa de ressonância coletiva onde multidões projetam seus egos enquanto grandes corporações escaneiam seus dados pessoais. Nunca fomos tão multidão e tão solitários.
Boa parte da narrativa nos apresenta aos incômodos e reflexões de um poeta em isolamento. O autor nos presenteia com uma construção de frases e imagens que denotam tom de ansiedade e de urgência. Mesmo partindo de reflexões filosóficas que podem facilmente serem compreendidas (e nem por isso são simplórias), o fato de serem tão óbvias lhes conferem um tom de fantástico e Gilson Ribeiro aproveita esse olhar de lupa para óbvio e o banal para fazer uma provocação sobre como realizamos um esforço gigantesco para não ver e falar sobre o óbvio. Por vezes, o poeta parece desconectado da realidade, mas são nos aparentes pontos de desconexão que ele se torna mais genuíno e crível.

Em entrevistas, Gilson relata que todo o livro foi concebido em uma espécie de improviso, com cada página nascendo uma após a outra. Acredito que essa estrutura contribui para como o livro se torna uma conversa muito próxima e um processo de imersão que causa bastante identificação.

Resolvi improvisar. Não partir de nenhum roteiro pré-definido e construir uma história diretamente, página após página, num fluxo contínuo e automático.
Já em seu traço, podemos perceber diversas mensagens transmitidas através da luz e da sombra, além de referências a uma Belo Horizonte solitária. A representação do ambiente pandêmico, personagens circulando de máscara, um cenário quase sempre recluso a cômodos de uma casa, contrastam com um diálogo que quer ultrapassar paredes e alçar voos.

O autor trabalha diante da premissa de que já estávamos isolados muito antes da pandemia, em um processo que foi imposto pelo modelo de vida construído depois da internet e de uma comunicação que busca atender mais ao ego e ao mercado. “O vírus é uma linguagem” é uma HQ que demonstra que ainda que estejamos cada vez mais individualistas, as questões de nosso tempo sempre serão coletivas.

A fábrica de Hiroko Oyamada

A Fábrica da escritora japonesa Hiroko Oyamada (Editora Todavia, 2025) é um romance ousado e desafiador que apresenta os leitores a um complexo cinza gigantesco, com uma estrutura organizacional singular, ao qual conhecemos apenas como - a fábrica. Não sabemos o que eles produzem e nem onde estão localizados, mas aquela instituição, ironicamente, é o sonho de ascensão de qualquer trabalhador. Com um texto calculadamente metódico, remetendo ao ambiente sisudo e repressivo de uma fábrica, Hiroko Oyamada cria uma sátira surrealista sobre a alienação no trabalho moderno.


A autora faz uma escolha arriscada ao mesclar o fantástico a um tema que pode soar tão enfadonho como as questões do trabalho na contemporaneidade, mas no fim das contas, é exatamente essa junção do fascínio que a literatura fantástica carrega, com o bater de martelo da realidade que ajuda a criar um universo onírico e instigante. Em “A fábrica” cada diálogo e cada situação se constrói de modo a escancarar a falta de sentido que, por vezes, mora no dia a dia de uma fábrica e que molda a vida de um trabalhador.

Não me parece que alguém esteja conferindo os documentos depois que eu os reviso. Os envelopes com os documentos revisados desaparecem da prateleira onde são deixados. Eles são levados para algum lugar, mas ignoro qual seja ou quem os recebe. Também não sei se estou fazendo corretamente ou não o trabalho de revisão, o que impede qualquer progresso.

 

Dentro da fábrica se encontra de tudo. Seus funcionários tem acesso inclusive, a vários tipos de diversões. Toda a fábrica, que não é possível ver seu fim a olho nu, se molda de forma a dar a impressão de que sair dali não é necessário, sendo assim se encontra até moradias. A autora utiliza desse modelo, para tratar de questões muito atuais, como a simbiose entre a vida pessoal e a profissional, onde empregados são apenas parte da engrenagem de uma grande máquina.

Em vários momentos, Hiroko aproveita a própria mudança de parágrafos e de vozes entre os narradores, para causar confusão aos leitores. Por vezes, a voz narrativa muda e não sabemos qual dos três personagens principais está com a palavra, o que é uma estratégia inteligente de mostrar o nível de desumanização e o poder de massificação que alguns processos dentro do ambiente de trabalho submetem as pessoas. Os três personagens se misturam, de forma a dar uma unidade, uma formatação e um único modelo ao trabalhador substituível.

A voz de Hiroko Oyamada destaca-se na literatura japonesa contemporânea por sua abordagem sutil e incisiva das experiências de alienação no trabalho, um tema cada vez mais relevante em sociedades modernas. Explora a perda de identidade e a desumanização provocadas por ambientes corporativos rígidos e labirínticos e como essa imposição de um modo de viver se torna um desabafo ou uma denúncia sobre se perder no trabalho.

Sua escrita, marcada por um realismo estranho e inquietante, oferece uma crítica poderosa às estruturas laborais japonesas, ao mesmo tempo que dialoga com questões universais sobre rotina, conformismo e a fragilidade da individualidade. Dessa forma, Oyamada não apenas amplia os horizontes da literatura japonesa, mas também contribui de maneira significativa para a reflexão sobre o mal-estar contemporâneo no mundo do trabalho.

As chaminés tocam o céu: um conto para crianças velhas de Jean-Claude Grumberg

As chaminés tocam o céu: um conto para crianças velhas do escritor e dramaturgo francês Jean-Claude Grumberg (Todavia, 2024) é um livro curto, mas que nos traz diversos elementos para refletir sobre envelhecimento, luto, solidão, memória, afetos e os efeitos nefastos da guerra. Com um texto ágil e que por vezes soa propositalmente desconexo, o autor nos aproxima de uma senhora que está se preparando para passar o Natal sozinha e de repente se depara com o próprio Papai Noel entalado em sua chaminé. Os dois passam a travar um diálogo carregado de ironia, humor e tristeza, em um jogo narrativo onde o Natal é visto em preto e branco e as lembranças e as memórias ditarão o tom da história.


A conversa com o Papai Noel transporta a senhora diretamente para o passado. Ela, que possui origem judia, valoriza o Natal mais pelas lembranças que tem do passado e de seu marido, passa também a relembrar fragmentos dos horrores da guerra e como os judeus passaram a ser perseguidos. Primeiro foram os insultos, depois as estrelas demarcando origem, a perseguição nas calçadas, para logo depois passarem a conhecer uma chaminé onde não tinha Papai Noel ou qualquer relação com o Natal, mas que os transportavam para o céu.

Esses nomes gravados na pedra dura e fria, entre milhões de outros, são testemunho da barbárie dos tempos, do tempo das chaminés que os cuspiram nos céus, a dois passos de Pitchik e Pitchuk. São todos esses nomes gravados em tantas pedras e muros que nos impediram, à sra. Rosenberg e a mim, de acreditar piamente no Papai Noel e na coerência.
As chaminés tocam o céu é um grande jogo da memória, onde acontecimentos do passado, do presente e prospecções para o futuro vão surgindo como se ao mero acaso, como por força da correlação, demonstrando que a realidade, que o contexto histórico dos acontecimentos sempre serão parte de um efeito borboleta.

O real e o fantástico, por sua vez, se mostram como aliados da escrita de Grumberg, que transita com bastante criatividade entre o horror e o mágico, que consegue falar de afetos, de boas lembranças, mas que também descreve a tradição dos sapatinhos aos pés dos pinheiros de Natal, fazendo relação á tenebrosa imagem de amontoados de sapatinhos de vítimas do nazismo.

Desculpe? De onde vêm essas vozes? Do passado, do presente, da memória e do esquecimento. Esquecimento do que foi e não é mais. E os que como a sra. Rosen e eu mesmo já não sabem o que fazer de sua velha pele, nos chamados dias de festa, senão percorrer as alamedas dos cemitérios, esses aí, com um pouco de sorte e muita atenção, poderão agarrar no ar cochichos de crianças que não tiveram o tempo nem a alegria de acreditar ou não no Papai Noel...
Mais para o final do livro, a narrativa faz uma transição para a vida do próprio autor, onde ele traz alguns relatos pessoais e fala sobre algumas nuances do ato de escrever e publicar um livro. A obra termina de forma muito bonita, onde Jean-Claude Grumberg transforma o texto de agradecimentos em texto literário, pois “quando uma história termina, outra deve começar”.

Ressuscitar mamutes da Silvana Tavano

Ressuscitar mamutes da Silvana Tavano (Editora Autêntica, 2024) é uma leitura com teores cinematográficos. Ao mesclar ciência e literatura, nos sentimos imersos em uma espécie de documentário e esse tom ensaístico do texto não nos prepara para de repente cairmos em uma narrativa poética e memorialista. Em pouco mais de cem páginas, Silvana Tavano apresenta um texto original e que vai se desnudando aos poucos, por necessariamente precisar de um tempo de arqueologia e de polimento de fóssil para chegar em seu objetivo final.


Ressuscitar passados, inventar futuros: ciência e literatura viajam no tempo dos sonhos para chegar ao impossível. 
A autora faz o que chama de “o percurso dos mamutes” logo nas primeiras páginas da obra. Ela nos conta sobre estudos e notícias reais que falam sobre a possibilidade de ressuscitar mamutes e como essa ressurreição poderia contribuir para “evitar que perigosas quantidades de gás metano contaminem a atmosfera”.

Restituir os mamutes à vida soa como ficção, como pareciam ser os foguetes espaciais, os marca-passos, as cirurgias robóticas e centenas de achados fantásticos que se tornaram banais – a internet, os celulares, o mapeamento genético do DNA. A visão quântica de um corpo ocupando vários lugares ao mesmo tempo ou a imagem de uma Galáxia Fantasma, a trinta e dois milhões de anos-luz, registrada pelas lentes do Telescópio Espacial James Webb, ainda parecem um tipo de mágica. A que talvez também recrie mamutes.

Começar a leitura de “Ressuscitar mamutes” sem saber muito bem para onde a obra caminharia, foi algo positivo para minha experiência de leitura, pois embarquei de cabeça em seu convite para viajar pelo tempo e espaço. A cada página ficava surpreso e maravilhado com a destreza com que a autora foi apresentando temas como saudades, tempo e memória, tendo a importância da história por trás de todas as coisas como ponto de partida.

Os mamutes e todas as histórias e informações que se tem acesso após o estudo de um fóssil revelam um universo expandido e na obra de Silvana essa expansão nos levará para questões aparentemente banais, mas que também são dignas de arqueologia: as relações familiares.

Utilizando dos mamutes como uma grande metáfora, a narradora nos leva para uma investigação sobre a vida de sua mãe falecida. Como sua mãe era uma mulher extremamente discreta e de pouca fala, vemos a narrativa se transformar em um verdadeiro sítio arqueológico, onde os mínimos detalhes são de fundamental importância. É emocionante acompanhar como a narradora redescobre a própria mãe e com isso acaba se tornando também uma outra pessoa. A escrita funciona como um trabalho arqueológico das memórias.

A memória é colorida pela invenção. Encobrimos o que se apagou com os tons da imaginação, uma paleta de cores que refaz pessoas e cenários entre pinceladas de calma ou de fúria, com texturas ora aveludadas, ora vibrantes, retoques de última hora, às vezes sombrios. Mas quantas nuances se perdem quando tentamos recuperar uma tela do passado?
Em “Ressuscitar mamutes” vemos a literatura desempenhando seu papel mais bonito, que é o de eternizar histórias, sentimentos e pessoas. Fazer um contraponto com a arqueologia e tudo que emerge a partir da descoberta de um fóssil foi uma jogada de mestre e que abriu infinitas possibilidades de se discutir sobre a perenidade das coisas, algo que também se encaixa para as emoções e os afetos. Ao remontar a sua vida ao lado da mãe, a narradora faz um percurso que permite olhar para o passado, avaliar o presente e projetar um futuro.