Sem os dentes da frente do André Balbo

Sem os dentes da frente do André Balbo (Editora Aboio, 2023) é um livro de contos que já chama atenção pelo seu título e aposta em histórias que nos pegam de jeito por conta de toda a sua estranheza. O grande lance do livro está na sua escrita, que mescla o real e o fantástico para dar vazão a sentimentos e situações que revelam mais de si quando vistas pela lente do insólito e do improvável. Podemos dizer que o fio condutor dos contos são as diversas faces da falta, da ausência e do vazio, que aparecerão de formas diferentes e nada previsíveis.


O desaparecimento dos objetos do apartamento de uma mulher, uma chuva misteriosa sobre um cemitério à beira da privatização, uma descoberta tardia em um orfanato de meninas, a luta pela sobrevivência de uma nova espécie, uma partida de dominó em Araraquara, o segredo de um casal de búfalos, os dias de um dragão na praça de uma pequena cidade, o testemunho de um anão de jardim, as relações entre divórcio, dentes e autoritarismo.
André Balbo conseguiu transformar o sentido de falta e de ausência em uma imagem ao evocar uma boca sem os dentes da frente. Essa imagem serve como ponto de partida, como uma brecha para entrarmos de cabeça na proposta do livro. As faltas que Balbo descreve a cada conto, são de coisas que deveriam estar ali e que por algum motivo não estão. Essa ausência, será a principal causa de uma série de acontecimentos definitivos para os personagens.

Os meus dois contos preferidos são o primeiro e o último. A história que abre o livro, chamada “Casa vazia”, é sem dúvida um dos melhores contos que li nos últimos anos. A gente vê ali uma materialização (ou talvez uma desmaterialização) da falta de tirar o fôlego do leitor. É tão bem escrito, que conforme os objetos vão sumindo da casa, senti algo muito diferente do que achei que sentiria.

Assim como a personagem do conto, fui sendo sugado pela apatia, pela indiferença e um conformismo diante daqueles sumiços. Primeiro porque somos tomados de uma curiosidade de saber até que instância irão os sumiços e também porque de cara, percebemos que eles são reflexos de uma perda maior, o que se confirma no fechamento da história.

Poderia ter sido uma pulseira, a aliança, um relógio de parede, o controle da TV, mas quis o destino que numa manhã ela acordasse no chão frio. O sumiço da cama não incomodou a dona do apartamento. As coisas sumiam mesmo. Além do mais, tinha passado o último mês dormindo quase sempre no sofá. Depois de duas ou três noites, já nem mais sentia o desconforto. Era pequena e cabia com folga nos três assentos, pegava uma manta aveludada e estava feita.
No último conto, chamado “Bruxismo”, veremos de forma mais forte uma ironia e um certo deboche que estavam presentes em todas as outras histórias. A essa altura do livro, já estamos preparados para deparar com a seguinte situação em que o personagem se encontra: “Laura, é sério que você quer acabar com sete anos de casamento só porque eu ranjo os dentes enquanto durmo”?

A partir daí a sucessão de situações absurdas que se seguem são memoráveis, onde ironia, sarcasmo e violência andam lado e lado para contar uma história que tem camadas bem profundas em relação à dinâmica dos relacionamentos amorosos. De forma alguma você conseguirá prever para onde o conto te levará.

O caçador de Lars Kepler

O caçador de Lars Kepler (Alfaguara, 2020) é mais um thriller de investigação do casal de escritores suecos Alexandra Coelho Ahndoril e Alexander Ahndoril. A dupla possui algumas publicações de sucesso, que tem como protagonista o detetive Joona Linna. São títulos, que não necessariamente você precisa ler na ordem de lançamento. Em “O caçador” temos de volta alguns personagens fixos da série, envoltos em mais um mistério repleto de reviravoltas e mortes violentas.


O nicho de romance policial, que sempre foi dominado por escritores americanos e ingleses, agora divide o espaço com os nórdicos, que possuem uma escrita envolvente e eletrizante, exatamente como o gênero pede. Além do casal Ahndoril, podemos citar nomes como do norueguês Jo Nesbo e da sueca Camilla Lackberg. É sempre bom descobrir novas maneiras de contar uma história.

O detetive Joona Linna passou dois anos em uma prisão de segurança máxima quando recebeu uma inesperada visita. A polícia precisa de sua ajuda para deter um misterioso assassino: o chamam de O Caçador de Coelhos, pois a única conexão entre suas vítimas é que ouvem uma canção de ninar sobre coelhos antes de morrer. Joona agora tem a chance de sair da prisão para, com a policial Saga Bauer, tentar desvendar quem é esse misterioso caçador e salvar seus próximos alvos. Mas o que aparentemente parece ter motivações terroristas se transforma em um dos casos mais complexos de sua carreira.
Imaginem o seguinte cenário: após ouvir uma canção infantil macabra, que fala sobre coelhos, um assassino mascarado aparece na sua frente para matá-lo de forma que você sofra muito antes de morrer. O assassino é perspicaz, inteligente e não deixa rastros. A única coisa que se sabe é que ele segue seu plano à risca e que mais pessoas irão morrer.

Dez coelhinhos, todos de branco enfeitados,
Tentaram chegar ao céu na ponta de uma pipa amarrados
Rompeu-se a linha da pipa, todos despencaram,
Em vez de irem para o céu, todos eles acabaram…
Nove coelhinhos, todos de branco enfeitados,
Tentaram chegar ao céu na ponta de uma pipa amarrados…
Após a morte de uma figura muito importante da Suécia, a polícia de Estocolmo decide solicitar a ajuda do brilhante detetive Joona Linna para solucionar o caso. Todo o corpo de investigação sabe que Joona talvez possa ser a única pessoa capaz de desvendar as motivações e a identidade do assassino, que age de forma metódica e profissional.

Cabe comentar aqui a dedicação dos autores para construção de seus vilões. Partindo de alcunhas, que no caso desse livro seria “o caçador de coelhos”, os autores sempre utilizam de algo que mescla o sobrenatural e o real para aumentar a dose de terror das histórias, que por fim acabam se mostrando apenas mais uma faceta da violência de que somos capazes. Seus vilões são sempre extremamente profissionais e sem espaço para compaixão. Como o caçador se vale de um plano muito bem pensado e, aparentemente sem falhas, o mesmo fica muito a vontade a cada vítima que faz, o que aumenta a adrenalina de personagens e leitores.

Os autores repetem uma fórmula que deu muito certo nos demais volumes da série Joona Linna. Os capítulos são curtos e frenéticos. De forma inteligente, várias pistas vão sendo deixadas para os leitores durante a narrativa. Para nos confundir, algumas histórias paralelas e aparentemente desconectadas da trama principal, vão sendo apresentadas. Mas sempre chega o momento em que todas as histórias se encontram e as narrativas se completam para a solução dos mistérios.

HEARTSTOPPER: mais fortes juntos (vol.5) da Alice Oseman

HeartStopper: mais fortes juntos da Alice Oseman (Editora Seguinte, 2023) é o quinto volume da série, que ao que tudo indica, terminará na próxima publicação. De lá para cá, pudemos acompanhar os processos de descoberta e amadurecimento de Nick e Charlie, como dos demais personagens do quadrinho. Tratando sempre de forma responsável e leve sobre os temas da adolescência, Alice deu um passo a mais ao colocar as vivências da comunidade LGBTQIAP+ no centro da narrativa e de forma positiva.


A cada quadrinho, podemos perceber que Alice Oseman foca em alguns temas específicos. Se no volume anterior, boa parte da história focou em questões de saúde mental, por conta do distúrbio alimentar de Charlie, no volume cinco percebemos os personagens envolvidos com os primeiros grandes dilemas do início da vida adulta, como a escolha da faculdade e da profissão que irão seguir e a decisão sobre o início da vida sexual.

Nick, que é um ano mais velho que Charlie, precisa decidir para qual faculdade irá e qual curso irá fazer. Além de toda a pressão de praticamente precisar decidir o rumo da própria vida ainda tão jovem, Nick está lidando com a preocupação de se afastar de Charlie e a dúvida se a relação sobreviverá como um namoro a distância.

Paralelo a isso, ambos estão lidando com um desejo que já não passa mais despercebido nem para quem os observa. Tanto Nick, quanto Charlie, estão preparados para o que eles chamam de “novo passo”. Eles estão preparados para transar pela primeira vez e não sabem como dizer isso um para o outro.


Tanto para tratar da temática de propensão de futuro e carreira, quanto para as questões de sexualidade, o quadrinho consegue criar uma narrativa bastante informativa, sem ser didática. Para isso, Alice Oseman optou por um caminho muito feliz, que foi cercar os personagens de uma rede de apoio que se torna uma importante fonte de informação.

A mulher ruiva do Orhan Pamuk

A mulher ruiva do Orhan Pamuk (Companhia das Letras, 2023) conta a história do jovem Cem Çelik, um garoto de classe média que sempre sonhou ser escritor. Após ser abandonado pelo pai, que foi atrás de seus ideais revolucionários, Cem decide mudar de seu local de origem para se tornar aprendiz do mestre Mahmut, um experiente cavador de poços. Enquanto procuram água em um terreno improvável, começam a estabelecer uma relação que, por vezes, preenche o vazio paternal de Cem, inclusive na ambivalência entre amor e ódio. A rotina do garoto acaba sendo alterada, quando ele se depara com a figura de uma mulher a qual ele chama de “a mulher ruiva”. O fascínio de Cem pela mulher beira a obsessão, passará a ditar os seus pensamentos, guiar seus passos e mudará o curso de sua vida.


Enquanto adentram cada vez mais para o fundo da terra, munidos apenas de picareta, pá e balde, Cem e Mahmut vão revelando alguns detalhes de suas histórias de vida. Como Mahmut adora contar histórias nas horas de descanso, Cem se deixa embarcar nas suas narrativas, sempre tentando imaginar a fonte das mesmas e qual a fração que pertence às próprias vivências do velho cavador de poços e quais são fragmentos das muitas histórias que passaram por ele.

Ouvindo seus vívidos relatos sobre aprendizes descuidados, eu percebia que, em sua mente, o submundo, o mundo dos mortos e as profundezas da terra correspondiam, cada um deles, a partes determinadas e reconhecíveis do céu e do inferno. Segundo ele, quanto mais fundo cavávamos, mais perto chegávamos da esfera de Deus e de Seus anjos – embora a brisa fresca que soprava à meia-noite nos lembrasse que a cúpula azul do céu, com seus milhares de estrelas cintilantes, devia ser encontrada na direção oposta.
Orhan Pamuk concebeu uma história que encanta por suas diversas camadas. Quando trata da paixão de Cem pela mulher ruiva, ela o faz envolto em toda uma aura de mistério e sensualidade. O garoto Cem olha para a mulher ruiva com olhos de quem vê o próprio segredo da existência. Mesmo que incialmente não saibamos nem mesmo o seu nome, somos conquistados pelo própria idealização e amor que Cem criou pra si.

Uma outra faceta da obra que nos fascina é o trabalho de construção de um poço. A história, que se passa no início dos anos 80, em uma Turquia completamente diferente do que é hoje, narra métodos bastante arcaicos para se furar um poço. Mahmut e Cem utilizam de métodos totalmente manuais. No esforço de subir e descer o balde com toda a terra, pedras e demais fragmentos retirados do buraco, acompanhamos também o lapidar de suas próprias vivências. São exatamente nesses momentos de esforço e ações repetidas, que conhecemos a intimidade de Cem e muitas de suas ambições e dores. Pamuk nos insere em um clima que mescla um sentimento de admiração pela capacidade e coragem de descer vinte metros na terra de forma braçal, com o medo sempre eminente do soterramento total.

Para além disso, o autor trabalha muito bem ao mesclar em seu texto algumas referências a histórias clássicas e que dizem muito sobre os personagens. Cem é fissurado pelo mito de Édipo Rei. Um dos pontos de virada da narrativa é quando Mahmut quebra a rotina ao pedir Cem para contar uma história em seu lugar. Cem narra a história de Édipo Rei, do filho que mata o pai por engano e desposa, sem saber, com a própria mãe. O acesso a história do herói grego abre uma fenda na relação do jovem e do aprendiz.

A curiosidade de Cem pela história de Édipo Rei do Sófocles o leva a conhecer um outro conto épico de proporções e temática semelhantes: a história de Rostam e Sohrab, que faz parte do épico persa Shahnameh do século X, do poeta Ferdowsi. Ele seria uma espécie de anti-Édipo, onde o pai acaba por matar o próprio filho sem saber sua verdadeira identidade. Em ambas as histórias os heróis precisam lidar posteriormente com o grande sofrimento de terem aniquilado um parente próximo e as consequências desse ato.


A predileção de Cem, pelas trágicas histórias dos heróis gregos e persas, faz todo o sentido quando olhamos para seu histórico familiar e mais detidamente para sua relação com o próprio pai. “A mulher ruiva” é um livro que explora diversas minúcias que envolvem a paternidade.

Recuando um pouco para examinar o assunto racionalmente, eu conseguia entender o que havia de tão familiar na história de Sohrab e Rostam e sua semelhança com a história de Édipo. Na verdade, havia paralelos surpreendentes entre a vida de Édipo e a de Sohrab. Mas havia também uma diferença fundamental: Édipo matou o pai, ao passo que Sohrab foi morto pelo pai. Uma história é de parricídio, a outra, de filicídio.
Cem Çelik foi duramente marcado pela ausência paterna. Mais do que ele mesmo percebe. Todos os seus passos após o abandono do pai, foram, ainda que inconscientemente, uma forma de obter respostas e preencher o vazio.
Parece que todos nós desejaríamos ter um pai forte e decidido nos dizendo o que fazer e o que não fazer. Será que esse desejo nasce da dificuldade de distinguir o que devemos do que não devemos fazer, o que é certo do que é errado? Ou se deve ao fato de precisarmos o tempo todo nos convencer de que somos inocentes e não pecadores? A necessidade de um pai existe sempre ou nós a sentimos apenas quando estamos confusos ou angustiados, quando nosso mundo está vindo abaixo?
Pamuk faz reflexões profundas sobre a complexidade das relações humanas e o impacto do abandono. Colocar o personagem abandonado, cheio de dúvidas e questões existenciais para cavar um poço, é algo que apenas um escritor com a genialidade de Pamuk poderia conceber.

O homem de areia de Lars Kepler

O homem de areia (Alfaguara, 2018) é um livro de suspense do casal de escritores suecos Alexandra e Alexander Ahndoril, escrito sob o pseudônimo Lars Kepler. A obra é mais uma publicação que coloca o astuto detetive Joona Linna à frente das investigações. Os autores apostam em um texto fluido, de capítulos curtos e muitas reviravoltas. No início da narrativa, sabemos que o perigoso serial killer, conhecido como Jurek Walter, está isolado em uma prisão de segurança máxima em uma ala psiquiátrica, onde não pode interagir com ninguém. Ainda assim, os crimes creditados ao assassino, continuam a acontecer da forma que ele ameaçara que aconteceria no momento de sua prisão. Para desvendar o mistério, uma equipe especial de investigação precisará utilizar de métodos pouco convencionais para descobrir as origens e as motivações de Jurek, como também salvar vidas que ainda estão em perigo.


Em uma noite extremamente fria em Estocolmo, um homem aparece sozinho e desnorteado em uma ponte. Quando ele é encontrado, a hipotermia já toma conta de seu corpo. Ao ser levado para um hospital, descobre-se que há sete anos ele foi declarado morto.
Todas as circunstâncias indicam que o jovem sobrevivente, chamado Mikael Kohler-Frost, era uma das vítimas de Jurek Walter. Ele sumiu, juntamente com sua irmã Felicia, quando ainda eram crianças. As investigações que estavam paradas há quase uma década são retomadas, ainda que os investigadores não tenham mais informações para desvendar o caso do que no passado. Para conseguir destrinchar a história, Joona e os demais investigadores vão juntando pequenas migalhas, em um processo onde cada pequena informação é importante.

Algumas das pistas trazidas pelo sobrevivente, começam a vincular o caso a uma história eternizada pelo escritor alemão Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, que é um dos contos mais importantes do século XIX e precursor da literatura que explora o fantástico e o psicológico. No conto de fadas, o homem de areia é uma entidade que aparece para as crianças que tem dificuldade para dormir. Ele joga areia nos olhos da criança, que então cai no sono. É por esse motivo que, às vezes, acordamos com aquela areia no canto dos olhos.

De forma perturbadora, o garoto sobrevivente, que nunca conseguiu ver o rosto de seu sequestrador em todos os anos que ficou em cárcere, só consegue chamar seu algoz de “o homem de areia”. Com a mente um tanto quanto perturbada pelo trauma e pelos anos de isolamento, as pessoas vão precisar juntar as peças de seu depoimento, filtrando o que é fato e o que é imaginação, sendo que, às vezes, o relato da vítima parece assumir um caráter quase sobrenatural.

Joona Linna nunca se deu satisfeito com os rumos das investigações desde que os irmãos sumiram. Mesmo quando o caso foi dado como encerrado, sob a alegação de que os irmãos poderiam ter se afogado em um rio próximo da casa que moravam, Joona nunca abandonou sua narrativa de que as crianças teriam sido levadas por Jurek. Com o reaparecimento de Mikael, Joona vê a oportunidade perfeita de conseguir as respostas que sempre desejou e de fazer Jurek pagar por toda a crueldade de seus crimes. A inteligência de Jurek Walter e Joona Linna se transforma em um verdadeiro jogo de xadrez que deixa os leitores vidrados do início ao fim.


O muro de Céline Fraipont e Pierre Bailly

O muro de Céline Fraipont e Pierre Bailly (Editora Nemo, 2018) é um quadrinho que nos coloca como principais companhias de Rosie, uma menina de apenas 13 anos que vive numa cidadezinha do interior belga, em meados de 1988. Como se não bastasse toda a efervescência e intensidade da adolescência, Rosie também está enfrentando o processo de quebra da sua noção de lar com a separação dos pais. Enquanto vive sua melancolia, Rosie irá acessar um outro mundo, onde cabem as descobertas típicas da adolescência, mas também os perigos de uma mente procurando escapes emocionais.


A arte do quadrinho é meio soturna. Parece ser sempre noite. Os capítulos são intercalados por uma página toda preta que nos coloca muito próximos da melancolia que Rosie sente. Ela procura conforto em uma amiga em especial, como também na bebida e na música. O quadrinho é todo permeado de referências a bandas clássicas de punk rock.

Todos os trechos em que Rosie expõe suas ansiedades são bem fortes e mostram alguns estágios de um quadro depressivo. “Sei que é besta, mas, às vezes, brinco de me esconder por um tempão, não sei muito bem por quê. Tá bom, devo estar louca mesmo. De qualquer jeito, não contei pra ninguém. Tomo vários banhos quentes por dia. O calor no banheiro é como um ninhozinho de conforto. Às vezes, fico horas no banho. Se minha mãe soubesse!”

Algo um tanto revoltante na história é que vemos Rosie abandonada à própria sorte. Sua mãe se apaixonou por um outro homem e simplesmente decidiu ir embora para viver a paixão em outro país. Seu pai, amargurado e revoltado com o abandono da esposa, mergulhou na rotina de trabalho e passa dias sem aparecer em casa. Com isso, Rosie se vê sozinha com a própria dor e estar sozinha aos 13 anos, sem apoio emocional, pode levar uma adolescente para caminhos tortuosos.


“O muro” é um livro que trata de maneira franca e sensível sobre o rito de passagem, sobre o amadurecimento. Por mais que Rosie se sinta abandonada e esteja vivendo um caso grave de negligência parental, todo o tempo ela demonstra conhecer os seus limites e todos os seus atos “fora da curva” são realizados como uma forma de buscar pertencimento ou de desafiar uma realidade que não é nada amigável com ela.

No fim das contas, o muro aparece como uma representação tanto daquilo que nos fecha e que nos limita, como daquilo que pode ser descortinado e mostrar uma nova perspectiva, quando ousamos escalar a parede. Um muro pode ser um ponto de estagnação e também uma forma de ver mais alto.

Os invisíveis de Tino Freitas e Odilon Moraes

Os invisíveis de Tino Freitas e Odilon Moraes (Companhia das Letrinhas, 2021) é mais um exemplo de que algumas literaturas para as infâncias precisam ser lidas em qualquer idade. “Era uma vez um menino com um superpoder: na sua família só ele via os invisíveis”. Esse “era uma vez” é a porta de entrada para uma história que trata de diversos temas importantes, como a curiosidade genuína das crianças, em contraponto com a nossa predisposição (voluntária e involuntária) ao apagamento das vivências infantis. Carrega também um forte apelo social sobre o nosso olhar para o mundo e as pessoas que nos rodeiam.


O texto sensível de Tino, com o traço genial de Odilon, que apostou na caneta Bic preta para as ilustrações, compuseram uma obra que pede várias leituras. O menino da história olha para o mundo com olhos de quem quer ver. Já na ilustração de abertura vemos ele vestir uma capa de herói e o simples exercício do olhar é colocado como um superpoder.

No decorrer da história, o menino passa por um gari e o olha com curiosidade. Passa por um idoso sentado em um banco de praça e o observa com igual atenção. Aproxima de dois personagens que parecem estar em situação de rua e se agacha para conversar. Em todas as cenas, Odilon Moraes retrata as personagens invisibilizadas pelo modelo de sociedade que vivemos hoje, com corpo e sem cabeça. Isso causa um impacto visual importante para a narrativa.

Na sequência, o livro mostra como as vezes, o próprio garoto, nas vivências do dia a dia com a família, também se sente invisível. Então ele mesmo aparece representado sem cabeça, enquanto seus pais estão imersos em outras atividades. Isso nos faz refletir sobre que voz e que escuta dedicamos às crianças, sendo que o peso da rotina e das obrigações acabam roubando as oportunidades de interação.


O tempo vai passando e o livro passeia pelo ciclo da vida. O menino vai para a faculdade, consegue um emprego, se apaixona, vê a família diminuir e também aumentar, até que ele se esquece do poder que tinha. Aquele poder de se relacionar de forma diferente com o mundo que só as crianças conseguem.

A outra filha da Annie Ernaux

A outra filha da Annie Ernaux (Editora Fósforo, 2023) é uma verdadeira sessão de psicanálise, onde a autora explora o peso e o mistério da ausência de uma irmã que nunca conheceu. Annie descobre por acaso, ao ouvir uma conversa de sua mãe, que teve uma irmã morta pela difteria com apenas 6 anos de idade, falecida na quinta-feira Santa de 1938. Os anos seguintes da família serão de uma negação controlada, onde todos fingem não saber da história da menina morta. Com o decorrer dos anos, Annie vai entendendo que todo o silencio é apenas a forma que seus pais encontraram de lidar com a dor.


É tocante a forma como Annie Ernaux olha para seus pais na obra. Não existe julgamento pela lei do silêncio estabelecida, existe uma filha, a que viveu, tentando dar sentido à própria existência, que também passa pela existência de sua irmã e de seus pais. Ainda que o não dito tenha afetado profundamente a vida de Annie, em certo trecho da obra ela diz que não cabe a ela censurá-los, pois “os pais de uma criança morta não sabem o que a dor deles causa à criança que está viva”.

Com um texto sincero e visceral, ela fala sobre suas angústias e curiosidades em relação à irmã. Quando iniciamos o livro, imaginamos que o título “A outra filha” se trata da irmã morta, mas conforme a escritora devassa seus sentimentos, percebemos que a outra filha se trata da própria Annie, a irmã que veio depois.

Mas você não é minha irmã, você nunca foi minha irmã. Nós não brincamos, não comemos, não dormimos juntas. Eu nunca encostei em você, nunca te abracei. Não sei a cor dos seus olhos. Nunca te vi. Você não tem corpo nem voz, é apenas uma imagem chapada em algumas fotos em preto e branco. Não tenho lembranças suas. Quando nasci, você já tinha morrido havia dois anos e meio. Você é a criança dos céus, a menininha invisível de quem nunca falaram, a ausente de todas as conversas. Você é o segredo.
Com os resquícios deixados por poucas fotografias antigas, relatos tímidos e breves de familiares e objetos que pertenceram à menina, Annie vai construindo uma imagem sobre quem foi sua irmã em sua rápida passagem pela vida. Inevitavelmente a escritora começa a estabelecer comparações que versam sobre sua personalidade e a da irmã, a relação de seus pais com as lembranças e até mesmo o desenhar de um cenário onde a menina estivesse viva.

Como o livro é estruturado como se fosse uma carta para a irmã, Annie aproveita para falar abertamente sobre tudo o que sente e dá notícias de como a vida de seus pais seguiu após a perda. Ela dialoga com a irmã ao mesmo tempo que dialoga consigo. O texto da autora parece um grito em resposta a um pacto de silêncio involuntário firmado com seus pais. Principalmente com sua mãe.

Escrever para você é te falar dela o tempo todo, ela, a detentora da história, a que profere o julgamento, com quem o combate nunca cessou, exceto no fim, quando ela estava tão miserável, tão perdida em seu desatino, que, então, eu não queria que ela morresse.
Além de servir como uma forma de se entender, de comungar com os dilemas de sua família e internalizar a ausência da irmã, escrevendo uma carta, Annie Ernaux reflete sobre seu exercício de escrita e como o ato de escrever é a melhor representação de sua própria existência.

Vila Vermelho do Jeter Neves

Vila Vermelho do Jeter Neves (Editora Record, 2013) é um romance que conta a história de Caburé, um homem que após alcançar sucesso na vida, resolve fazer o trajeto de volta a Vila onde viveu. O retorno é físico e também um exercício de memória, onde ele nos apresenta não só a sua própria história, como também de uma Vila que abriga personagens simples e por isso complexos, que são um retrato do Brasil profundo e das questões sociais que moldam a nossa identidade.


Jeter Neves escreve de forma envolvente que mescla ironia, humor e linguagem poética dignas dos grandes nomes clássicos da literatura nacional. A narrativa é precisa, desenhada apenas daquilo que uma boa obra pede e que não se torna uma tarefa fácil quando boa parte do tema de exploração do livro está na rotina de uma vila bucólica, daquelas que os jovens abandonam quando querem “ser alguém na vida”. Segundo nosso narrador Caburé, Vila Vermelho era “um cu de Judas, o último lugar do planeta na mira de um míssil nuclear ou na rota de uma nave marciana”. Jeter consegue transformar a própria Vila Vermelho em um personagem inesquecível.

O “ser alguém na vida” é algo que move a narrativa de Vila Vermelho, pois o autor brinca exatamente com a ideia do que é ser um vencedor ou um perdedor na vida. Para tanto ele faz um passeio pelo nosso imaginário cultural que inicia em meados dos anos 50 até o tempo presente de Caburé. Jeter faz uma crítica a dita cultura do vencedor ao esmiuçar os lugares de onde vieram os nossos exemplos, os grandes heróis de uma geração que ainda precisa lidar com um acesso dificultado à informação.

Quando Caburé volta para Vila Vermelho, por conta de circunstâncias um pouco confusas, ele acaba se reencontrando com seu antigo professor, que agora está acamado, e começa a contar toda sua história de vida. É assim que nós vamos nos tornando íntimos da cidade de Vila Vermelho e de personagens apaixonantes. As trezentos e duas páginas de Vila Vermelho são necessárias para qualquer leitor se proclamar um habitante de Vila Vermelho.

Tié é o meu perdedor favorito, Professor, meu modelo supremo de fracasso. Os ianques têm um nome para isso: loser – perdedor, fracassado, fodido -, aprendi nos filmes deles.
Além de personagens divertidos e bem construídos como os gêmeos Tié e Taú, também desfilam pela história figuras como a cafetina Augustina, a menina Isadora, grande paixão da vida de Caburé, seu Giuseppe um apaixonado por livros, mas que odeia o cerceamento do pensamento gerado pelo currículo das escolas. Mas acredito que o personagem que realmente exerce uma revolução no pensamento de Caburé, e traz um vislumbre da vida para além da Vila, é o marinheiro Mário, que divide com Caburé suas impressões sobre a realidade através de cartões postais de cada lugar que visita.

A cada vinda, ele tinha mais e mais a cara do mundo lá fora. Até o cheiro mudou: de resina de lenha de fogão e de linguiça defumada de gente da Vila, ele ganhou cheiro de loja, pelo menos a imagem olfativa que eu tinha de loja.
A construção de Mário é um dos pontos altos da obra. Ele parte de Vila Vermelho cultuando a cultura americana, colocando o Tio Sam como modelo de desenvolvimento e civilidade, mas conforme vai conhecendo o mundo e tendo noção da dinâmica da exploração e da desigualdade, acaba se tornando uma luneta que mostra um mundo que Caburé tem resistência em enxergar. Em um dos postais enviados, Mário começa a enxergar um outro Brasil com um nível de crítica que até então não existia.

Belém do Pará, 10 de janeiro de 1956.

Caburé: O Amazonas é um mar. A floresta é um labirinto, estrada não existe, só se avança pelos rios. A terra dá de tudo: fruta, erva medicinal, peixe, caça e madeira. Se nosso país tem tanta riqueza, por que o povo vive nessa pindaíba? Riqueza e pobreza são carne e unha, aquela não vive sem esta. Precisamos descobrir o verdadeiro Brasil, marujo. Marinheiro Pompei...
Vila Vermelho é uma obra que pede imersão e ela vem naturalmente, pois somos conduzidos pelo relato sincero e saudoso de Caburé. Diante de seu relato é como se fossemos o silencioso professor que só faz escutar, e o fazemos com prazer. No desfilar de histórias trágicas, engraçadas, revolucionárias, libertadoras e românticas do povo de Vila Vermelho acabamos nos encontrando com nossa própria concepção trágica de heroísmo.

Tomie: volume 1 de Junji Ito

Tomie: volume 1 do Junji Ito (Pipoca e Nanquim, 2021) é um mangá japonês bastante cultuado que explora o terror e o suspense ao nos apresentar a uma personagem que não sabemos se é um espírito maligno ou alguma espécie de demônio. O que sabemos é que por onde Tomie passa, fica um rastro de violência e morte, principalmente se você for do sexo masculino. Tomie possui uma forma humana considerada irresistível aos homens. Eles se apaixonam loucamente, se tornam verdadeiros escravos e logo esse desejo se transforma em uma vontade de matar violentamente aquela que a pouco tempo era sua musa. Não importa quantas vezes Tomie é morta, pois ela sempre ressurge ainda mais bela e cruel.


As histórias são divididas em contos com início, meio e fim. Em cada uma delas, Junji Ito não poupa esforços na construção de uma narrativa que é violenta e cria uma aura densa ao redor do leitor. A tensão que fica no ar é quase palpável de tão bem construída e flerta com as histórias clássicas de terror japonesas e tantas outras que ganham força em diversas culturas através da oralidade.

Como uma espécie de mito, cada um dos contos obedece a uma mesma estrutura, exatamente como uma maldição se aplicando. Sendo assim, sabemos exatamente como cada conto irá terminar, mas o que prende o leitor é o contexto, a forma como os personagens relacionam com Tomie e como Junji Ito explora o processo de enfeitiçamento e loucura de cada história.


A violência aparece tanto na descrição dos fatos, como na ilustração de Junji Ito, que vai da representação singela para o escabroso, através de um horror gráfico que aparece num virar de páginas. Um grande feito de Junji Ito com a criação do universo de Tomie é que ele conseguiu alçar a história do mangá a um nível de lenda urbana.

O interessante da narrativa é que Tomie parece fazer pouco para o nível de violência que a história alcança. Tudo o que ela provoca parece surgir de uma sugestão de sua mera presença. É como se ela fosse uma força do caos que só faz aflorar o que há de mais selvagem na natureza daqueles que cruzam seu caminho.

Junji Ito começou a produzir o mangá Tomie numa época em que trabalhava como técnico de próteses dentárias. Ele aproveitava o tempo livre e os feriados para produzir e seu objetivo era concorrer ao Prêmio Umezz que contemplava novos talentos e foi um grande influenciador dos mangás de terror no Japão. Tomie também já foi inspiração para mais de uma dezena de filmes e mais recentemente serviu de base para uma série tailandesa da Netflix chamada Garota de Fora.