Um homem só do Christopher Isherwood

Um homem só do Christopher Isherwood, traduzido pela Débora Landsberg e com ótimo prefácio do João Silvério Trevisan (Companhia das Letras, 2021) é um livro que foi publicado pela primeira vez em 1964 e surpreende pelo quanto soa atual. A história acompanha um dia na vida de George, um professor de inglês de meia idade que está em processo de luto após perder seu marido em um acidente de carro. Além de tratar do tema da homoafetividade, a obra adentra discussões importantes sobre a solidão do homem gay e o envelhecimento.


Se ainda hoje, as vivências homossexuais são negligenciadas ou tratadas através de estereótipos, é difícil não parar para imaginar os estranhamentos que “Um homem só” deve ter causado na década de sessenta. É um livro que ao mesmo tempo consegue ser cru e lírico e não exita em mostrar as diversas formas que o preconceito pode impactar a vida de um homem. George, que é visto por todos como um homem muito reservado, na verdade é um homem que precisou se fechar para fugir da violência. A homofobia tirou de George até mesmo o direito ao luto. Ele, enquanto pessoa mais importante da vida de Jim não pôde se despedir.

A narrativa de Christopher Isherwood é genial. O autor escolhe partir de algo aparentemente simples, que é a descrição do cotidiano, mas ao escolher narrar um dia aleatório, consegue demonstrar o peso da solidão do personagem através da rotina e dos detalhes, o que torna o lado opressivo da solidão ainda maior. O livro inicia com o despertar de George pela manhã, já dando o tom dos passos que iremos acompanhar em diante. Passamos uma manhã, uma tarde e uma noite ao seu lado.

Acordar começa com dizer estou e agora. Então o que acorda fica um tempo deitado olhando para o teto e para si até se reconhecer como eu, e daí inferir eu estou, eu estou agora. Aqui vem em seguida, e pelo menos é negativamente reconfortante; pois aqui, esta manhã, é onde esperava se encontrar; chama-se casa.
Este é um trecho que, além de tocante, mostra o estado em que George se encontra, onde precisa reestabelecer sua presença no mundo diante da ausência de Jim. O narrador nos coloca dentro da casa e da cabeça de George, e utiliza de subterfúgios para demonstrar o peso de sua solidão. Em certo ponto, por exemplo, George fala de uma cozinha que não parece mais ser a mesma, pois numa cozinha de uma casa onde se vive a dois, precisa existir o esbarro acidental de corpos que se movimentam.

O café da manhã com Jim era um dos melhores momentos do dia. Era então, enquanto tomavam a segunda e a terceira xícaras de café, que tinham as melhores conversas. Falavam de tudo que lhes vinha à cabeça – inclusive da morte, é claro, e se existia vida depois dela, e, nesse caso, o que exatamente sobrevivia. Discutiam até as vantagens e desvantagens relativas de morrer de repente ou de saber que se está prestes a morrer.
Após observarmos a rotina de George em sua casa, começamos a acompanhar seu preparo e o trajeto para a universidade, onde é professor de inglês. Ao mesmo tempo, temos acesso a seus pensamentos sobre tudo que o cerca e nesse ponto o livro ganha mais força ao trabalhar muito bem a subjetividade de um homem gay para além do senso comum e dos estereótipos. 

É muito comum, em algumas produções atuais, seja na literatura, no cinema, nas séries, encontrarmos personagens da comunidade LGBT ocupando dois espaços que podem ser bem limitantes: ou o personagem é uma pessoa que beira a perfeição no que diz respeito a caráter e bondade, como uma forma de enfrentar o preconceito, ou é um personagem que está ali para ser “o representante” da comunidade, como se existisse apenas uma forma de ser queer e assim preencher uma cota de diversidade da produção.

A forma como a personalidade de George é construída é algo a frente do seu tempo, justamente porque sua subjetividade é de um homem gay que não está ali para representar toda a comunidade, mas sim para representar uma unidade de ser, o George com sua história de vida. Vemos um homem cheio de dualidades, que transita entre a persona do professor universitário confiável, respeitável e ilibado, mas que à medida que acessamos seus pensamentos, encontramos uma figura que por vezes está cheia de tristeza, ódio e raiva e que pode externar uma visão de mundo problemática.

Algo interessante na obra é também a forma como Isherwood não negligencia os desejos do personagem. As passagens em que ele visita sua própria sexualidade, seus desejos e até mesmo olha para outros corpos com admiração, nos faz refletir sobre a invisibilidades da sexualidade na maturidade. George é um homem maduro e também um ser desejante.

Estou vivo, ele diz para si mesmo, estou vivo! E a energia vital ondula calorosamente por ele, e o deleite, e o apetite. Que bom estar em um corpo – até mesmo essa carcaça velha decadente – que ainda tem sangue quente e sêmen vivo, medula abundante e carne saudável! Os jovens carrancudos nas esquinas sem dúvida o veem como um velhote ou, na melhor das hipóteses, como um possível ganho. Porém, com a força de seus braços, ombros e quadris jovens ele ainda reivindica um leve parentesco com eles...
Seja em casa, no trânsito enquanto dirige, na universidade enquanto ministra suas aulas e provoca os alunos com questões filosóficas, na interação com sua vizinha mais próxima que finge que o respeita, no jantar com sua amiga, no bar enquanto bebe com um de seus alunos, George está o tempo todo pensando e fazendo digressões sobre a vida.

Uma vida pequena de Hanya Yanagihara

Uma vida pequena da Hanya Yanagihara (Editora Record, 2024) finalista do Man Booker Prize e do National Book Award, além de candidato ao Pulitzer é um livro que divide opiniões e o motivo é bem compreensível. As questões sobre violência e saúde mental são tratadas de forma que podem soar como perturbadoras e traumatizantes. Na obra, acompanhamos a vida de quatro amigos que se conhecem na universidade e que vão construir uma relação que atravessará décadas. Willem, JB, Malcolm e Jude tem personalidades completamente diferentes, mas existem alguns fios que os ligam de forma intensa.


Um deles é uma quase materialização do amor incondicional. Outro é que são apoiadores e confidentes no que se refere às suas ambições profissionais e de vida. Paralelo a isso, existe um outro fio que os liga – e também a toda narrativa - que é a personalidade misteriosa de Jude St. Francis. Dos quatro, Jude é o amigo que menos se deixa conhecer e todos sabem que ele guarda para si uma dor tão grande que o impede de viver plenamente. Jude é um homem que vive com um trauma.

Podemos dizer que “Uma vida pequena” é também um romance de formação, pois vemos o amadurecimento dos quatro personagens desde a tenra idade. A história começa quando eles estão ali, pela faixa dos vinte anos, se descobrindo pelas ruas de Nova York, mas a narrativa viaja pelo tempo e aos poucos vai dando pistas sobre o passado de cada um deles, principalmente sobre o passado triste de Jude.

Mas estavam na era da realização, em que aceitar algo que não fosse sua primeira opção de vida parecia fraqueza, algo desprezível. Em algum ponto, aceitar o que parecia ser seu destino deixara de ser uma atitude digna e passara a ser sinal de covardia. Havia momentos em que a pressão para alcançar a felicidade era quase opressiva, como se a felicidade fosse algo que todos deviam e podiam conquistar, e que qualquer tipo de concessão na busca por ela fosse, de algum modo, culpa sua.
Nos primeiros capítulos, parece que estamos diante de um romance comum sobre a banalidade da vida, sobre aquele roteiro que recebemos ao nascer que é o próprio desenrolar da vida e suas obrigações. Mas à medida que a narrativa vai se cercando da timidez, do isolamento e do silêncio de Jude, vamos percebendo que acessaremos uma outra camada que é sobre sobrevivência.

Jude protege o seu passado a todo custo. Por mais que estabeleça uma relação bonita com seus amigos, existe um limite que nunca é ultrapassado. Ninguém sabe muito bem de onde Jude viera, quem eram seus pais ou o que aconteceu em sua infância e até nós mesmos, leitores, conhecemos a história de Jude conforme a vontade do narrador, que obedece a um fluxo de memória que as vezes cessa de forma repentina.

Jude sofre com uma dor nas pernas que se manifesta em momentos esporádicos. Quando suas crises de dor acontecem, é o único momento que demonstra alguma fragilidade e que revela um pouco de si, pois é uma dor que o paralisa. Jude diz aos amigos que essa dor é sequela de um acidente de carro que sofrera e não revela mais do que isso. Com o tempo, seus amigos deixam de fazer perguntas íntimas como uma forma de respeitar o que quer que tenha acontecido a ele, mas o silêncio de Jude acaba por chamar mais atenção do que ele mesmo deseja.

A forma como Hanya descreve o sofrimento de Jude, é um dos pontos que fez com que “Uma vida pequena” fosse tão comentado. O tema da saúde mental já é algo delicado e como a depressão de Jude alcança um nível onde ele começa a ter o hábito de se cortar para esvaziar a mente das aflições, os leitores se veem diante de descrições que são muito gráficas. Existe até uma discussão se a autora não exagerou ao descrever essas cenas, pois poderiam servir de estímulo para pessoas que se encontram na mesma situação.

O nível de tristeza que encontramos na obra, nitidamente é um projeto. Foi algo que a escritora construiu com a intenção de sensibilizar. As violências que Jude passa não são irreais, pois existem pessoas que experimentam ou experimentaram situações até mesmo piores que as descritas no livro. Quando lemos as violências soam, por vezes, como exageradas, e acredito que isso cause um choque.

Ainda que “Uma vida pequena” seja um livro difícil de ler, por conta de todos os gatilhos que pode promover em uma pessoa, creio que aqueles que conseguem ir até a última frase, não são movidos pela violência física e emocional que faz parte da obra, mas sim porque apesar de tudo, se trata de uma história de amor.

Como acompanhamos a jornada de Willem, JB, Malcolm e Jude ao longo de muitas décadas, acabamos estabelecendo uma aproximação com aqueles personagens. Passamos a entender melhor seus dilemas, suas dores e principalmente que eles se amam.

É muito bonita a forma como Hanya Yanagihara relata o amor e a amizade. Jude St. Francis é uma figura que serve quase como uma representação da dor, mas também como um exemplo da importância do afeto. Mesmo nos momentos em que está mais cego para o amor que seus amigos o dedicam, ele nunca é abandonado e vale ressaltar aqui, o amor e a proteção com que ele é tratado pelo Andy, médico que cuida dele durante toda a vida, e por Willem, personagem pelo qual o amor se apresenta em muitos níveis.

Nos últimos tempos, vinha pensando se a codependência seria assim, algo tão ruim. Sentia prazer em estar na presença dos amigos e aquilo não fazia mal a ninguém, então quem se importava se ele era codependente ou não? E, de qualquer forma, como uma amizade poderia ser mais codependente que um relacionamento a dois? Por que seria algo admirável quando você tinha vinte e sete anos, mas esquisito quando se tinha trinta e sete? Por que uma amizade não poderia ser tão boa quanto um namoro? Por que não poderia ser até melhor? Tratava-se de duas pessoas que permaneciam juntas, dia após dia, unidas não por sexo, atração física, dinheiro, filhos ou bens, mas apenas pela concordância em seguir em frente, numa dedicação mútua a uma união que não podia ser sistematizada.
No fim “Uma vida pequena” consegue a façanha de ser um livro que eu gostei, mas que não indicaria para qualquer pessoa. É um livro que mesmo quando indicado, isso precisa ser feito com algumas ressalvas. A partir da decisão de embarcar na leitura, é preciso estar preparado para imersão em uma obra que não tem qualquer intenção de nos poupar da violência física e psicológica, mas é também um belo exemplo de como uma salvação possível só pode existir no coletivo. “Uma vida pequena” é um livro sobre amor.

Mogens do Jens Peter Jacobsen

Mogens do escritor dinamarquês Jens Peter Jacobsen (1847-1885) é o segundo volume da Coleção Norte-Sul, que conta com organização e tradução do Guilherme da Silva Braga e lançado pela Editora Aboio. O intuito da coleção é apresentar aos leitores brasileiros alguns nomes importantes da literatura nórdica. A coleção conta com obras traduzidas diretamente do norueguês, dinamarquês e sueco. Mogens, originalmente publicado em 1872, foi o primeiro de uma série de livros de relatos curtos que o autor publicou e é considerada a primeira obra do naturalismo literário na Dinamarca. 



Desde a infância, Jacobsen demonstrava grande curiosidade pela natureza e pela botânica. A região que nasceu, onde tinha contato direto com a natureza, potencializou essa curiosidade pelo mundo natural, o que o levou, ainda criança, a colecionar e catalogar plantas. Com esse “estudo” ele escreveu uma espécie de fanzine chamado “As plantas mais estranhas de Silstrup”. Mais tarde, estudou botânica na Universidade de Copenhague e foi galardoado no ano de 1872 com a medalha de ouro da Academia Dinamarquesa pela sua contribuição e desenvolvimento da botânica no seu país.

Naturalmente, o seu fascínio pela ciência terminou por influenciar toda a sua produção literária. Nos primeiros capítulos de “Mogens”, conseguimos acessar esse universo onírico e ao mesmo tempo real que sua literatura desenha.

Era verão, em pleno dia, num canto da cerca. Perto havia um antigo carvalho, e a respeito do tronco poder-se ia dizer que se torcia em desespero ante a falta de harmonia entre as folhas novas e amareladas e os galhos pretos, tortos e grossos, que acima de tudo se pareciam com o rascunho grosseiro de antigos arabescos góticos.
O autor descreve com minúcias a ambientação da floresta na iminência do cair da chuva. É como se estivéssemos em uma galeria, apreciando um quadro. Enquanto a chuva não cai, presenciamos os detalhes de uma tela e após a chuva cair, a narrativa se torna fluida e com movimento, a ponto de conseguirmos vislumbrar o trajeto de uma gota.

Tudo cintilava, luzia e chapinhava. Troncos, galhos, folhas, tudo brilhava de umidade; cada pequena gota que caía na terra, na grama, na escada junto à cerca, no que quer que fosse, dividia-se e espalhava-se em mil pérolas delicadas. Pequenas gotas dependuravam-se ao longe e transformavam-se em gotas maiores, pingavam aqui, reuniam-se a outras gotas, tornavam-se pequenos regatos, corriam para longe em diminutos sulcos, caíam em grandes buracos e saíam em outros, pequenos, zarpavam levando consigo terra, lascas de madeira e pedaços de folhas, colocavam-nas no chão, faziam-nas flutuar, giravam-nas e tornavam a abandoná-las mais uma vez no chão...


Na obra, acompanhamos os relatos sobre a vida de Mogens, personagem que dá nome ao livro. A história é contada através de fragmentos, por onde desfilam pensamentos e visões de mundo que obedecem ao status do seu amor. O apaixonamento e as frustrações de Mogens obedecem às estações do ano.

Jacobsen teve uma vida curta e não recebeu a devida atenção dos leitores e da crítica enquanto ainda estava vivo. Após a publicação de seu segundo romance, cinco anos antes de sua morte, foi que o autor começou a ganhar alguma notoriedade. Posteriormente seria citado e serviria de inspiração para autores como Thomas Man, Freud e Kafka.

Noveletas: Liv & Planície do Sigbjørn Obstfelder

Noveletas: Liv & A Planície do escritor norueguês Sigbjørn Obstfelder - 1866/1900 (Editora Aboio, 2023) é o primeiro título da Coleção Norte-Sul, organizada e traduzida pelo Guilherme da Silva Braga, com a proposta de aproximar os leitores brasileiros de histórias e autores dos países nórdicos. É uma iniciativa interessante, visto que temos uma carência de publicações de obras dessa região e conhecer outros países através da literatura, é sempre uma experiência reveladora. A coleção já conta com obras traduzidas diretamente do norueguês, dinamarquês e sueco. 


Sigbjørn Obstfelder foi um escritor e poeta norueguês do século XIX, nascido na cidade de Stavanger e cresceu em uma família de dezesseis irmãos. Seu pai era padeiro e também um homem rígido e inacessível emocionalmente. Sua mãe faleceu quando Sigbjørn tinha apenas quatorze anos de idade.

O autor possui uma história de vida bastante triste e além da vivência de um lar sem referências, Sigbjørn também tinha episódios de colapso nervoso. Devido à sua saúde mental instável, acabou passando grande parte da vida internado em clínicas de repouso. 

Apesar do histórico triste, Sigbjørn é reconhecido como um dos maiores nomes da literatura norueguesa e considerado o primeiro poeta modernista do país. Sua vida influenciou bastante em sua obra, então encontraremos em seu texto, além da predominância da linguagem poética, a incidência de temas como a solidão e a melancolia.

Nas duas pequenas novelas que compõe a obra lançada pela Editora Aboio, temos a oportunidade de experimentar o estilo literário de Sigbjørn, com duas histórias poéticas e que denotam o olhar atento do narrador para o mundo. O tom é sempre contemplativo, poético e um verdadeiro deleite para leitores que como eu, gostam de grifar trechos marcantes do texto.


Perto da minha habitação existe um café que costumo visitar ao escurecer. Em geral o lugar está vazio. Gosto muito de ficar sentado lá. Posso ficar lá sentado por muito, muito tempo. Nem sei ao certo porque gosto tanto. Acho que na maioria das vezes nem chego a pensar, tenho apenas um sentimento de paz, de que naquele instante tudo está em silêncio, de que as perguntas grandes e difíceis e as dúvidas terríveis e tudo o que há de patético não se encontra por lá, de que respiro tranquilo e as pessoas andam ao meu redor e cuidam de seus afazeres e vivem em silêncio, sem reclamações e sem nenhuma exigência de que justamente eu também participe.
A prosa de Sigbjørn é abstrata, psicológica e com leves tons de uma espiritualidade que não chega a ser uma espiritualidade religiosa, mas a de um observador que precisa encontrar significado no mundo, nas coisas e nas sensações. Um observador que analisa o barulho dos passos da musa no corredor e consegue fazer correlações com seu possível estado de espírito.

Nas duas novelas, podemos perceber seu olhar para a solidão em relação à vivência na cidade e suas reflexões sobre possíveis formas de ser e estar na mesma, como também na relação com o outro, que a parece sempre por trás de uma névoa de bastante reserva.

A bem dizer eu conheço algumas pessoas nessa cidade, mas raramente faço visitas. E quando faço sinto um medo terrível. É como se eu temesse que fossem roubar uma parte de mim.
Aqui é tão solitário – nada de passos familiares, nada do farfalhar do vestido! É como se todas as pessoas tivessem ido embora e as casas estivessem vazias. Por vezes tenho a impressão de ouvir lamentos e gritos sufocados. Passei demasiado tempo sentado e sozinho e estou nervoso.
Sua prosa é escrita de forma fragmentada, o que ajuda na imersão de tudo o que o autor representa de exaltação do fluxo de memória, de percepção do cotidiano, do acaso, daquilo que porventura não se vê e só se percebe. A escrita de Sigbjørn Obstfelder é uma visita ao que não é facilmente dito - ao imensurável.

Ti amo da Hanne Ørstavik

Ti Amo da escritora norueguesa Hanne Ørstavik (Editora Aboio, 2023) é um romance autobiográfico que nos transforma em testemunhas de um processo de despedida. No relato, a autora se vê diante da iminência da morte de seu marido, que está com um câncer terminal. A obra relata com detalhes a descoberta da doença, o início do definhamento do corpo e o entendimento de que a morte está para chegar. O texto é estruturado como se fosse uma conversa da narradora com seu marido e ao mesmo tempo como um desabafo íntimo e corajoso de como o luto se instaurou em sua vida.


A obra não obedece a uma ordem cronológica dos fatos, pois como ela se assemelha a uma conversa, Hanne parece despejar as emoções conforme elas lhe batem. A narrativa segue um fluxo que retrata a forma como era possível lidar com cada situação, sendo a interpretação da morte e seu devido significado umas das maiores questões. Em um casamento de quatro anos, dois deles foram passados em meio a exames e sintomas, então o texto faz saltos entre lembranças que circulam entre medicamentos e a maneira como se conheceram e se apaixonaram.

A narrativa também é permeada por reflexões sobre o processo de escrita. Hanne Ørstavik é uma escritora consagrada em seu país e no momento em que receberam o diagnostico da doença, ela já estava em estágio avançado da escrita de um romance. Diante de um luto, que ainda não podia ser nomeado como tal, Hanne nos demonstra como o ato da escrita era a única coisa que podia lhe salvar.

Terminei de escrever o romance porque era a única coisa que eu podia fazer. Não posso fazer nada para ajudar você. Também não posso fazer nada por mim além disso. Terminar meu romance. Por que é isso que eu faço. Escrevo romances. É assim que me encontro no mundo, eu crio um lugar, ou o romance cria esse lugar para mim, nós fazemos isso juntos, e é lá que eu posso existir, no romance.
Eles, que antes do diagnóstico acreditavam ter todo o tempo do mundo para realizar seus sonhos, de repente precisam elaborar a presença da incerteza, do vazio e da dor. Duas pessoas, que antes eram verdadeiros cidadãos do mundo, por conta da projeção que receberam em suas profissões de escritora e editor, respectivamente, agora circulam entre o apartamento e o hospital, como se segurassem uma ampulheta com a própria vida dentro.


Por mais que o corpo já estivesse demonstrando os efeitos do câncer e até mesmo a falta de resposta ao tratamento de quimioterapia fosse uma resposta, ambos seguiam tentando ignorar o fim, com uma certeza escandalosa de que estavam enganando a si mesmos.

Como eu olho em seus olhos e ao mesmo tempo, o tempo todo, sei que você vai morrer. Temos sido eu e você e a morte há muito tempo. Mas, de certa maneira, somos eu e você, e a morte do outro lado, porque nós não falamos sobre a morte. Não entendo como você consegue não falar sobre ela. Só poso acreditar que em algum lugar dentro de você, você está pensando sobre isso. Você não fala para me poupar? Assim, vamos ficar os dois com ela, sozinhos.
“Ti amo” é uma obra onde só existem perguntas. Perguntas estas que talvez nunca tenhamos uma resposta satisfatória, mas que sempre emergem quando perdemos alguém. O bonito da obra é a forma como a autora utiliza da escrita e da literatura para investigar a dor e tudo aquilo que soa injusto durante nossa existência e quando não há mais o que dizer, o “ti amo” entra quase como vírgula e única possibilidade de eternizar aqueles que vão embora antes de nós.

Nezinho, o ufanista de Lucas Picchioni

Nezinho, o ufanista do Lucas Picchioni (Editora Quixote+DO, 2024) é uma novela que brinca com o insólito, o absurdo, o ultrajante e o grotesco através de um texto irônico e engraçado. O autor aposta no exagero para nos ambientar na fictícia cidade de Itupirá e na vida de personagens impagáveis. É um texto gostoso de ler, tanto pela dose de humor, como pela exploração de uma “atmosfera” que só existe nas pequenas cidades do interior de Minas. As situações narradas e até mesmo os nomes das personagens, nos transportam para um universo que ao mesmo tempo é exagerado e muito familiar.


Itupirá não era uma cidade grande. E não tinha nada e especial também. Era como qualquer outra cidade do norte de Minas Gerais. Possuía uma igreja, uma praça com um coreto, a prefeitura, a delegacia, as ruas de paralelepípedo e o rio. Esse último, sim, o grande atrativo da frugal cidadezinha.
Quando o prefeito Nezinho, recebe um comunicado da visita do presidente da república para inauguração de uma obra, ele vê seu lado ufanista exaltado, mas também diante de um grande entrave, uma vez que os cofres públicos estão completamente defasados para uma cerimônia desse porte. Após esgotar todas as possibilidades de empréstimos, aparece uma oportunidade inusitada e que ao mesmo tempo que pode solucionar a questão, também pode se transformar em um grande escândalo com potencial de destruir sua vida política.

Surpreendido com a notícia da visita do presidente, o prefeito Nezinho deseja recebê-lo com uma grande festa. Com os cofres públicos vazios, não lhe resta outra alternativa senão pedir um empréstimo para Dona Patrocínio, a mais conhecida cafetina da região. Mas o que deveria ser segredo vem à tona, iniciando um grande alvoroço na cidade.
Lucas Picchioni nos diverte com a construção de diálogos hilários e que escancaram um modo de fazer política que está no cerne da vida pública brasileira. Lucas poderia ter escolhido escrever um texto com um viés de denúncia ou de manifesto, mas ao escolher flertar com o cômico, o deboche e o exagero, características que conseguimos perceber na escrita de figuras como Jorge Amado e o próprio Machado de Assis – ele alcança os leitores de uma maneira diferente.

A construção dos personagens é algo marcante da obra, pois eles são muito bem explorados. Alguns deles possuem seus próprios capítulos, o que nos aproxima de suas histórias e intenções. Passeamos pela vida de “Nezinho, o ufanista”, “Madame Patrocínio, a libertina”, “Heronildes, o gatuno”, “Bené, o órfão”. Circulam também pelas páginas figuras hilárias como Alzira Batalha e Jacinto Amargo Pinto. Assim, o autor nos presenteia com momentos inesquecíveis como o trecho a seguir:

Em casa, quem cuidava de tudo era Dona Brígida, chamada por muitos de Dona Rígida. Rigidez na forma de ver o mundo. Católica devota e praticante, estava mais alinhada com os princípios cristãos do que o próprio Papa Pio XII. Gabava-se por saber os mandamentos de cor e salteado e vivia na igreja, infernizando a vida de Padre Aldo, a quem se referia como ´padre comunista´. Não era verdade, o clérigo era anarquista, todavia se decidiu tarde demais e já não sabia como ter outro sustento. A necessidade o mantivera vigário.
Lemos as peripécias do povo de Itupirá com um sorriso no rosto, por vezes uma gargalhada, mas também com uma vergonha sempre presente, que fica com a cabeça levemente encostada em nosso ombro. Através das pessoas, do cenário e do cotidiano da cidade de Itupirá, o narrador fala também sobre o Brasil e toda sua hipocrisia.

Lutas e metamorfoses de uma mulher do Édouard Louis

Lutas e metamorfoses de uma mulher do Édouard Louis (Editora Todavia, 2023) é uma obra sensível, onde o autor olha para a história de opressão vivida por sua mãe e descobre uma mulher que era “livre antes de seu nascimento”. Utilizando de uma linguagem poética e ao mesmo tempo realista, Édouard faz uma espécie de ensaio sobre o efeito das condições sociais (especificamente da pobreza) e do machismo na vida de uma mulher.


Édouard Louis começa o livro narrando um fato que foi um dos pontos de partida para que começasse a enxergar a própria mãe para além da maternidade. O autor encontrou uma foto, que não sabe exatamente como chegou em suas mãos, e que retrata sua mãe aos vinte anos de idade.

Ver essa foto me lembrou que esses vinte anos de vida destruídos não foram uma coisa natural, aconteceram pela ação de forças externas a ela – a sociedade, a masculinidade, meu pai -, e que, portanto, as coisas poderiam ter sido diferentes.
Assim como faz no livro “Quem matou meu pai”, onde nomeia todos os fatores e inclusive as pessoas responsáveis, direta ou indiretamente, pela sua degradação, em “Lutas e metamorfoses de uma mulher”, Édouard segue pelo mesmo caminho, mas aqui, ele também se coloca como um dos responsáveis pela opressão vivida por sua mãe.

Chorei diante dessa imagem porque fui, sem querer, ou talvez, melhor dizendo, com ela e às vezes contra ela, um dos atores dessa destruição.

A obra de Louis e sua aposta pelo tom autobiográfico, transporta os leitores para modos diferentes de analisar a vida e a realidade, e que no fim das contas nada mais são do que o descortinar de questões que estão o tempo todo diante de nós, mas que são invisibilizadas por convenções sociais e interesses mais.

Sua literatura, que vem sendo prestigiada em todo o mundo, se torna grandiosa exatamente por escancarar os fios que sustentam a nossa sociedade e o modo como ela funcionam hoje. E ao fazer isso, partindo das questões familiares e da simples analise de uma foto, o autor transforma suas obras em verdadeiros manifestos políticos.

Disseram-me que a literatura nunca deveria tentar explicar a realidade, apenas ilustrá-la, e escrevo para explicar e entender a vida dela. Disseram-me que a literatura nunca deveria se repetir, e tudo que que eu quero é escrever a mesma história, de novo e de novo, voltar a ela até que revele fragmentos da sua verdade, cavar um buraco atrás do outro até o ponto em que o que está escondido comece a ressumar.
Enquanto conta a história de sua mãe, Édouard reflete sobre uma sociedade que funciona por outra ordem quando se trata da vida de mulheres pobres. Vai nos mostrando, que para sua mãe e uma infinidade de mulheres, o que para muitos significa apenas uma mulher “cumprindo seu papel” dentro do seio familiar, para elas pode significar frustração, falta de perspectiva e violência.

Ela não realizou seus sonhos. Não conseguiu consertar o que via como a sucessão de acidentes que constituía sua vida. Não conseguiu encontrar uma maneira de viajar no tempo.

 

Após lidar com alguns traumas, vergonhas e desentendimentos da relação com a sua mãe, e de um tempo de afastamento necessário, é que Édouard Louis começou a entender o contexto em que ela vivia. Depois de ver sua mãe com vinte anos de idade em uma foto, com um semblante de quem sonhava com um futuro, é que ele passou a vê-la como alguém com uma história e como alguém que foi privada de várias outras possibilidade de ser e estar no mundo. Em um trecho muito bonito da obra, Édouard diz que aprendeu a “ver a violência ao se distanciar dela, e a via em todos os lugares”.

Além de todas as questões sociais que permeavam as malezas vividas pela sua mãe, Édouard relata o quanto a postura de seu pai, durante os vários anos de casamento, a colocaram em um clico de sofrimento e humilhação, onde precisava se submeter a situações e violências que ainda hoje são legitimadas pelo conservadorismo e pelo machismo.

O ponto de virada da obra, que é algo já explícito no título do livro, está no momento em que sua mãe decide romper com o ciclo de violência que vivia, algo que se inicia com a separação do marido. Contrariando a toda uma perspectiva que foi sendo construída durante sua vida, Monica inicia seu processo de metamorfose.

Para algumas pessoas, a identidade feminina é claramente uma identidade opressiva; para ela, tornar-se mulher foi uma conquista.

Quem matou meu pai do Édouard Louis

Quem matou meu pai do Édouard Louis (Editora Todavia, 2023) é um relato comovente e violento, onde o autor analisa a relação com o próprio pai através da penumbra da desigualdade social, da pobreza, da homofobia e de uma política que mata. Édouard Louis não deixa de lado suas mágoas em relação ao amor que esperava receber do pai, mas consegue ir além ao discutir sobre a influência do meio para a formação da subjetividade de um homem que sempre precisou lidar com a falta. Uma falta que aos poucos foi se transformando em silêncio e violência.


O livro é escrito em primeira pessoa e como se fosse uma carta endereçada ao pai. A narrativa começa após uma visita, feita depois de alguns anos de distanciamento, e após Édouard se deparar com um homem debilitado por conta de anos de serviço pesado e diversos tipos de privações causadas pela pobreza. O autor constrói uma espécie de manifesto político, que mostra como funciona o jogo da exploração dos mais pobres e como existe um mecanismo de escravização de corpos e mentes, onde pessoas exploradas são convencidas de que suas dificuldades e necessidades são “coisas da vida”. O mesmo mecanismo que conseguiu fazer com que seu pai, um operário, votasse em um candidato da extrema-direita.

Você não estava ali. Não estava nem mesmo boquiaberto porque perdera o luxo do espanto e do horror, nada mais era inesperado porque você não esperava mais nada, nada mais era violento porque você não chamava a violência de violência, chamava de vida, você não a chamava, ela estava ali, existia.
Édouard Louis constrói uma voz literária imponente ao utilizar da autobiografia e da escrita poética para narrar suas memórias. Em meados dos anos 90 e início dos anos 2000, o autor levou uma vida pobre e cheia de privações ao lado da família. Seu pai sempre foi operário e sua mãe uma dona de casa. Viveram no norte da França em uma época de graves crises políticas, portanto, nos relatos de Édouard, vemos claramente o impacto da desigualdade social na vida da classe operária francesa.

Na obra de Louis estabelecemos contato com alguns tipos de ausências. Temos a ausência clássica do diálogo entre homens, fato que é impulsionado pelo machismo, pela homofobia e que, por vezes, esbarra na violência. No caso de Édouard soma-se o fato de que o autor é um homem gay que precisou enfrentar o preconceito muito antes que a sua sexualidade fosse uma questão para ele mesmo. Era um menino gay sendo criado por um homem que foi convencido pela estrutura social de que abandonar a escola o mais rápido possível era uma questão de masculinidade.

Durante toda a minha infância ansiei por sua ausência. Voltava da escola no fim da tarde, lá pelas cinco horas. Quando me aproximava de casa, sabia que se o seu carro não estivesse estacionado na porta queria dizer que você tinha ido ao bar ou à casa do seu irmão e que voltaria tarde, talvez no início da madrugada. Se eu não via seu carro na calçada na frente de casa, sabia que iríamos comer sem você, que minha mãe acabaria dando de ombros e nos servindo o jantar e que eu só o veria no dia seguinte. Todos os dias, quando eu me aproximava da nossa rua, pensava no seu carro e implorava em silêncio: faça com que ele não esteja lá, faça com que ele não esteja lá, faça com que ele não esteja lá.

 


Desde muito cedo, Édouard precisou lidar com a ambivalência, com a ironia de ao mesmo tempo em que ansiava pelo amor do pai, também desejava distância de sua frieza e de seu silêncio. Quando pensamos sobre isso, o livro ganha um significado maior, pois estamos diante da sede de um filho por respostas e ele logo percebe que elas estavam todas ali. O autor parte de algo particular para descobrir que tudo era de instância cultural e coletiva.

Um dia, escrevi a seu respeito num caderno: escrever a história da vida dele é escrever a história da minha ausência.
Existe uma outra ausência na obra que é a ausência política. Édouard Louis é brilhante ao criar um manifesto político que descreve a forma sutil como a má política faz a manutenção dos pobres e da pobreza em um país. Ele faz isso enquanto conta a história de vida de seu pai, que sempre precisou trabalhar muito para conquistar pouco, que sempre precisou lutar para viver com o mínimo de dignidade.

Gostaria de tentar formular uma coisa: Quando penso nisso hoje, tenho a sensação de que a sua existência foi, apesar de você, e contra você, uma existência negativa. Você não teve dinheiro, não pôde estudar, não pôde viajar, não pôde realizar seus sonhos. Há na linguagem quase apenas negações para contar sua vida.
Édouard olha para seu pai, com a saúde frágil por conta dos anos de trabalho e ainda assim sem direito a uma assistência digna e se permite perdoar o homem que ele se tornou. Ele percebeu que estava olhando também para o povo pobre francês. O autor relata uma ocasião em que o pai ficou impossibilitado de trabalhar por conta de um acidente de trabalho e cita as inúmeras reformas e resoluções governamentais que foram diminuindo e até mesmo retirando os poucos auxílios que os trabalhadores tinham. Seu pai, com um problema sério de coluna, precisou voltar a trabalhar, encurvado, varrendo rua, para garantir sua sobrevivência.
Agosto de 2017 – o governo de Emmanuel Macron tira cinco euros por mês dos franceses mais necessitados, retém cinco euros por mês dos auxílios sociais que permitem aos mais pobre na França encontrar moradia e pagar aluguel. No mesmo dia, ou quase, não importa, anuncia uma redução de impostos para as pessoas mais ricas da França. Considera que os pobres são ricos demais e que os ricos não são ricos o bastante. O governo Macron determina que cinco euros não é nada. Eles não sabem. Dizem essas frases criminosas porque não sabem. Emmanuel Macron tira a comida da sua boca.

Édouard tem a coragem de dar nome aos bois e deixar registrado para a posteridade os nomes dos poderosos responsáveis pela morte de seu pai, como se essa fosse pelo menos uma forma de fazer alguma justiça.

Hollandre, Valls, El Khomri, Hirsch, Sarkozy, Macron, Bertrand, Chirac. A história do seu sofrimento tem nomes. A história da sua vida é a história dessas pessoas que se sucederam para abatê-lo. A história do seu corpo é a história desses nomes que se sucederam para destruí-lo. A história do seu corpo acusa a história política.

O posicionamento político de Édouard é doloroso e também serve como um alerta. Ao ver os seus e sua comunidade em um ciclo sem fim de abusos, opressões e limitações, o autor deixa um questionamento sobre o que a política representa para os políticos e como estamos diante de uma sucessão de nomes que entram e saem do poder, sem fazer uma mudança realmente significativa para mudar a ordem das coisas. Édouard critica o posicionamento de governos ditos de esquerda, mas que não conhecem sobre quem tanto falam.

Os poderosos podem reclamar de um governo de esquerda, podem reclamar de um governo de direita, mas um governo nunca lhes causa problemas digestivos, um governo nunca lhes tritura as costas, um governo nunca os arrasta para a praia. A política não muda a vida deles, ou muda muito pouco. Isto também é estranho, eles fazem a política, mas a política não tem quase nenhum efeito em suas vidas. Para os poderosos, na maior parte do tempo, a política é uma questão estética: uma forma de pensar, uma forma de ver o mundo, de construir sua persona. Para nós, significa viver ou morrer.
Édouard Louis mostra-se a cada livro como uma pessoa comprometida com as próprias convicções. Aposta no confronto com as ideias pré-estabelecidas, na provocação da classe dominante política e dos poderosos como uma das maneiras mais eficazes de promover alguma mudança significativa. E quando parte de uma história tão próxima e tão real como do próprio pai, da própria família e de uma comunidade da qual fez parte, seus relatos ganham mais corpo, principalmente ao mostrar que temas  como política e justiça social não estão desassociados das noções de sobrevivência, amor e ódio.

Na intimidade do silêncio da Cintia Brasileiro

Na intimidade do silêncio da Cintia Brasileiro (Editora Aboio, 2023) é um romance emocionante. Somos convidados a olhar para o óbvio, para o cotidiano, para o ciclo da vida, e principalmente para o silêncio, através de um texto poético e nada previsível. É um romance de formação, onde o fluxo de pensamento da protagonista e a forma como lida com as lembranças serão os condutores da narrativa. Assim como funciona o nosso próprio fluxo de pensamento, que nos leva de um ponto a outro da nossa história sem aviso prévio, alguns parágrafos de “Na intimidade do silêncio” também são construídos assim. Por conta da ótima escrita da autora, nos acostumamos rapidamente a seu jogo literário e conseguimos nos guiar pela história de Lia como se tivéssemos um mapa nas mãos.


O livro trata de temas delicados, como a perda dos pais ainda na infância, os desafios da construção da identidade quando perdemos nossa principal referência e a companhia constante do estigma violento de uma doença. Nossa narradora é mulher adulta, que olha para trás e consegue se colocar no lugar de alguém que analisa as próprias vivências, sem deixar de lado o que a sua versão infantil entendia do processo e sentiu perante cada situação.

Mãe, meu nariz sangrou na escola. Parecia que uma bomba tinha caído na sala de aula. Senti no ar o pavor que tomou conta de todos. Dentro de mim, tudo fervia. A professora congelou, não queria se aproximar e não sabia o que fazer com o lenço que tremia nas mãos dela. Eu também não sabia. Ninguém queria tocar em mim, mãe. O ventilador estava quebrado. Lá fora, um sol de rachar mamona, aí meu sangue escorreu pela minha boca, carteira, manchou meu uniforme e gotejou até o chão. Na sala, trinta crianças e a professora, e eu estava só. Peguei o lenço da mão dela, mãe. Tampei meu nariz, saí correndo em direção ao banheiro e desejei nunca mais ter que voltar.
Em vários capítulos nos deparamos com a forma fluida e não-linear das lembranças de Lia, como elas funcionam como estratégias de construção da personagem e ponto de retorno a um passado recente que são gatilhos para lembranças traumáticas e também afetuosas. Um exemplo é o capítulo “Meu naco de céu”, onde Lia está participando da festa de aniversário de um de seus alunos. Nesse ponto, somos automaticamente transportados não para uma de suas experiências, mas para algo que sempre sonhou e nunca teve.

Ela nem podia imaginar o quanto eu gosto de festas infantis, principalmente do momento de cantar os parabéns. Quando todos se reúnem em volta da mesa do bolo com doces, eu me permito apertar um botão-ficção e parar o tempo. Então, por alguns instantes, posso ocupar o lugar do aniversariante.
A história de vida de Lia é repleta de dor, mas também de muita luta e afeto. A dor se apresenta na maneira como seus pais se foram e como esse silêncio afetou a vida da personagem. A luta se desenha a partir de sua relação com as artes, seu olhar sincero para a própria história e sua busca consciente pelos próprios sonhos, como a mudança do interior do estado para estudar na Europa. O afeto é algo que transborda em toda a obra e garantem um dos momentos mais bonitos do livro. Lia se torna órfã de pai e mãe, mas existem algumas presenças em sua vida que são a personificação do amor.

Ali, na recepção do hospital, percebo que muitas famílias, de todas as formas e tamanhos, estão reunidas. Há mais ou menos duas décadas, a minha se resume a nós três: vovô, nossa vizinha e eu.
“Na intimidade do silêncio”, curiosamente é o primeiro romance de Cintia Brasileiro, e digo isso pela destreza com que ela narra a história. Seu texto é muito bem construído e chama atenção pela inteligência com que ela trabalha com a simultaneidade entre passado e presente. Para além disso, chama atenção a própria estrutura e diagramação de alguns trechos, que utilizam da poesia visual.



A obra versa sobre a descoberta em suas diversas facetas. Lia precisa se descobrir enquanto sujeito, enquanto mulher negra, enquanto artista, e o mais importante: descobrir quem é a Lia para além das tragédias que assolaram sua vida.

A contradição humana de Afonso Cruz

A contradição humana do Afonso Cruz (Editora Peirópolis, 2014) é um livro infantojuvenil genial. Ele pega treze situações inusitadas do dia a dia, que são facilmente explicadas pela ciência ou pela filosofia, mas que aos olhos das crianças se tornam verdadeiros mistérios e transforma em um texto engraçado e inteligente. O projeto gráfico e as ilustrações apostam em um vermelho vibrante, misturado com branco e preto. O texto interage com as ilustrações, que também são do Afonso Cruz e contribuem com a viagem alucinante que é este livro. A obra foi vencedora do Prêmio SPA/RTP para melhor livro de literatura infantojuvenil de 2011 e selecionado para a exposição White Ravens (2011).


Os personagens são impagáveis e divertidos. São construídos através de características comuns e ao mesmo tempo absurdas, mas que, aos olhos dos adultos já deixaram de ser fantásticas a algum tempo. A obra é um livro sobre as contradições da vida, sobre coisas que causam espanto ou incredulidade e que vamos naturalizando ao longo da vida. Ao escrever como se fosse uma criança, o autor se reconecta com esse espanto diante das coisas “inexplicáveis” da vida, como aquela famosa fase dos “porquês” que a maioria das crianças passam.

Temos a tia que ama pássaros, mas os prende em gaiolas. O vizinho músico que só toca canções tristes e fica feliz com isso. A moça que “possui mais amigos no mundo” e ao mesmo tempo se sente sozinha. A mulher que passa a vida na academia, se gaba de ter as coxas firmes, mas é incapaz de subir uns lances de escadas.


Brincando com as palavras, com situações familiares do nosso cotidiano e muita ironia, Afonso Cruz traz para o universo infantil algumas reflexões filosóficas em relação a contradição humana. O interessante de seu texto é elas, vista por olhos adultos, se torna apenas contradições propriamente ditas, que ganham um caráter explicado pela máxima “as coisas são como são”. Analisadas pelos olhos das crianças, as contradições viram mistério, curiosidade e ingrediente para fabulação.