A dança dos cabelos do Carlos Herculano Lopes (Atual Editora, 1993) é um romance que além de nos transportar para toda a dor e beleza de sua narrativa, também nos leva a um estado de apreciação da escrita enquanto arte. O viés literário que o autor explora no livro, demonstra um domínio impressionante da escrita e o mais surpreendente é que o mesmo tinha apenas vinte e cinco anos quando escreveu a obra. Cada vírgula, cada frase, cada parágrafo foi construído com maestria, pois são os fios condutores de uma viagem no tempo. Acompanhamos as memórias de três mulheres, de gerações diferentes e que carregam o mesmo nome. Três Isauras: avó, mãe e filha. “ A dança dos cabelos” foi o romance vencedor dos prêmios Guimarães Rosa (1984) e Lei Sarney (1988).
Como ponto de partida para entendermos o fio que liga as três mulheres, temos a história da Isaura avó, que passou pelo sofrimento de ter e criar quatorze filhos do homem que foi responsável pela tragédia que moldaria sua família e as demais Isauras. Ela fora obrigada a se casar com o homem que matou toda a sua família, até que um dia Isaura cumpre um desejo antigo, que a acompanha desde que sua vida fora roubada, que era jogar-se nas águas do rio Suaçuí.
Mesmo sabendo que aos poucos eu apodreço e que em breve não serei mais que um monte de ossos em uma cova qualquer onde talvez nasçam umas margaridas ou em alguma manhã venham pousar os canários, e, por mais definitiva que seja esta certeza, pelo fascínio cada vez mais forte que em mim exercem as águas cujo canto, em horas de calmaria, se mistura ao das acauãs que tornaram a voar ao redor da minha janela, eu ainda insisto em desvendar o obscuro de certas coisas que me aconteceram e ainda acontecem.
A obra demarca como um episódio extremo de violência pode deixar uma marca que perpassará por gerações e o Carlos Herculano Lopes faz isso de forma genial. Todo o texto é como um fio a ser bordado, que entremeia três histórias de vidas que são distintas em diversos pontos (por se tratarem de mulheres diferentes), mas que andam sempre com um fio invisível que parece impossível de romper.
Foi então, Isaura, que neste instante, eu percebi a dimensão da tragédia. E tive para sempre a certeza de que todos estavam mortos. E que nada mais adiantaria ser feito, pois Deus, com todos os seus seguidores e crenças, não passavam de mentirosos. E muito mais, muitas outras infâmias, eu pensei naqueles instantes em que tudo daria para também morrer.
Carlos Herculano Lopes explora de uma forma muito bonita e ao mesmo tempo dura, a complexidade do universo feminino. Ao olhar detidamente para a vida de três mulheres, de três gerações diferentes, deixa claro como os ciclos de violência e a desigualdade de gênero sempre foram um desafio para a dignidade e a liberdade das mulheres. Ainda que a cada geração, a posição das mulheres tem se movimentado para contextos cada vez melhores, algumas violências perpetuam, seja apoiada em causas sociais ou geracionais.
O autor trabalha com essa ideia, ao construir um texto que apresenta várias vozes e que não se preocupa em demarcar muito bem quando a voz narrativa muda. Ele dança entre as vozes da Isaura avó, da Isaura mãe e da Isaura filha, dando a entender que em diversos aspectos é como se aquelas mulheres fossem uma só, de tão enlaçadas que estão por um mesmo ponto de partida.
Mas fui obrigada a me calar pela violência de seus gritos seguidos da aridez de suas frases enquanto ele dizia: eu me cansei, Isaura, eu me cansei desta merda toda (...) E tem mais, muito mais: eu não quero você, te rejeito como desprezei o meu diploma e os louvores e as medalhas de melhor aluno. Eu não gosto, nunca gostei de você, que jamais me completou como homem e que simplesmente – e isto não basta – rezou e abriu as pernas.
A questão da memória é muito presente na obra. As vozes das três mulheres se cruzam, fazendo um trato realista do contexto social. O livro consegue tratar sobre as questões que perpassam as vivências femininas, apenas através de um relato de realidade. A dança dos cabelos é uma representação dos movimentos da vida, pois a vida, assim como os cabelos soltos ao vento, sempre obedecerá ao caminhar e as intempéries da vida.
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