Um garoto como outro qualquer do Pedro Karam (Editora Urutau, 2025) é um romance onde acompanhamos a infância, adolescência e vida adulta de um garoto se descobrindo enquanto homem gay. A obra trata com realismo impressionante a forma como a identidade de gênero é uma das facetas mais importantes da nossa formação enquanto indivíduos e como pequenos e grandes episódios de violência podem impactar a vida de uma pessoa. É um livro de fácil identificação para a comunidade LGBTQIAPN+ e principalmente para homens gays, pois transita por diversas situações que são quase certas no processo de entender a própria sexualidade.


Eu nasci um garoto como outro qualquer. Mas algo em mim mudou quando aflito, confuso e sem chão, tomei consciência de que meu destino era ser veado. Bicha para mim era uma coisa, assim... como posso dizer? ... muito feminina. Não se encaixava. Gay era neutro demais, sem brilho. Homossexual... parecia quase científico. Veado era a melhor palavra, definitivamente. Eu sabia que, se era mesmo inevitável ser isto que eu sou, que eu fosse me acostumar ao tal do veado então. A partir desta tomada de consciência, o jogo começava para valer.

Pedro Karam trabalha em sua narrativa com muitas questões gerais e também específicas que abrangem o entendimento da homossexualidade. Durante a leitura, me lembrei por diversas vezes do sentimento, tão forte quanto, que tive ao ler “O fim de Eddy” do escritor francês Édouard Louis. Na obra de Louis me impactou a forma como nós, gays, somos obrigados a pensar sobre o sexo propriamente dito, quando ainda não estamos prontos para isso. Acontece sempre que um adulto repreende uma criança com frases do tipo “homem não anda assim”, “homem não chora”, “isso aí não é brincadeira de menino”.

Enquanto estamos ali, apenas vivendo a infância e sem nenhum despertar para nada que seja referente a sexo e sexualidade, pois cada um terá o seu tempo a depender do contexto e da forma como foi criado, a homofobia nos rouba a infância e a oportunidade de nos descobrir de forma saudável. Incute confusão e medo, onde deveria haver apenas infância.

Em “Um garoto como outro qualquer”, experimentei sensação de pertencimento parecida quando Pedro Karam relata a nossa cansativa tentativa de se adequar, de se enquadrar no que é dito masculino para tentar fazer parte de um grupo que é visto como o normal.

Eu queria falar merda, coçar o saco, ouvir rap, deixar a bermuda arriada com quase um palmo de cueca aparecendo, adquirir naturalmente o borogodó de um moleque solto na vida, feliz consigo e ciente, porém, ao mesmo tempo, ingênuo acerca de sua condição de ser superior, ser macho. Pois para mim era isso que meus colegas eram: seres superiores. Não havia dúvidas quanto a isso. Eu sofria, eles não.
Durante muito tempo somos convencidos de sermos um erro, uma vergonha, ou até mesmo aquela palavra horrível que fundamentalistas religiosos usam para se referir a nós: abominação. E, por vezes, a própria reação da família, seja por homofobia ou por pura ignorância, pode nos enterrar em um buraco onde muitos não conseguem ter braços suficientes para se erguer de lá. Então nossos desejos passam a encontrar lugar apenas nas ruas escuras, nos parques arborizados, na urgência de um banheiro. A reação da família de nosso protagonista é um bom exemplo da forma sutil, mas não menos violenta que a homofobia e o preconceito podem se apresentar.

O garoto não é agredido após dizer ao pai e a mãe que se sente atraído por garotos, mas ao invés de acolher o filho e oferecer apoio para que ele possa entender com clareza o que está sentindo, ele recebe o desespero dos pais em forma de palavras duras e choro. Uma das coisas mais dolorosas para alguém em formação é frustrar a expectativa daqueles que nos criaram.

A partir da conversa fica semeado o terreno para crescimento de dor, dúvida, inadequação, não pertencimento e isolamento. O capítulo onde o narrador, de forma intensa e verborrágica, exprime para seus pais exatamente como se sente, onde a escrita do Pedro Karam se apresenta em fluxo contínuo, sem parágrafos, é uma coisa linda e dolorida de se ler. O personagem parece saber que nunca mais teria a oportunidade de uma conversa tão franca com os seus pais.

A gente torce pelo personagem e pelo seu processo de autoaceitação, que é ainda amais importante do que a aceitação externa. É o que dá a força necessária para pensar em direitos, amor, prazer e outras esferas da vida que nos faz humanos. Além de ser um livro sobre as experiências de um garoto gay, a obra de Karam é também uma história de amadurecimento e uma história de amor de um homem que é salvo por diversas manifestações da arte.