A boba da corte da Tati Bernardi (Editora Fósforo, 2025) é uma obra de autoficção onde a autora revisita a história de sua ascensão social da zona leste à elite intelectual paulistana. Ela olhava de longe para um grupo que queria muito fazer parte e munida do conselho de sua mãe, que se tornou quase um mantra – “você precisa ganhar dinheiro” – Tati chegou lá. Virou a prima bem sucedida que é o terror da ala dita “fracassada” da família, mas a estrutura social vai mostrar a ela que a elite funciona pela ordem do pertencimento de classe.
A personagem sou eu, as coisas, em certa medida, aconteceram mesmo, só que de forma menos exagerada do que coloco na história. Costumo dizer que meus livros partem de uma base de verdade e a ficção é todo o exagero que tem em volta”.
O livro começa como um disparo. Não temos tempo de fôlego. A autora narra com intensidade um episódio violento que desencadeou uma crise de pânico e ativou sua percepção de deslocamento social. Para comemorar seu aniversário de quarenta e três anos, Tati reúne alguns amigos em sua casa no requintado bairro de Higienópolis. Em dado momento, recebe uma mensagem aflita de uma amiga que havia parado no endereço errado por conta da similaridade dos nomes. Hoje Tati mora na rua Maranhão em Higienópolis, mas passou sua infância e adolescência no Largo do Maranhão, zona leste de São Paulo, periferia.
Quando a foto da localização dela chegou, apareceu o largo do Maranhão, o lugar em que brinquei tantas vezes quando era pequena. O lugar em que experimentei pela primeira vez uma palmilha para consertar minha pisada ‘pra dentro’ e me senti tão segura que saí correndo pelas ruas, enquanto meu pai desesperado me procurava de carro, com a minha mãe nervosa ao lado. Meu avô caminhava ali, no largo do Maranhão, depois de todas as refeições, porque acreditava que expelir os gases ao máximo era o que de melhor poderia fazer por sua longevidade. Ali eu empinei pipa, aprendi a andar de bicicleta (...)
O acontecimento a tira do eixo e a festa perde sentido. Uma de suas amigas mais próximas estava com medo de morrer exatamente no lugar onde ela havia nascido. Tati começa a olhar em volta, para seu apartamento e se questionar sobre a legitimidade do lugar que passara a ocupar. Por um momento, se sente uma estranha em sua própria existência, e também se tornam estranhos todos aqueles amigos ricos, influentes e intelectuais progressistas.
A boba da corte. É como Tati começa a se sentir a partir de então. Segundo o google, este é “um termo que se refere a uma figura que, na Idade Média e no Renascimento, era parte integrante das cortes reais e nobres (...) a principal função de um bobo da corte era entreter, mas também tinha uma licença para criticar, muitas vezes de forma irônica e sutil, os poderosos, sem sofrer consequências.
Tati passa a lembrar de vários episódios onde era tratada como a amiga ou a convidada excêntrica. De como a mesa de convidados se divertia com seus relatos de garota suburbana. No campo dos relacionamentos e do amor, ela relembra como era sempre cobrada a ser uma pessoa que não gostaria e que até mesmo não conseguia ser.
Quando Tati entende que seu desejo de pertencer, nunca será de fato um pertencimento real, passa então a olhar para tudo aquilo que torna a elite intelectual paulista insossa, desinteressante e contraditória. Passa a enxergar o poder do privilégio daqueles que nasceram ricos, tiveram a oportunidade de frequentar os melhores colégios, as melhores faculdades, os melhores lugares, mas que não foram capazes de produzir nada a partir dessas vivências. Tati debocha da elite, dá nome aos bois e percebe que ainda que não seja herdeira, possui uma história muito mais interessante que grande parte deste grupo.
Eu saí de uma casa sem livros, sem diplomas, sem qualquer incentivo à leitura e cheguei a algum lugar. Então vem um homem que teve tudo e está cercado de gente que não sabe para onde ir. Não sabe quem é. E então ele me diz, do alto do seu diploma de superioridade de alma elevada: ‘se você não pode mudar, realmente não sei aonde estamos indo’
Tati nos leva por uma narrativa sem filtros, cheia de contradições, corajosa e com percepções sobre sua própria vida e as pessoas que a rodeiam. Ninguém sai ileso do olhar aguçado na narradora. Nem ela mesma. Não pensa duas vezes em colocar no colo de cada um a responsabilidade pela própria inconsistência. Seja em questões que vão da família à sociedade, da amizade ao amor, Tati não tem medo de se mostrar vulnerável a algumas e nem de deixar claro aquilo que é, sempre foi ou se tornou inegociável para si.
Ela acumula versatilidade atuando como publicitária, contista, romancista, cronista, crítica literária, podcaster, roteirista e consegue transportar para o texto essa urgência de falar e de ser vista. Para quem, como eu, consome as produções de Tati do áudio visual, acaba acontecendo uma conexão um pouco maior, pois ao lê-la é como se também estivéssemos ouvindo o tom de voz de cada um de seus desabafos. Tati não tem medo do cancelamento, não tem medo de demonstrar raiva, desprezo e narra seus episódios de sucesso com o mesmo afinco com que exibe o fracasso e o constrangimento, o que é um prato cheio para o tipo de literatura que ela produz.
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