Caderno proibido da escritora italiana Alba de Céspedes (Companhia das Letras, 2022) é um romance escrito na década de 50 que chama atenção pela forma franca e intimista com que relata a situação da mulher em uma sociedade machista em pleno pós-guerra. A obra é o próprio fluxo de pensamento da narradora Valéria Cossati, enquanto registra seus dias em um caderno. A premissa é simples: uma mulher envolta com a rotina da família, da casa e de seu trabalho. O genial é que Alba de Céspedes consegue, a partir do simples, fazer a radiografia de uma sociedade e de uma época, apenas com a observação da própria realidade. É uma obra que perpassa questões psicológicas, sociais, existenciais, assim como o poder da escrita para repensar a própria identidade e a descoberta da subjetividade.
Alba trata de várias questões sobre a condição das mulheres, que ainda hoje são negligenciadas ou foco de violência de gênero e revelam o abismo que existe quando falamos sobre igualdade. Durante a leitura é impossível não tentar mensurar o impacto que o livro deve ter causado na época de seu lançamento. A autora nos coloca dentro da mente de Valéria e quando a personagem começa a registrar o próprio cotidiano, o fato de escrever faz com que, de alguma forma, as desigualdades e a falta de sentido da realidade venham à tona. Ficamos diante de uma mulher de 43 anos e educada de forma mais conservadora tentando equilibrar seus desejos e uma ânsia cada vez mais crescente por algum tipo de liberdade.
Existe, em minha índole, uma coisa que não consigo decifrar. Até agora, sempre pensei ser clara, simples, a ponto de não reservar a mim mesma, nem aos outros, nenhuma surpresa. No entanto, de uns tempos para cá já não tenho tanta certeza disso, mas não saberia definir de onde vem essa impressão. Para me reencontrar tal como sempre pensei ser, preciso evitar ficar sozinha: ao lado de Michele e dos meninos, readquiro aquele equilíbrio que era minha prerrogativa. A rua, ao contrário, me atordoa, me lança numa singular inquietação. Não sei explicar, mas fora de casa não sou mais eu. Basta sair pelo portão e me parece natural começar a viver uma vida totalmente diferente daquela costumeira, sinto vontade de percorrer ruas que não estão em meu itinerário cotidiano, encontrar pessoas novas, que desconheço até aquele momento, com as quais eu possa ficar alegre, rir. Talvez tudo isso queira dizer apenas que estou cansada, deveria tomar um fortificante.
A estrutura narrativa de “Caderno proibido” é muito bem executada. A escrita se apresenta como um diário, o que torna a leitura mais intimista e confessional. Como Valéria escreve em segredo e apenas para si, existe um medo sempre presente de que o caderno seja descoberto por seu marido Michelle, ou por um de seus filhos - Mirella e Riccardo - mas conforme os relatos se tornam um hábito e uma necessidade, o medo de ser franca com seus próprios sentimentos diante do caderno não existe. Ainda que por vezes soe ambíguo ou hipócrita, é empolgante acompanhar a visão de mundo de Valéria entrando em colapso.. O relato em primeira pessoa nos coloca muito próximos da personagem, o que gera sentimentos de repulsa e também de identificação.
O “Caderno proibido” é o simples decorrer da vida, portanto, não acontecem grandes sobressaltos ou reviravoltas mirabolantes. Ainda assim, é uma obra que captura o leitor desde as primeiras páginas, pois seus temas naturalmente se conectam com o cotidiano e alguns dilemas que conhecemos bem.
A questão do feminino e da emancipação das mulheres é o grande tema da obra. Embora traga reflexões que são muito mais fortes para a vivência das mulheres, em relação aos homens, a leitura acaba sendo uma oportunidade de pensar sobre temas importantes como jogos de poder, opressão e patriarcado. Felizmente, os temas não aparecem de forma didática ou professoral - eles estão ali carregados pela arte da escrita literária, estão ali porque existe uma personagem narrando a própria vida e ao fazê-lo os processos de repressão emocional, sexual e intelectual apenas brotam na frente dos nossos olhos exatamente como operam a gerações.
No entanto, jamais consigo me isolar, e só renunciando ao sono é que encontro um tempinho para escrever aqui. Se, quando estou em casa, interrompo o que estou fazendo, ou à noite, na cama, paro de ler e olho o vazio, há sempre alguém que pressurosamente me pergunta em que estou pensando. Mesmo que não seja verdade, respondo que estou pensando no escritório ou fazendo umas contas; em suma, devo sempre fingir só pensar em coisas práticas, e essa dissimulação me desgasta. Se dissesse que estou pensando em um problema moral, ou religioso, ou político, sei lá, eles começariam a rir, caçoando afetuosamente de mim, como fizeram na noite em que afirmei meu direito a ter um diário.
Enquanto acompanhamos Valéria relatar a relação com sua mãe e sua filha, percebemos, através da observação de três gerações de mulheres diferentes, como as questões de repressão, liberdade e os conflitos entre papeis sociais e identitários foram se modificando. A relação das mulheres com o trabalho, funciona como um bom exemplo. Enquanto a mãe de Valéria foi criada apenas para prover o lar e o trabalho fora de casa era algo impensável, Valéria já precisou entrar no mercado de trabalho movida por uma necessidade financeira. Já sua filha Mirella, estuda e decidiu trabalhar movida mais pelo gosto e em prol de sua visão de mundo.
“Caderno proibido” consegue ser uma obra atual, o que nos demonstra o tempo que leva para algumas convenções sociais alcançarem um novo paradigma. No livro vemos não só Valéria, mas milhares de mulheres que ainda hoje precisam enfrentar conflitos sobre a própria identidade, sobre a prisão dos papeis de gênero, imposições da família tradicional, envelhecimento, entre outras questões. O livro é a exploração do grande conflito entre a mulher que a sociedade espera ver e a mulher que elas realmente querem ser.
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