Velar por ela do escritor francês Jean-Baptiste Andrea (Editora Vestígio, 2024) é um romance de formação que acompanha a trajetória de Mimo Vitaliani. Mimo é apelido para Michelangelo Vitaliani, nome que recebeu do seu pai que era escultor. Com um texto afinado e poético, o autor nos apresenta um personagem complexo e que transita por uma Itália que transpira arte e cultura, mas que também está sendo tomada aos poucos pelo fascismo. Toda a história é incrementada por um contexto histórico e alguns acontecimentos e personalidades reais passeiam pela narrativa. A obra venceu os prêmios Fnac e Goncourt de 2023.
Eles são trinta e dois. Trinta e dois que ainda moram, naquele dia de outono de 1986, na abadia ao fim de uma estrada que faz empalidecer os que a percorrem. Em mil anos, nada mudou. Nem a íngreme estrada nem sua vertigem. Trinta e dois corações sólidos – é necessário tê-lo quando se vive à beira de um abismo -, trinta e dois corpos que também foram sólidos, na juventude. Em algumas horas, eles serão um a menos.
Ainda criança e após perder o pai para a guerra, Mimo é enviado por sua mãe da França para a Itália para ficar aos cuidados de “Tio Alberto”, um amigo da família que também era escultor. O intuito de sua mãe era dar ao filho a chance de seguir os caminhos artísticos de seu pai, aquele que o ensinara que uma escultura é uma anunciação, mas ao lado de Alberto, Mimo começará a experimentar uma vida cheia de privações.
Ela estendeu a mão, e eu peguei. Sem mais nem menos, infringindo de uma só vez insondáveis abismos de convenções e barreiras de classe. Viola estendeu a mão e eu a peguei, uma façanha que ninguém jamais comentou, uma revolução silenciosa. Viola estendeu a mão e eu a peguei, e foi nesse exato momento que me tornei escultor. Por serem de mundos completamente distintos, os dois amigos passam a se ver de forma furtiva, sendo o cemitério de Pietra d’Alba o ponto de encontro principal. Através de Viola, Mimo começa a ter acesso aos livros que ela pega escondido da biblioteca de sua família. Duas mentes inquietas se encontram e eles constituirão um relacionamento por vezes conturbado, mas que parecem unidos por um imã incapaz de romper a ligação.
É difícil imaginar que um dia ela foi uma simples montanha. A montanha se tornou uma pedreira em Polvaccio. De lá, um bloco de mármore foi retirado e entregue a um homem de rosto rude, com marcas de uma briga com um colega invejoso. O homem, fiel a sua filosofia, atacou a pedra para libertar a forma que ela já continha. E a mulher apareceu, de uma beleza indescritível, inclinada sobre o filho entregue ao sono da morte sobre seus joelhos. Um homem, um cinzel, um martelo, pedra-pomes. Tão pouco para produzir a maior obra-prima do Renascimento italiano. A mais bela estátua de todos os tempos, que estava simplesmente escondida dentro de uma pedra. Por mais que Michelangelo Buonarroti procurasse, gritasse, ele nunca mais encontrou nada igual em nenhum outro bloco de mármore. Suas outras Pietà parecem esboços da primeira.
O ano de 1917 desaguou lentamente nas margens de 1918, houve uma festa na praça do vilarejo para celebrar a transição de um mundo em guerra, em que homens se matavam, para um mundo em guerra, em que homens se matavam.
Durante boa parte da obra, Mimo fecha suas percepções para a realidade política e só tem olhos para sua ascensão enquanto artista e para continuar crescendo na cena artística, começa a realizar trabalhos de escultura para os fascistas e a frequentar os mesmos ciclos. Enquanto Viola tenta abrir seus olhos para os horrores do regime, Mimo apenas repete seu discurso de que o que ele faz é arte e não política, até que as garras do fascismo vão ficando cada vez mais afiadas.
Eu não fazia política, eu não fazia religião. Mas embora seja possível escapar da segunda, a primeira é uma amante perversa, cujos ardores acabariam por me alcançar.
“Velar por ela” é uma obra que versa sobre o amor impossível, sobre a importância da memória e da resistência diante de tempos de opressão no período entre as duas guerras mundiais. Levanta diversas reflexões sociais e coloca o papel da arte como uma forma de sobrevivência. Andrea tece uma narrativa que desnuda os sentimentos e mostra a maneira como eles moldam a nossa identidade.
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