10 minutos e 38 segundos neste mundo estranho da escritora turco-britânica Elif Shafak, é um romance que nos coloca cara a cara com as mazelas e belezas da natureza humana. Com uma escrita ágil e sensível, a autora trata de temas perturbadores, onde a dualidade das relações é a mesma que constrói e que destrói vidas. Leila, nossa personagem principal, está dando seus últimos suspiros, jogada dentro de uma caçamba de lixo em Istambul. Nesse intervalo pós-morte, ela irá revisitar sua história de vida, onde as memórias são evocadas por cores, sons, sabores e sensações.


Existem estudos que dizem que depois que o coração para de bater, o cérebro permanece ativo por no máximo 10 minutos e 38 segundos. Partindo dessa máxima, Elif Shafak nos apresenta à história de Leila e ao exercício de olhar para o corpo morto e abandonado de uma prostituta e ver história. Antes de ser a prostituta assassinada e jogada em uma caçamba de lixo, quem era Leila? Qual a sua história de vida? Quais os acontecimentos que fizeram com que ela abrisse mão da família e das tradições? O que a levou a uma vida que para muitos é símbolo da perdição e imoralidade?

No primeiro minuto após sua morte, a consciência de Leila Tequila começou a refluir, devagar e sempre, como a maré vazante que se afasta da praia. As células de seu cérebro, já sem sangue, ficaram completamente privadas de oxigênio. Mas elas não pararam de funcionar. Não de imediato. Uma última reserva de energia ativou incontáveis neurônios, fazendo com que eles se conectassem como se fosse a primeira vez. Embora seu coração houvesse parado de bater, seu cérebro resistia, recusando-se a desistir. Ele entrou num estado de consciência aumentada, observando a morte do corpo, mas não disposto a aceitar o próprio fim.
A narrativa acompanha os minutos que restam para a consciência de Leila Tequila e somos transportados ao interior da Turquia, para uma comunidade e uma família conservadora, quando Leila Tequila fora batizada como Leyla Afife Kamile. Desde muito nova, Leila precisou lidar com as expectativas de seu pai, que no fundo sempre sonhou com um filho homem, conforme manda a tradição. Homens para gerir família e negócios e mulheres para gerar e servir. Enquanto acompanhava a dinâmica familiar, na qual seu pai vivia com duas esposas, Leila queria estudar, decodificar as letras que via nos jornais, para saber o que acontece pelo mundo.

Ela não era perfeita, para começo de conversa; seus muitos defeitos atravessaram sua vida como rios subterrâneos.
A infância e a adolescência de Leila foram marcadas por uma espécie de afeto que era medido pelas regras da cultura e do patriarcado. Enquanto conseguiram controlar seus gostos, vontades e dúvidas sobre tudo, podemos dizer que a relação de Leila com o pai e suas duas esposas era tranquila. Tudo começa a mudar quando o espírito questionador de Leila aflora e um episódio de violência sexual irá mudar toda a dinâmica da família.

Em uma das passagens da obra, Leila vê um homem sendo hostilizado na rua por um grupo de pessoas e pergunta a sua mãe porque estão fazendo aquilo. A mãe diz que ele é um yazidi. Os yazidis foram historicamente e erroneamente acusados de "adoradores do diabo", o que resultou em perseguições severas ao longo dos séculos.


- Todo mundo sabe disso. Eles foram amaldiçoados.

- Por quem?

- Por Deus, Leila.

- Mas não foi Deus quem criou os yazidis?

- Claro que foi.

- Ele criou os yazidis e depois ficou com raiva por eles serem yazidis? Não faz sentido.
As lembranças de Leila vêm e vão sem obedecer a uma ordem cronológica e são acessadas através dos estímulos que seu corpo morto ainda consegue emitir. Obedecendo à crença de que revisitamos a vida quando estamos morrendo, vemos episódios importantes de suas vivências vindo a tona e as introduções destes capítulos aliam com muita beleza ciência, imaginação e poesia.

Cinco minutos depois que seu coração parou de bater, Leila se lembrou do nascimento do irmão. Uma lembrança que trazia consigo o gosto e o cheiro de guisado de bode com especiarias – cominho, semente de erva-doce, cravo, cebola, tomate, gordura de cauda e carne de carneiro.
Quando se vê em Istambul, sem apoio familiar e jogada a própria sorte, Leila irá se conectar com um grupo que ela chama de “os cinco” e que serão a sua casa e a sua família. Sinan Sabotagem, Nalan Nostalgia, Jameelah, Zaynab122 e Humeyra Hollywood aparecem nas lembranças de Leila e em capítulos especiais dedicados a cada um, que fazem parte da estrutura da narrativa. O grupo aparece como uma alternativa, um contraponto e um encontro entre pessoas marginalizadas, provando que a noção de família pode ser muito mais ampla do que a tradição diz.

A obra trabalha muito bem ao construir um retrato da cidade de Istambul, que surge de forma mágica e temerosa aos nossos olhos. Explorando os personagens e sua relação com a cidade, podemos perceber os embates entre tradição e modernidade, processos de ocidentalização, realidade da vida noturna e demais conflitos culturais que dividem as pessoas quase em castas, assim como toda a beleza e efervescência de uma cidade cosmopolita.

“10 minutos e 38 segundos neste mundo estranho” caminha pelos temas espinhosos da violência contra a mulher, prostituição, conservadorismo, segregação das minorias, como também faz reflexões brilhantes sobre a banalidade da morte. Diante da morte, quem possui direito a dignidade? Quem merece ser celebrado por quem foi em vida? Como é possível o correr dos dias e da normalidade quando o mundo de alguém se extinguiu?