Dona Bárbara do escritor venezuelano Rómulo Gallegos (Editora Pinard, 2020) é um clássico latino-americano publicado em 1929, que voltou a circular em nosso país após uma campanha de financiamento coletivo em uma edição caprichada. O livro é um dos maiores clássicos da literatura venezuelana e latino-americana. Vale lembrar que a primeira edição da obra chegou ao Brasil em meados dos anos 40, graças ao empenho do escritor Jorge Amado, que teve contato com o texto de Gallegos na Venezuela e encantado pelo primor de sua escrita, traduziu o livro para nosso idioma.


Poucas décadas depois, a obra saiu de catálogo e acabou caindo no esquecimento. Muitos fatores podem ser analisados para entender esse apagamento, sendo um deles a forma como nós, brasileiros, conhecemos e nos interessamos pouco pela cultura da América Latina em geral.

Somos estimulados desde cedo a consumir a cultura de países que estão muito longe do “nosso quintal” e com isso perdemos a oportunidade de aprofundar nas “latinidades”, de confabular com os nossos sobre tantos aspectos culturais que são diferentes e ao mesmo tempo tão similares sobre ser latino-americano. A ambientação nos Lllanos, que são as selvagens planícies venezuelanas, se torna símbolo, ao ser retratada como uma paisagem onde o homem e a natureza precisam coexistir.

Um outro ponto é que Dona Bárbara é um clássico e quando falamos sobre clássicos, também falamos sobre embarcar em um tipo de leitura e de fruição que parte da literatura como arte. Ler um clássico não é necessariamente fácil e exige dedicação. Um livro se torna um clássico não somente pela sua idade, mas por uma série de fatores que lhe conferem qualidade.

Algo que percebemos ao ler um clássico e que é confirmado por especialistas, é que uma obra precisa gabaritar em alguns pontos para ser considerada como tal, como sua universalidade e permanência ao tratar de temas humanos e sociais e ainda assim conseguir não soar datada. Um clássico resiste ao tempo. Precisa apresentar algum grau de inovação estética e linguística que dará um tom especial à história e ao modo de narrar.

O texto precisa conduzir os leitores a uma experiência de leitura que o transporte para além das páginas e que possam resvalar por reflexões filosóficas, simbólicas e psicológicas. Precisa inspirar o nascimento de outras obras ou até de reflexões que buscam entender a influência e o legado da obra e que naturalmente caminham para o reconhecimento crítico e popular. Assim como dizia Ítalo Calvino no livro “Por que ler os clássicos”, um clássico é um livro que “nunca terminou de dizer o que tinha a dizer”.

Estamos aqui, quase cem anos depois, lendo o que Rómulo Gallegos tinha a nos dizer sobre a Venezuela, sobre seu povo e toda a beleza e violência que paira sobre os llanos venezuelanos.

A llanura é bela e terrível ao mesmo tempo; nela cabem, folgadamente, formosa vida e morte atroz. Esta espreita por todas as partes; porém ali ninguém a teme. O Llano assusta; mas o medo do Llano não esfria o coração: é quente como o grande vento de sua imensidão ensolarada, como a febre de seus pântanos.
Para tanto, o autor nos apresenta a uma gama de personagens muito interessantes que pintam um retrato sobre o panorama político, econômico e social da Venezuela. Dona Bárbara e Santos Luzardo, os personagens principais, são ao mesmo tempo a ficção em sua forma artística, como também a representação de uma Venezuela enfrentando pequenas e grandes revoluções.

Santos Luzardo é um jovem que teve sua origem nos Llanos venezuelanos, mas que foi muito cedo para a capital. Sua partida teve essencialmente dois motivos: a dedicação aos estudos e a fuga de uma região onde uma espécie de coronelismo reinava e que foi responsável pela violência que dizimou quase que toda a sua família. Ele retorna para a região, cheio de ideais calcados na ordem e na lei, para ver que fim poderia dar às terras de sua família que ficaram praticamente abandonadas.

Nessa região, Luzardo encontrará Dona Bárbara, uma mulher forte e destemida, que movida por um desejo de vingança, e a custos de manobras de caráter duvidoso e muita violência se tornou a mulher mais poderosa e rica da região, também conhecida como “a devoradora de homens”.

Tal era a famosa dona Bárbara: luxúria e superstição, cobiça e crueldade, e lá no fundo da alma sombria, uma pequena coisa pura e dolorosa: a lembrança de Asdrúbal, o amor frustrado que podia fazê-la boa. Porém mesmo isto adquiria as terríveis características de um culto bárbaro que exigia sacrifícios humanos: a lembrança de Asdrúbal a assaltava sempre que tropeçava em seu caminho um homem do qual valeria a pena fazer presa.
Assim como a geografia, a flora e a fauna dos Llanos venezuelanos são os personagens principais da obra, Dona Bárbara, com toda sua coragem, maldade, destreza, dureza, instinto de sobrevivência e beleza se torna a própria representação do Llano. Dona Bárbara é a mulher e a paisagem, é o próprio medo do Llano que não esfria o coração.

A história vai girar em torno dos conflitos entre Dona Bárbara e Santos Luzardo. Enquanto Dona Bárbara representa o símbolo do embate de uma força primitiva e das tradições, Luzardo chega como um "estrangeiro" com ideais da civilização, da lei e do progresso. A personalidade de Dona Bárbara talvez seja o elemento mais forte do livro, pois é surpreendente ver uma mulher colocada em uma situação de poder e subjugando homens em uma história escrita há quase cem anos atrás.

- Até quando vocês estarão com isso dos poderes de dona Bárbara? O que acontece é que essa mulher tem pelo no peito, como têm que ter todos os que pretendem se fazer respeitar nesta terra.
Dona Bárbara é um livro que nos prende por toda sua dinâmica que entrelaça conflitos e paixões. Utiliza de ótimas alegorias que nos dizem sobre poder, violência e dominação, como também os caminhos da construção de uma identidade nacional venezuelana. O texto de Gallegos mescla tons épicos e líricos, ao mesmo tempo em que constrói uma narrativa realista, com bastante uso de vocabulário regional. Dona Bárbara é, ao mesmo tempo, vilã e vítima, que transforma seus traumas e desilusões na máxima do olho por olho, dente por dente.