Verão de lenço vermelho da russa Elena Malíssova e da ucraniana Katerina Silvánova (Editora Seguinte, 2024) é um romance que explora as emoções do primeiro amor em plena adolescência. Iura e Volódia se conhecem durante um acampamento de férias, onde Iura é um pioneiro um tanto rebelde e Volódia é um dos monitores e a própria encarnação da responsabilidade. É exatamente essa diferença que irá servir como imã e o mundo dos garotos irá colidir de forma intensa. Estamos nos anos 80, em plena União Soviética, em uma região onde hoje se encontra a Rússia. A homoafetividade além de ser vista como desvio de caráter e doença, também era algo do qual não podia se falar. Em momentos furtivos e em lugares escondidos, os garotos irão construir um vínculo que mudará para sempre suas vidas, pois estarão à mercê da falta de liberdade pessoal e diante de uma opressão institucionalizada.
O livro começa vinte anos a frente dos acontecimentos que serão relatos. Iura é um homem adulto, tentando localizar a região onde antes existia o acampamento Andorinha. A União Soviética já não existe mais e o local do acampamento se encontra em ruínas e com vestígios de que se tornará um condomínio residencial. Conforme caminha pelos lugares marcantes de sua infância e adolescência, Iura começa a nos contar a história que vivera ali.
Iura invade o local onde era o acampamento Andorinha, e enquanto reconhece os espaços através dos escombros e da escuridão, vai juntando os pedaços de suas próprias memórias e nos transportará para o verão de 1986.
Iura é um garoto que se permite mais, que questiona ordens arbitrárias e precisa entender o porquê das coisas, enquanto Volódia foi moldado a seguir as regras, a ser um garoto exemplar. Essa visão de mundo é transportada para os afetos, pois enquanto Iura quer viver o amor da forma que será possível viver, Volódia cede ao medo e ao discurso da homossexualidade como doença e passa a ver as terapias de conversão como uma possibilidade.
Quando foi publicado e instantaneamente se popularizou na internet, a obra foi censurada na Rússia, país que possui leis retrógradas contra a comunidade LGBTQIAPN+. Políticos conservadores alegaram que o livro “desfigura a ideia do que era a União Soviética”, “promove valores ocidentais” e contém “propaganda LGBT”. Leis sancionadas pelo presidente russo tornam ilegal o que eles chamam de “propaganda gay”, que seria a divulgação de informações sobre relacionamentos LGBTQIAPN+ à qualquer cidadão do país através da internet, mídia, livros, serviços audiovisuais, cinema e publicidade.
O livro começa vinte anos a frente dos acontecimentos que serão relatos. Iura é um homem adulto, tentando localizar a região onde antes existia o acampamento Andorinha. A União Soviética já não existe mais e o local do acampamento se encontra em ruínas e com vestígios de que se tornará um condomínio residencial. Conforme caminha pelos lugares marcantes de sua infância e adolescência, Iura começa a nos contar a história que vivera ali.
No entanto, ao frear perto da placa de entrada familiar – apagada, capenga e com as letras quase ilegíveis -, Iura se deparou com o que mais temia. Da cerca metálica que antes se estendia por todo o perímetro, sobravam apenas os postes de ferro; nem as hastes, nem os gradis haviam sobrevivido. Os bonitos portões vermelhos e amarelos, quase majestosos, estavam quebrados: uma das portas mal se segurava nas dobradiças enferrujadas e tortas, a outra jazia ali ao lado, coberta pela grama que crescia, pelo jeito, havia mais de um ano.O acampamento andorinha é algo parecido com o que conhecemos por aqui como escoteiros. Um lugar bonito, cercado por mata, com um rio que passa por perto, com atividades e todo projetado para estimular o desenvolvimento e a interação entre os jovens. Tudo isso em prol de cultivar noções de amadurecimento, responsabilidade e no período em questão, representava também uma forma de fidelizar as próximas gerações ao regime da União Soviética.
Os pioneiros... Lenços vermelhos, ginástica, formações em fila, banhos de rio e fogueiras - fazia tanto tempo. Na época da União Soviética, os pioneiros eram tipo escoteiros. A gente aprendia os valores comunistas e da vida em comunidade e participava de atividades cívicas, jogos, brincadeiras e acampamentos. Todo mundo sabia que uma criança era pioneira por causa do lenço vermelho no pescoço, seu bem mais precioso.Assim como nos anos anteriores, Iura chegou para mais uma temporada no acampamento sem grandes expectativas. Participar daquelas atividades era algo que realizava mais por obrigação do que por gosto. Inclusive, Iura era conhecido no acampamento por seu temperamento rebelde e sempre recebia algum tipo de castigo durante a temporada, mas naquele ano, sua atenção foi capturada pelo monitor Volódia.
À direita do mastro da bandeira, rodeado pelas crianças da tropa cinco, estava o novo monitor. De short azul-escuro, camisa branca, lenço vermelho e óculos. Devia estar na faculdade, provavelmente no primeiro ano, era o monitor mais jovem e o mais tenso. O vento aromático acariciava seus cabelos, que escapavam de debaixo do barrete escarlate, as pernas brancas tinham manchas vermelhas (recentemente coçadas) de picada de mosquito, e seu olhar concentrado passeava entre os cocurutos das crianças, os lábios murmurando: - Onze, doze, ter... treze.O processo de apaixonamento dos garotos é tratado de forma bonita, lenta e sensível. Devido ao contexto em que a história se passa, onde a homossexualidade não era nem um assunto, Iura demora a entender realmente o que passa a sentir por Volódia e apenas obedece a uma espécie de instinto e vontade de estar sempre por perto.
Estava começando a gostar de Volódia de verdade. E, ao pensar no que significava a palavra gostar, Iura ficava meio confuso. Era estranho, porque gostar queria dizer que existia um sentimento de simpatia e afeição, que não era bem o que ele sentia em relação ao monitor. Assim, sem saber como explicar a si mesmo o que sentia, chamava aquele sentimento de “vontade de fazer amizade”, ou até “grande vontade de fazer amizade”. Nunca havia acontecido algo do tipo com Iura.“Verão de lenço vermelho” é um romance juvenil que consegue tratar de temas importantes, como homofobia e repressão política. Ao ambientar a história em um acampamento soviético, em um período que a própria URSS já caminhava para seu declínio, as autoras demonstram o poder da repressão cultural através da personalidade de cada um dos personagens e da sua forma de ver o mundo.
As autoras de “Verão de lenço vermelho” Elena Malíssova e Katerina Silvánova, tiveram que abandonar o país por conta das ameaças que passaram a receber e da ampliação das leis homofóbicas. Com isso, “Verão de lenço vermelho” se tornou um símbolo de resistência, ainda que não possua nada de transgressor em suas páginas, além de uma descrição delicada da descoberta do amor. Esse fato, só demonstra o quanto a literatura pode ser um instrumento poderoso de resistência à repressão política.
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