Hospício é deus: diário I da Maura Lopes Cançado (Companhia das Letras, 2024) é um livro autobiográfico, onde a autora relata suas experiências após passagem por diversos hospitais psiquiátricos. Com um texto poético, visceral e também realista, Maura retrata a dura realidade dos chamados “hospícios” do início dos anos 60. Ao registrar seus dias em forma de um diário, a autora compôs uma obra que é ao mesmo tempo um exercício literário potente e uma denúncia sobre a forma como enxergamos e tratamos o tema da loucura. É uma obra que além de seu valor literário, também serve como norte para discutirmos sobre o contexto de uma época de manicômios e práticas psiquiátricas violentas.
Além de ser um relato íntimo, o livro chama a atenção pela sua forma. Nos vemos diante de um diário que mescla o texto de testemunho e autobiográfico com reflexões filosóficas. Maura possui um olhar sobre o todo que é instigante, onde não sabemos mensurar o que é parte da sua loucura e o que é parte de quem Maura é em sua essência.
A obra inicia com um relato que é fundamental para entendermos quem é Maura Lopes Cançado. A autora fala sobre sua infância em São Gonçalo do Abaeté, no interior de Minas Gerais, em uma época onde sua família era a mais rica e influente da região. É onde também conhecemos a relação de Maura com a própria família e principalmente com seu pai, figura com a qual possuía uma relação de amor intensa. Maura diz que se “não fosse a limitação do seu meio, seria o maior homem do mundo”. 
A escrita de Maura, aliada a suas vivências e a uma inteligência admirável, nos leva a refletir sobre os limites ou as interseções entre loucura e lucidez. Na maior parte do tempo, Maura se apresenta como uma mulher completamente consciente, sã e com um olhar crítico sobre o mundo.
A escrita e a vida de Maura Lopes Cançado sofreram um processo cruel de apagamento. Maura foi de membro influente da elite e da família tradicional mineira para uma total desconhecida após seus episódios de internações e demais desdobramentos de seu adoecimento mental. Uma mulher que escrevia para um dos maiores jornais do país, teve seu texto enterrado juntamente com sua história. Por isso é justo e necessário ver sua obra sendo redescoberta, pois Maura evoca temas importantes sobre saúde mental e direitos humanos.
Além de ser um relato íntimo, o livro chama a atenção pela sua forma. Nos vemos diante de um diário que mescla o texto de testemunho e autobiográfico com reflexões filosóficas. Maura possui um olhar sobre o todo que é instigante, onde não sabemos mensurar o que é parte da sua loucura e o que é parte de quem Maura é em sua essência.
Nasci numa bela fazenda do interior de Minas, onde meu pai era respeitado e temido como o homem mais rico e valente da região. Fui uma criança bonita, todos dizem, e sei pelos retratos. Há sete anos mamãe não tinha filhos quando se deu meu nascimento. Daí tornar-me objeto de atenção de toda família e orgulho de meu pai.Desde a infância Maura se mostrava uma criança singular. Possuía uma saúde um tanto frágil, o que aumentava a vigilância de seus pais, como também já na infância demonstrava algumas atitudes e pensamentos que denunciavam o adoecimento de sua saúde mental. Maura diz em seu diário que “como criança, foi excessiva”. E o excesso será o tom de tudo em sua vida.
Movia-me num mundo que desprezava, por que ligar às convenções desse mundo?Algo muito interessante das reflexões de Maura, é que, ela própria, possuía uma clareza muito forte de sua própria loucura, a ponto de se internar por vontade própria. A cada sentimento estranho, medos e paranoias quase inexplicáveis, ela utilizava da ajuda da escrita para pensar sobre a sua própria loucura de uma forma que nos assombra, pois é repleta de lucidez e contradiz o que o senso comum diz sobre os “loucos”.
Desde menina experimentei a sensação de que uma parede de vidro me separava das pessoas. Podia vê-las, tocá-las – mas não as sentia de fato. Acontecia ser tomada de tão grande pânico que corria para mamãe e papai, agarrava-me a eles, os objetos se me distanciavam, percebia modificações nas coisas – e não sabia explicar.Um outro ponto característico da obra está na forma como a escritora produz uma narrativa que soa fragmentada e entrecortada. Maura pode opinar sobre um assunto em uma linha, para na seguinte já se colocar a contradizer tudo o que foi dito. É como se a sua escrita acompanhasse com fidelidade o seu fluxo de pensamento que, por vezes, estava à mercê de medicamentos e da violência diária do hospital.
Não aceito nem compreendo a loucura. Parece-me que toda a humanidade é responsável pela doença mental de cada indivíduo. Só a humanidade toda evitaria a loucura de cada um.
Suas reflexões e provocações garantem trechos memoráveis sobre temas como a representação dos manicômios, sobre questões de subjetividade e identidade e até sobre dimensões existenciais e religiosas.  
Amar a Deus? Deus, meu pai? Ora, a meu pai eu abraçava, pedia coisas, tocava. Como podia ser meu pai um ser de quem só tinha notícias - além de tudo terríveis? Minhas relações com Deus foram as piores possíveis - eu não me confessava odiá-lo por medo da sua cólera. Mas a verdade é que fugia-lhe como julgava possível - e jamais o amei. Deus foi o demônio da minha infância.
É bonito e humano rezar. Também não creio em nenhum deus, não creio nas divindades para as quais se reza. Rezo pela poesia da oração. Rezo para sentir-me próxima de meus semelhantes, ao fazer o mesmo pedido, ao externar a mesma necessidade. Eu rezo porque amo - é para mim o meio de comunicação.
A escrita e a vida de Maura Lopes Cançado sofreram um processo cruel de apagamento. Maura foi de membro influente da elite e da família tradicional mineira para uma total desconhecida após seus episódios de internações e demais desdobramentos de seu adoecimento mental. Uma mulher que escrevia para um dos maiores jornais do país, teve seu texto enterrado juntamente com sua história. Por isso é justo e necessário ver sua obra sendo redescoberta, pois Maura evoca temas importantes sobre saúde mental e direitos humanos.
 
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