O rio que me corta por dentro, romance de estreia do escritor cearense Raul Damasceno (Astral Cultural, 2025) é um livro sensível e que nos prende desde a primeira página. Em um vilarejo chamado Carrasco, nas entranhas do sertão, conhecemos as famílias de Cícero e Luzimar, dois garotos que são unha e carne e que vão descobrindo que seus sentimentos um pelo outro são mais intensos do que a cultura daquele lugar permite.
Um era a correnteza do outro neste rio profundo em que o pé nunca alcançava o chão.
Criando uma atmosfera que nos faz sentir moradores de Carrasco, Raul Damasceno nos torna vizinhos de Cícero, Luzimar, Aneci, Zulmira, Nonato, Rosa, Chico Meteoro, Toin, entre outros personagens que são a pura magia do Brasil profundo.
Essa magia se movimenta através da escrita, onde o autor utiliza de maneira poética dos regionalismos que nascem das crenças, das falas, do sotaque e da cultura do sertão cearense. Raul utiliza de elementos tão familiares da nossa cultura, que algumas passagens evocam lembranças, cheiros e sensações.
Sábado à tarde. Nonato tomava banho com sabonete Senador; vestia camisa branca de abotoar e penteava o cabelo em frente ao espelhinho de moldura alaranjada. Depois de um gole de café, saía pedalando a bicicleta Monark vermelha. Com o cheiro da alfazema impregnado, era certo que ia ao Gogó da Ema.Nos últimos anos, temos visto uma efervescência de histórias que voltaram seu olhar para a beleza do cotidiano e das pessoas ditas comuns. O que podemos perceber é que esse transitar pelas histórias nunca, ou pouco contadas é um caminho sem volta. Quanta beleza existe no cotidiano e nas pessoas que nos rodeiam? Quanta beleza existe nas vivências historicamente invisibilizadas? É uma resposta que vai sendo respondida a cada vez que uma narrativa como a de Raul Damasceno é escrita.
À noite, ouvindo Zezé e Luciano cantar baixinho “Me leva pra casa’, a saudade fazia um nó apertado no peito de Cícero. Apertava não saber nada sobre a mãe. Apertava quando os vizinhos perguntavam a respeito dela. Apertava ouvir Nonato chamá-la de rapariga sempre que chegava bêbado em casa. Apertava tanto que doía. Parecia que nem futuro existia mais. Tudo era tão distante neste sertão imenso.Enquanto vive em estado de espera, Cícero divide a vida com seu amigo Luzimar. De forma bonita e um tanto conturbada, os dois vão descobrindo seus desejos e o amor brota de forma tão natural quanto o dia que vira noite.
Ao som da correnteza, com o sol queimando as nucas. Luzimar não queria falar nada. Ter Cícero ao seu lado já bastava. Não era preciso esticar o braço para um tocar no outro. Não era preciso dizer palavra para saber o que sentiam. Os olhos de Luzimar nos de Cícero. Seus corpos, perto demais, ameaçavam explodir. Todos os desejos e sentimentos se condensavam. Cícero não estava disposto a seguir lutando contra os desígnios carnais. Enfrentaria o que tivesse de enfrentar, pagaria o preço que fosse cobrado por seu ato, mas queria guardar Luzimar num abraço, cuidá-lo.Os dois conhecem a cidade como a palma da mão, tem como lugar preferido a base de um velho cajueiro, que se torna cúmplice das conversas de Cícero e Luzimar, assim como o rio que corta a cidade. O rio é também um personagem e que pode ser interpretado como o próprio decorrer do tempo e da vida. Enquanto os fantásticos personagens da obra vivem as mais diversas felicidades e tristezas, o rio segue seu curso de forma incólume, ainda que carregando vida e morte.
 
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