A filha perdida da Elena Ferrante (Intrínseca, 2016) é um livro com uma narrativa envolvente. A cada página conhecemos um pouco mais da história e dos pensamentos mais íntimos de uma protagonista que parece carregar uma personalidade completamente diferente daquilo que costumamos ver e ouvir por aí, mas que no fundo são apenas manifestações íntimas e reais de questões que as mulheres foram obrigadas a guardar para si. “A filha perdida” é uma história sobre vozes femininas, sobre os medos, os desejos, as obrigações, os amores, os desamores, e principalmente sobre as suas revoluções silenciosas.
Leda sai de férias para uma região litorânea da Itália e durante esse tempo que terá consigo começa a explorar diversos pensamentos sobre seus próprios sentimentos e sua história. Logo se torna uma rotina para Leda a observação de uma família grande e barulhenta que também passa férias na mesma praia que ela. Inicialmente ela sente apenas uma espécie de raiva e repulsa daquelas pessoas, mas aos poucos vamos percebendo que esse incômodo tem relação com o quanto aquela família faz com que ela se lembre da sua família de origem e o quanto que “as coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender”.
Eu os via, naquele dia, não como um espetáculo a ser contemplado, em uma comparação dolorosa com o que me lembrava da minha infância em Nápoles; eu os via como o meu tempo, como a minha própria vida pantanosa, para a qual eu escorregava de vez em quando.
Leda irá deter a maior parte de sua atenção para Nina e sua filha pequena Elena que estão sempre acompanhadas de uma boneca. Assim parecem formar um trio. De longe, ela observa a relação de mãe e filha, suas conversas e suas brincadeiras, que também vão suscitando algumas narrativas que tanto podem ser reais como apenas fruto da imaginação de Leda.
Partindo dessa rotina de observação, a família desconhecida vira uma espécie de luneta para que Leda observe a sua própria família através de suas memórias. Olhando para Nina, Elena e a boneca, ela passa a olhar para sua relação com suas duas filhas que foram morar no Canadá com o pai.
Quando minhas filhas se mudaram para Toronto, onde o pai vivia e trabalhava havia anos, descobri, com um deslumbre constrangedor, que eu não sentia tristeza alguma – pelo contrário, estava leve, como se só então as tivesse definitivamente posto no mundo. Pela primeira vez em quase vinte e cinco anos, não senti mais aquela ansiedade por ter que tomar conta delas.
Uma das questões mais interessantes do livro está justamente na exploração da ideia de maternidade. Como estabelecemos contato direto com os pensamentos de Leda, acabamos conhecendo um lado da maternidade que começou a ser exposta a pouco tempo pelos livros, filmes e demais expressões artísticas: a maternidade real e vinculada a ideia de uma mulher como ser humano dotado de peculiaridades. Ainda é muito comum ouvirmos apenas o discurso da maternidade como missão divina e do amor incondicional. Coitada da mulher que falasse sobre as dores, as incertezas, as dúvidas e os sofrimentos que também caminham junto com a maternidade. Com a história de Leda esse outro lado ganha voz.
Para além disso ainda temos um outro aspecto importante da obra que são os vultos geracionais que rondam a formação de Leda. Conforme ela vai nos contando sobre o dia a dia daquelas férias, de sua observação da família desconhecida, das lembranças das filhas e de seu casamento, ela também volta lá para a sua infância e para as mulheres que a antecederam.
O que eu tinha feito de tão terrível, afinal? Anos antes, havia sido uma garota que se sentia perdida, isso era verdade. Todas as esperanças da juventude já me pareciam destruídas, era como se eu estivesse caindo para trás na direção da minha mãe, da minha avó, da cadeia de mulheres mudas ou zangadas da qual eu derivava.
“A filha perdida” é uma história que carrega muitas histórias, é um livro sobre várias filhas perdidas, pois no processo de viver nós vamos nos perdendo em alguns pontos e nos encontrando em outros, formando uma colcha de retalhos de cada um dos momentos com potencial de construir nossa trama. Aqui temos mais um exemplo de uma obra que consegue abarcar questões muito sensíveis sobre amor, maternidade, encontros, desencontros, famílias e demais temas de uma forma que consegue causar fortes identificações nos leitores. É um livro misteriosamente interessante assim como o mistério que envolve a verdadeira identidade de Elena Ferrante.
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