Dias de abandono da Elena Ferrante

Dias de abandono da Elena Ferrante (Biblioteca Azul, 2016) relata o dia a dia de uma mulher que após quinze anos de casamento é surpreendida pelo marido com um anúncio de separação. Na mesa de jantar, assim como quem relata um dia comum de trabalho, Mario diz que está indo embora. Após a notícia Olga começa a repassar a relação quadro a quadro em busca da falha que levara a relação a uma derrocada e acompanhada de duas crianças, um cachorro e todo o peso do cotidiano e das obrigações que não tiram férias quando você está mal, ela passa do choro a apatia, da histeria a raiva, da quase humilhação ao comportamento violento até encontrar uma melhor forma de viver seu luto.


Mais uma vez Elena Ferrante narra uma história que nitidamente conhece o âmago da vivência feminina. Com um olhar singular sobre os sentimentos de uma mulher abandonada e ferida, nos aproxima do peso que uma mulher carrega dentro de uma relação. Se antes de tudo a mulher já é vista como responsável pela harmonia de um casamento, no fracasso a responsabilidade dobra de tamanho. Enquanto acompanhamos Mario simplesmente sair de cena sem despedidas, sem um endereço e sem contato de telefone para viver uma nova relação, vemos também uma mulher se afundando cada vez mais na significância do que o casamento era, do por que se quebrou e da necessidade de seguir em frente pisando sob cacos.

Uma tarde abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar. Fez isso enquanto tirávamos a mesa, as crianças brigavam como sempre no outro cômodo, o cachorro sonhava resmungando ao lado do aquecedor. Disse-me que estava confuso, que vivia maus momentos de cansaço, de insatisfação, talvez de covardia. Falou por muito tempo dos nossos quinze anos casados, dos filhos, e admitiu que não tinha o que reclamar deles nem de mim. Manteve a compostura de sempre, contendo um gesto de excesso com a mão direita quando me explicou com uma careta infantil que vozes leves, certo sussurro, o levaram para outro lugar. Depois assumiu a culpa de tudo que estava acontecendo e fechou com cuidado a porta atrás de si, deixando-me como uma pedra ao lado da pia.

Assim Elena Ferrante abre o livro e em um parágrafo convoca os leitores a viver os dias de abandono junto de Olga. Somos pegos de surpresa tanto quanto ela. Mário fecha a porta e nós ficamos ali assistindo cada passo dado pela protagonista da história que também não sabe para onde está caminhando. De uma forma muito criativa a escritora equipara Olga, enquanto mulher, corpo e mente à casa em que vivem. Se tudo está desmoronando para ela é evidente que tudo começa a desmoronar também na casa. Enquanto Olga vai do conforto dos dias comuns para a total falta de perspectiva dos dias de abandono, a casa também vai se tornando um ambiente desregulado, desolador e, por vezes, ameaçador.

Como é recorrente nas obras de Ferrante, Olga também é uma escritora que precisou dar mais atenção ao casamento e aos filhos, e por isso, sempre precisou deixar seu desejo de escrita em stand by. Agora em um momento tenso de crise, ela começa a revisitar o perfil das mulheres que habitavam a sua escrita, o perfil das mulheres que gostaria de materializar com suas palavras e repete para si mesma que não queria nunca escrever sobre mulheres quebrando-se feito bibelôs nas mãos de homens distraídos. Sua incredulidade e seu ódio aumentam ao ponto em que percebe que é exatamente esse o lugar em que se encontrava agora.

Eu queria ser diferente, queria escrever histórias de mulheres com muitos recursos, mulheres com palavras indestrutíveis, não um manual da esposa abandonada com o amor perdido como o primeiro pensamento da lista


Ao mesmo tempo em que se vê obrigada pelas circunstâncias a viver intensamente sua dor, em nenhum momento sai do radar de Olga que a mesma obrigação deveria ser colocada para sua redenção. Olga tem total ciência de que só a resistência vista como obrigação poderia salvá-la e entre altos e baixos inicia esse processo. A dor de Olga resvala em cada uma de suas mínimas e grandes obrigações e consequentemente em seus filhos. Sem didatismo, mas de uma forma muito bem marcada, Elena Ferrante consegue retratar os impactos da separação e de um lar que se despedaça no inconsciente das crianças, que rapidamente mudam de comportamento. Para além de sua dor, Olga precisa lidar com dores alheias.

Um dos pontos mais impactantes da obra está na forma como Ferrante esmiúça cada uma das fases que Olga vive após o término. Ela passa pela fase da negação, pela fase da mulher abandonada que precisa reconquistar seu amor a todo custo, da mulher que diante do imutável se torna agressiva e violenta, para depois embarcar numa quase letargia onde nada mais parece fazer sentido. O livro tem uma atmosfera que causa um grande incômodo e que pode trazer alguns gatilhos para pessoas que viveram processos mais complicados de separação. A cada livro da Elena Ferrante passo a entender ainda mais o frisson que se estabeleceu em torno de sua figura desconhecida, pois a escritora possui um estilo muito próprio de escrita que consegue prender o leitor da primeira à última página.

A filha perdida da Elena Ferrante

A filha perdida da Elena Ferrante (Intrínseca, 2016) é um livro com uma narrativa envolvente. A cada página conhecemos um pouco mais da história e dos pensamentos mais íntimos de uma protagonista que parece carregar uma personalidade completamente diferente daquilo que costumamos ver e ouvir por aí, mas que no fundo são apenas manifestações íntimas e reais de questões que as mulheres foram obrigadas a guardar para si. “A filha perdida” é uma história sobre vozes femininas, sobre os medos, os desejos, as obrigações, os amores, os desamores, e principalmente sobre as suas revoluções silenciosas.


Leda sai de férias para uma região litorânea da Itália e durante esse tempo que terá consigo começa a explorar diversos pensamentos sobre seus próprios sentimentos e sua história. Logo se torna uma rotina para Leda a observação de uma família grande e barulhenta que também passa férias na mesma praia que ela. Inicialmente ela sente apenas uma espécie de raiva e repulsa daquelas pessoas, mas aos poucos vamos percebendo que esse incômodo tem relação com o quanto aquela família faz com que ela se lembre da sua família de origem e o quanto que “as coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender”.

Eu os via, naquele dia, não como um espetáculo a ser contemplado, em uma comparação dolorosa com o que me lembrava da minha infância em Nápoles; eu os via como o meu tempo, como a minha própria vida pantanosa, para a qual eu escorregava de vez em quando.


Leda irá deter a maior parte de sua atenção para Nina e sua filha pequena Elena que estão sempre acompanhadas de uma boneca. Assim parecem formar um trio. De longe, ela observa a relação de mãe e filha, suas conversas e suas brincadeiras, que também vão suscitando algumas narrativas que tanto podem ser reais como apenas fruto da imaginação de Leda.

Partindo dessa rotina de observação, a família desconhecida vira uma espécie de luneta para que Leda observe a sua própria família através de suas memórias. Olhando para Nina, Elena e a boneca, ela passa a olhar para sua relação com suas duas filhas que foram morar no Canadá com o pai.

Quando minhas filhas se mudaram para Toronto, onde o pai vivia e trabalhava havia anos, descobri, com um deslumbre constrangedor, que eu não sentia tristeza alguma – pelo contrário, estava leve, como se só então as tivesse definitivamente posto no mundo. Pela primeira vez em quase vinte e cinco anos, não senti mais aquela ansiedade por ter que tomar conta delas.

Uma das questões mais interessantes do livro está justamente na exploração da ideia de maternidade. Como estabelecemos contato direto com os pensamentos de Leda, acabamos conhecendo um lado da maternidade que começou a ser exposta a pouco tempo pelos livros, filmes e demais expressões artísticas: a maternidade real e vinculada a ideia de uma mulher como ser humano dotado de peculiaridades. Ainda é muito comum ouvirmos apenas o discurso da maternidade como missão divina e do amor incondicional. Coitada da mulher que falasse sobre as dores, as incertezas, as dúvidas e os sofrimentos que também caminham junto com a maternidade. Com a história de Leda esse outro lado ganha voz.

Para além disso ainda temos um outro aspecto importante da obra que são os vultos geracionais que rondam a formação de Leda. Conforme ela vai nos contando sobre o dia a dia daquelas férias, de sua observação da família desconhecida, das lembranças das filhas e de seu casamento, ela também volta lá para a sua infância e para as mulheres que a antecederam.

O que eu tinha feito de tão terrível, afinal? Anos antes, havia sido uma garota que se sentia perdida, isso era verdade. Todas as esperanças da juventude já me pareciam destruídas, era como se eu estivesse caindo para trás na direção da minha mãe, da minha avó, da cadeia de mulheres mudas ou zangadas da qual eu derivava.

“A filha perdida” é uma história que carrega muitas histórias, é um livro sobre várias filhas perdidas, pois no processo de viver nós vamos nos perdendo em alguns pontos e nos encontrando em outros, formando uma colcha de retalhos de cada um dos momentos com potencial de construir nossa trama. Aqui temos mais um exemplo de uma obra que consegue abarcar questões muito sensíveis sobre amor, maternidade, encontros, desencontros, famílias e demais temas de uma forma que consegue causar fortes identificações nos leitores. É um livro misteriosamente interessante assim como o mistério que envolve a verdadeira identidade de Elena Ferrante.