Diário de um homem supérfluo do Ivan Turguêniev (Editora 34, 2019) é um livro que foi publicado originalmente em 1850 e chegou a pouco tempo no Brasil em uma edição traduzida diretamente do russo. A narrativa em primeira pessoa nos apresenta a um homem relativamente jovem, mas que já está ciente de que lhe restam poucos dias de vida. Diante do inevitável e após confabular consigo mesmo, decide escrever um diário falando sobre sua vida. Conforme vamos conhecendo alguns detalhes sobre as vivências de Tchulkatúrin teremos acesso também a uma grande história de amor não correspondido que marcou sua história e também os seus últimos dias. O livro carrega os elementos narrativos clássicos da literatura russa, explorando muito do lirismo, do romantismo, do olhar reflexivo sobre a vida e a sociedade, servindo como um retrato vivo de uma época. 


O doutor acaba de sair de minha casa. Consegui, afinal, o que queria! Por mais que dissimulasse, não pôde, por fim, continuar escondendo. O certo é que morrerei em breve, muito em breve. Os rios descongelarão e é provável que eu me vá com a última neve... para onde? Sabe Deus! Também para o mar. Pois bem! Se é para morrer, que seja na primavera. 

Por mais que Tchulkatúrin nos conte episódios de sua vida, partindo da infância até a vida adulta, é quando ele passa a narrar sobre uma viagem a uma pequena cidade onde se apaixona por Elizavieta, filha de uma personalidade da região, que a história começa a ganhar um arco narrativo mais profundo. Todo o tempo o narrador se vê angustiado por estar vivenciando um sentimento profundo de amor e ao mesmo tempo lidando com uma sensação de rejeição. Por mais que Lisa seja sempre muito doce e gentil e aceite passar tardes com Tchulkatúrin, o mesmo percebe que não é amor o que a moça sente por ele, ou talvez não na mesma intensidade que ele esperava. 


Enquanto o personagem reflete sobre sua condição, o livro passa a embarcar na exploração da temática do homem supérfluo, algo muito presente na literatura russa. "Diário de um homem supérfluo" não só representa um grande exemplo da temática como é considerado a primeira vez em que esse termo aparece na literatura russa representando exatamente o que é. 

Refletindo bem sobre essa importante questão e não tendo, por outro lado, nenhuma pretensão de me expressar de forma muito amarga em meu próprio nome, como fazem as pessoas firmemente convictas de sua importância, tenho de reconhecer uma coisa: sou um homem de todo supérfluo neste mundo, ou, talvez, um bicho de todo supérfluo. 

Não sei se é possível definir de uma forma muito definitiva um conceito para o que seria o homem supérfluo, mas podemos entendê-lo como este personagem recorrente na literatura russa,  que geralmente é um rapaz sonhador, intelectual, reflexivo sobre as questões da vida, advindo de uma família rica ou até aristocrática. É aquele personagem que usa e abusa de sua reflexão pessoal sobre a vida, ancorado por sua bagagem intelectual. No posfácio do livro, escrito pelo tradutor Samuel Junqueira, ele nos diz que o homem supérfluo seria: 

De um modo geral, os homens supérfluos são caracterizados da seguinte forma: jovens de origem nobre, dotados de grande capacidade intelectual e dos mais elevados princípios morais, mas também incapacitados para a ação, para a luta em nome de seus ideais, tanto devido ao sistema repressor sob o qual estão submetidos quanto à própria educação que receberam.

Vale ressaltar também que existe uma grande diferença do significado da palavra supérfluo em português e em russo, o que pode causar uma confusão inicial. Samuel Junqueira contextualiza o uso da palavra informando que no russo a palavra supérfluo não tem o sentido de algo superficial como em nossa língua, estando seu significado mais voltando para o sentido de não pertencimento, do não fazer parte, de um incômodo. 


A edição de "Diário de um homem supérfluo" da Editora 34 merece ser exaltada, pois além de nos trazer uma ótima tradução, que mostra um esmero em contextualizar o texto diante de tantas especificidades que fazem parte da escrita e até da cultura russa, ainda conta com um ótimo posfácio que nos ajuda a entender melhor algumas passagens da obra que só são percebidas por quem entende minimamente da história da Rússia e seu contexto social. As notas de rodapé e o posfácio funcionam como uma âncora importante para os leitores.