O diabo e outras histórias do Liev Tolstói (Companhia das Letras, 2020) é um livro que reúne cinco contos escritos entre 1858 e 1904 e considero um bom ponto de partida para quem quer conhecer a obra do escritor e até mesmo começar a ler literatura russa. Os contos “Três mortes”, “Kholstómer”, “O diabo”, “Falso cupom” e “Depois do baile” apresentam um bom compilado dos ingredientes utilizados nas narrativas de Tolstói contista e romancista.



No primeiro conto chamado “Três mortes”, o meu preferido do livro, Tolstói narra literalmente três mortes diferentes: uma senhora da aristocracia russa, um camponês russo, também chamado de mujique e de uma árvore. De forma genial o autor demonstra que por mais que a morte seja aquilo que no fim iguala a todos nós, os procedimentos, os ritos, as cerimônias e até mesmo a importância que se dá a cada morte também obedece a convenções e condições sociais.

Enquanto uma senhora da aristocracia viaja de carruagem rumo a um impossível tratamento para sua enfermidade na Itália, cercada de empregados e um médico para garantir seu conforto, o mujique jazia no chão, lidando com as piores dores e aguardando pelos últimos suspiros de vida.

Um mês depois erigiu-se um jazigo de pedra sobre a sepultura da morta. Sobre a do cocheiro ainda não havia nenhuma campa, apenas uma relva verde-clara brotava do montículo de terra, único vestígio de um homem que havia passado pela existência.

No segundo conto chamado “Kholstómer” Tolstói narra a história de um cavalo que era de puro sangue mas acabou nascendo com o pelo malhado. Essa característica, que acabou por diferenciá-lo dos demais cavalos daquela linhagem passa então a moldar toda a sua trajetória de vida, uma vez que o pelo malhado passa a ser visto como um defeito. Um ponto de vista narrativo que a primeira vista parece meio insano se transforma em um conto muito bem construído e que serve de alegoria para muitas questões sociais.

Em “O diabo” nos deparamos com a história de um homem rico, administrador de fazenda que acaba se envolvendo com uma camponesa como um artifício para satisfazer seus desejos sexuais, sendo que todo o foco de sua vida está no trabalho. O homem acaba posteriormente se casando com uma outra mulher e com o tempo ele passa a lutar contra o desejo de continuar se encontrando com a mulher e a manutenção de sua fidelidade no casamento. É um conto onde responsabilidade e desejo se chocam e o final é bem inesperado. A história possui dois finais e muitos dizem que ele é um tanto quanto autobiográfico.

Em “Falso cupom” diversas histórias se entrelaçam tendo como ponto de congruência a emissão de um falso cupom que equivalia na época a dinheiro, ou até mesmo um cheque ou uma carta de crédito. É um conto que nos leva a refletir bastante sobre o ciclo da corrupção, sobre relações de poder, sobre justiça e injustiça. A história nos mostra como nossas ações, nas maiorias das vezes, não se manifestam apenas no âmbito individual. Nossas ações podem reverberar e contribuir com verdadeiras tragédias.

“Depois do baile” o último conto do livro, narra a história de um rapaz que se vê diante de uma paixão avassaladora. É mais um conto onde Tolstói insere a influência da sociedade, do meio em que vivemos para analisar ações e consequências. É uma história de amor que esconde análise social, política, decadência da aristocracia e análise do eu e das nossas vontades.

Todos os contos desta edição foram traduzidos diretamente do russo, então podemos perceber um cuidado com o texto e também com a diagramação da obra. “O diabo e outras histórias” é mais um exemplo da mestria da literatura russa em criar grandes cenários, em explorar nuances da sociedade e existência humana.