Um apartamento em Urano: crônicas da travessia (Zahar, 2020) reúne textos escritos pelo filósofo Paul B. Preciado entre 2010 e 2018 para o jornal francês Libération. É um livro que nos convida a repensar tudo aquilo que se apresenta como uma norma estabelecida, através da voz de um intelectual que diz sobre coisas densas de forma bastante acessível. Paul fala sobre assuntos variados, que resvalam por análises sociais, políticas, filosóficas com um olhar especial para as questões de gênero, sexualidade e teoria queer.


Paul B. Preciado é um homem trans e todo seu processo de transição se tornou também um instrumento para que ele tentasse entender o seu lugar em um mundo que insiste em não querer entender o que não se enquadra no binarismo.

Não sou um homem. Não sou uma mulher. Não sou heterossexual. Tampouco sou bissexual. Sou um dissidente do sistema sexo-gênero. Sou a multiplicidade do cosmos encerrada num regime político e epistemológico binário gritando diante de vocês.


Existe uma força na escrita de Paul que é difícil explicar ou descrever. Acredito que assim o seja por ele partir de uma experiência única de vivência com o próprio corpo que ganhou ainda mais potência quando se alia a suas pesquisas sobre gênero, sexualidade e feminismo através de perspectivas butlerianas e de um olhar humano sobre a existência. Paul não abre mão da contextualização de tudo que diz e isso nos aproxima ainda mais de suas ideias.

O texto de introdução do livro, chamado “Um apartamento em Urano” e escrito pelo próprio autor, é de uma genialidade que se o livro fosse apenas este texto já teríamos uma obra grandiosa em mãos. Eu a devo ter lido pelo menos umas três vezes e em cada uma delas acessava uma nova nuance, uma nova forma de pensar e refletir sobre o pensamento de Preciado. E em todas elas me arrepiei.

A forma como Paul convoca o cosmos e o universo para ancorar seu pensamento é de uma beleza que não termina por aí, pois também fala de um lugar de intelectual e pesquisador. Quando acessa o universo para dizer sobre si e de toda uma minoria que vivencia uma realidade parecida com sua, o autor parece ter optado por essa alternativa por não ter conseguido encontrar em Terra algo que pudesse ser mais auto-explicativo ao relatar sua posição de não-pertencimento, sua condição de “dissidente do sistema sexo-gênero”.

O autor trata de temas que exigem, além de um processo de reflexão e estudo, uma coragem sem tamanho para lidar com as reações de uma sociedade que repele tudo aquilo que transgride “uma ordem estabelecida”. Como conseguir ser ouvido partindo de um discurso que não tem medo de dizer o que pretende dizer, que provoca uma reflexão onde o interlocutor precisa se desprender de “verdades” pré-estabelecidas para realmente pensar sobre o que está sendo apresentado, onde é preciso entender que “seria tão absurdo reduzir a vida à vigília quanto considerar que a realidade é feita de blocos lisos e perceptíveis em vez de ser um enxame mutante de partículas de energia e matéria vibrátil apenas porque não somos capazes de percebê-las a olho nu”.

Partindo do histórico da palavra uranismo, um termo cunhado pelo ativista Karl Heinrich Ulrichs para designar homens homossexuais ou também como “o terceiro sexo”, Paul B. Preciado vai tecendo comentários muito interessantes que perpassam as ideias de Ulrichs, as suas interpretações do campo da mitologia, o seu processo de transição, ao qual ele chama de crônicas da travessia. O apartamento em urano talvez seria o único lugar para todos nós que de alguma forma desafiamos a norma.

Ulrichs foi, portanto, um dos primeiros cidadãos europeus a declarar publicamente que queria um apartamento em Urano. Foi o primeiro doente sexual e criminoso que tomou a palavra para denunciar as categorias que o construíram como doente sexual e como criminoso. Ele não disse: “Não sou um sodomita”. Ao contrário, defendeu o direito da prática da sodomia entre homens, reivindicando uma reorganização dos sistemas de signos, uma modificação dos rituais políticos que definem o reconhecimento social de um corpo como são ou doente, legal ou ilegal. Inventou uma nova linguagem e uma nova cena da enunciação. Em cada palavra de Ulrichs falando de Urano para os juristas de Munique, ecoa a violência produzida pela epistemologia binária do Ocidente.

A obra de Paul Preciado cumpre um caráter importante que vai além do fato do mesmo ser uma referência nas temáticas que pesquisa, pois vai de encontro também a sua intenção muito nítida de humanizar processos a muito desumanizados, de dessacralizar questões a muito demonizadas e para isso a obra de Paul fala para “aqueles que vivem como se já estivessem mortos” ou como ele diz mais de uma vez: “vim falar às crianças malditas e inocentes que vão nascer”.

Por mais que na maioria das vezes a vontade seja de alugar um apartamento em Urano, Paul não deixa de analisar o presente para pensar em um futuro melhor e voltar a análise para frente, para a garantia de que não existam mais crianças inocentes que se sintam malditas, o autor desnuda sem receios suas experiências, como é ser um homem trans em pleno século XXI, a construção de seu pensamento filosófico e a construção de sua subjetividade para mostrar que o caminho de uma existência plena passa pelo combate à violência que domina nossos corpos.

Desfiz a máscara de feminilidade que a sociedade havia colado em meu rosto até que meus documentos de identidade se tornassem ridículos, obsoletos. Depois, sem escapatória, aceitei identificar-me como transexual e “doente mental” para que o sistema médico-legal pudesse me reconhecer como corpo humano vivo. Paguei com o corpo o nome que carrego.