O lugar de Annie Ernaux (Editora Fósforo, 2021) é um livro de auto-ficção premiado e que projetou o nome de Annie no cenário literário mundial. Ele explora uma relação de pai e filha após alguns anos de distanciamento. Com o coração aberto para expor nuances que versam sobre carinho, mas também sobre diversas formas de desencontro, Annie Ernaux transporta para o papel o dito e o não dito das relações familiares e tenta entender os fatores que a fizeram se afastar aos poucos do amor de pai e de seu local de origem. Com uma escrita não linear passeia por diversas fases de sua vida, revisita perdas e conquistas, devota olhar atento para seus antepassados e com isso traça um retrato das relações no recorte de uma geração que estava lidando com os impactos de um pós-guerra.
O distanciamento temporal parece funcionar como o fator que possibilitou uma análise do distanciamento afetivo que no tempo real em que ocorre não abre brechas para interpretações. Impulsionadas pelo ímpeto, pela urgência da juventude, os sentimentos são o que são e ponto. Com a maturidade Annie busca as entrelinhas para ressignificar o ponto. Ao mesmo tempo que a narradora demonstra que a figura de seu pai sempre representou algo significativo em sua vida, existe um conflito geracional que começou a separar duas épocas, dois mundos e dois pensamentos que já não podiam comungar dos mesmos sonhos e das mesmas ações.
Para entender um pouco mais seu pai, Annie Ernaux diz: “talvez eu escreva porque já não tínhamos mais nada para dizer um ao outro”. O que vemos no livro é que a pessoa que Ernaux se tornou já foi muito mais do que ela poderia dizer ao pai e ele acompanhou essa caminhada com atenção, mesmo que na maioria das vezes em total silêncio. Quando uma filha de operário consegue romper o ciclo da servidão em busca do mínimo, acaba por promover uma revolução no mundo de um pai de pouca instrução formal e que aprendeu a não opinar na frente de pessoas “mais estudadas” para não passar por situações vergonhosas. Não é o desamor que distancia pai e filha, mas sim o contraste entre visões de mundo.
Só há pouco percebi que escrever o romance é impossível. Para contar a história de uma vida regida pela necessidade, não posso assumir, de saída, um ponto de vista artístico, nem tentar fazer alguma coisa “cativante” ou “comovente”. Vou recolher as falas, os gestos, os gostos do meu pai, os fatos mais marcantes de sua vida, todos os indícios objetivos de uma existência que também compartilhei
Assim, com uma escrita direta e cuidadosamente trabalhada para esconder recursos linguísticos e para se aproximar mais de uma conversa, de um desabafo, Annie Ernaux fala sobre seu pai, sua infância, família, formação acadêmica e pessoal. Faz uma discreta e poderosa análise das nuances de um contexto social e das questões que enfrentavam uma vez que seu pai era um operário que precisou lutar a vida inteira para garantir o sustento da família.
Percebemos uma similaridade muito grande entre a personalidade do pai da narradora e de seu avô. A autora volta seu olhar para uma geração atrás e vai percebendo os resquícios que vão sobrevivendo ao tempo e se entranhando na geração seguinte. Essa questão fica bem demarcada nos papéis de gênero que foram definidos por uma convenção social definindo o papel do homem e da mulher na sociedade e na família.
Essa personalidade hostil foi foi sua fonte de energia vital, a força necessária para resistir à miséria e acreditar que ele era um homem. O que ele mais detestava era ver dentro de casa alguém da família mergulhado em um livro ou jornal. Ele não tinha tido tempo de aprender a ler e escrever.
Ao escrever sobre o pai a narradora vai percebendo que diferença é uma palavra chave para entender sua relação com o pai. Os conflitos de gênero, classe e geração são apresentados em pílulas, em pequenos acontecimentos, em conversas corriqueiras e em discussões usuais de família. É um livro que revela muito mais do que a relação pai e filha e que convida os leitores a pensar sobre as grandes mudanças sociais e políticas e como elas se revelam na vida privada.
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