O quarto de Giovanni do James Baldwin (Companhia das Letras, 2018) é uma das obras mais conhecidas desse autor norte americano que nasceu em 1924 na cidade de Nova York.  Sua primeira edição é de 1956 e se hoje temas como sexualidade e homossexualidade ainda são alvo da hipocrisia de muitos, podemos dizer que Baldwin foi muito corajoso ao escrever um romance que não só trás a questão da sexualidade de forma bem demarcada, como explora a vivência dessa sexualidade entre homens gays. David, um americano que está morando em Paris e esperando Hella, sua noiva, que está passando uma temporada na Espanha, acaba se apaixonando por Giovanni, um garçom italiano de beleza estonteante que conhece em uma noite. A identificação entre eles acontece de forma intensa e os dois decidem dividir um pequeno quarto de empregada em que Giovanni já vivia. Passam a viver uma história onde o mundo parece ser habitado apenas por eles, em uma realidade que ao mesmo tempo vive assombrada por uma situação financeira instável, por suas histórias de origem e pelo iminente retorno de Hella que pode significar o fim do romance. 

 


James Baldwin era um escritor negro e homossexual que abraçou na vida pessoal e na literatura a representação das minorias. Seus livros são fortemente marcados pelo tema da sexualidade e da questão racial. Especificamente em "O quarto de Giovanni", o autor optou por escrever uma história protagonizada por brancos, portanto, não temos uma discussão marcadamente racial. Esse fato causou muita polêmica quando da publicação do livro e Baldwin chegou a ser questionado sobre essa tomada de decisão. Os editores acreditavam que o autor poderia ser abandonado por aqueles que o liam, ou seja, pessoas que o viam como referência nos temas já citados. Acrescentavam ainda que além de perder um público já conquistado, que Baldwin talvez não alcançaria novos leitores (brancos) que também já o viam como um porta voz das questões raciais. 


James argumentou que a proposta de "O quarto de Giovanni" em optar por personagens brancos foi uma maneira encontrada de poder focar apenas na temática da sexualidade e homossexualidade  e conseguir mais facilmente ser publicado e lido. Acreditava que a temática da homossexualidade acrescida da questão racial, poderia encontrar ainda mais entraves, levando em consideração que estamos falando dos anos 50. Isso não significou um abandono dos temas que habitavam a mente e as vivências de Baldwin, que retornaria em outros livros, mas uma escolha estratégica e literária pontual. 


Esse é um fato que pode nos levar a diversas reflexões e uma delas é sobre a liberdade de escritores e escritoras em escrever sobre o que quiserem, sem se preocuparem com nichos e rótulos. Um escritor negro pode escrever sobre o que quiser, assim como uma mulher escritora pode escrever sobre o que quiser e que não necessariamente precisa estar vinculado ao universo feminino. Relegar aos artistas negros a obrigação de terem apenas as questões raciais e o racismo como experiência de vida, de narração e exploração de sua arte é limitar suas possibilidades criativas e interferir em uma das características mais bonitas da literatura: viver e vivenciar outras realidades. 


Sabemos que o recorte das narrativas negras tem cada vez ocupado mais seu espaço de direito no meio editorial, e isso é valido, pois representa uma reação eficaz a séculos de silenciamentos e apagamentos. Só precisamos estar atentos a um movimento silencioso que pode tentar nos enquadrar novamente e definir o que podemos ou não dizer. Precisamos falar de nossas dores e da violência sofrida pelo povo preto, mas temos também muito o que dizer na poesia, no conto, na crônica, na ficção científica, nos ensaios, na literatura técnica que perpassam outros pontos.  


Cada figura que passeia pelo livro é explorada com uma densidade muito interessante. Principalmente David e Giovanni. Na primeira parte do livro, somos apresentados a um período da infância e juventude de David que mais para frente servirá de instrumento para entendermos algumas de suas atitudes e decisões. David sempre foi obrigado a frear seus desejos por conta do contexto social e das demais questões que afetam a vida de um homossexual. Dessa forma, a construção de sua sexualidade impactou no adulto que ele se tornou e na forma como se relaciona amorosamente com as pessoas. Sua namorada Hella é exposta sem saber a relação com um homem obrigado psicologicamente a estar em uma relação heterossexual com tudo de preocupante que esse fato carrega. Giovanni é exposto a relação com um homem que tem vergonha de si, de seus desejos, de quem é, e que vê a relação como algo com data para terminar. Diante disso o quarto de Giovanni se torna um refúgio, mas também um local que expõe todas as máculas de sua falta de aceitação própria. 

Eu tremia. Pensei: se não abrir a porta agora mesmo e sair daqui, estou perdido. Mas eu sabia que não podia abrir a porta, sabia que era tarde demais; e em pouco tempo era tarde demais para fazer outra coisa que não gemer. Ele apertou-me contra si, jogando-se em meus braços como se quisesse que eu o carregasse, e lentamente deitou-me junto com ele naquele cama. Tudo dentro de mim gritava Não!, e no entanto o somatório de mim suspirava Sim. 

Giovanni é representado como um italiano irresistivelmente bonito e a forma como transita entre as pessoas demonstra que possui um magnetismo que encanta as pessoas. No bar em que trabalha é desejado por quase todos os homens que veem em sua figura uma promessa de satisfação dos desejos e das fantasias homossexuais mais intensas. Giovanni tem consciência do poder de sua aparência e usa isso a seu favor. Ainda assim, percebemos que existem capítulos não contados de sua história, que fazem com que a melancolia, a depressão e até o pensamento suicida estejam sempre presentes em sua vida. David passa a representar para Giovanni uma possibilidade de sentir vontade de viver no mais bonito e perigoso que isso possa parecer. 

Jacques percebera, e eu percebera, enquanto avançávamos em meio à multidão em direção ao bar - era como entrar no campo de força de um imã, ou como aproximar-se de um pequeno círculo de calor - , a presença de um barman novo. Insolente, moreno e leonino, cotovelo apoiado na caixa registradora, dedilhando o próprio queixo, ele contemplava a multidão. Era como se estivesse num promontório e nós fôssemos o mar.


Baldwin também recorre a uma estratégia de exploração do "ser estrangeiro" de David e Giovanni para falar sobre descoberta, mas também inadequação. Para falar da busca de si mesmo, mas também do não-lugar. Para falar de amor, mas também das impossibilidades que a homoafetividade pode enfrentar. O sentimento de não pertencimento, do não lugar funcionam como uma ótima analogia a quem ousa viver da forma diferente das quais as pessoas precisam seguir um roteiro. Quando seguimos um caminho diferente, automaticamente nos tornamos estrangeiros. 

 Giovanni sorriu. "Porque você vai voltar pra casa e então vai descobrir que não é mais a sua casa. Aí é que vai ficar mal mesmo. Enquanto estiver aqui, você pode sempre pensar: um dia vou voltar pra casa.". Ele brincou com meu polegar e sorriu. "N'est-ce pas?"

"Bela lógica", retruquei. "Quer dizer que eu tenho uma casa para onde posso voltar, desde que não vá pra lá?"

Ele riu. "Mas não é isso mesmo?" Você só passa a ter uma casa quando vai embora dela, e depois, quando foi embora, você nunca mais pode voltar."


 A cidade e a vida urbana exerce uma força singular para a narrativa. A Paris boêmia dos anos 50 se torna o cenário perfeito para essa dualidade entre efervescência e tradição. A paixão de David por Giovanni parece as vezes acompanhar a paixão de David por Paris - um sentimento com muitos altos e baixos. A mesma sensualidade e a mesma ira são utilizadas para descrever a relação de David com Giovanni e com a cidade. 

A pedra de que era feita a cidade, antes luminosa e mutante, foi se apagando pouco a pouco, mas de modo decidido, até voltar a ser cinzenta. Claramente, era dura. A cada dia iam desaparecendo do rio os pescadores, até que as margens do Sena ficaram vazias. Os corpos dos rapazes e moças começaram a ser deformados pela roupa de baixo grossa, os suéteres e cachecóis, chapéus e mantos. Os velhos pareciam mais velhos; as velhas, mais vagarosas. As cores do rio morreram, a chuva começou, e o nível da água subia. Era evidente que o sol em breve desistiria do esforço tremendo que lhe custava passar algumas horas todos os dias em Paris. 

Em "O quarto de Giovanni" estamos diante de um livro com uma escrita deliciosa e com uma maturidade literária que o coloca na lista das leituras inesquecíveis. Não é um livro sobre heróis e vilões, é uma leitura sobre as circunstâncias da vida onde não interessa o que é certo ou errado, mas a reflexão sobre os passos que tomamos, sobre os desejos que silenciamos, sobre as individualidades que violentamos. É um livro que nos mostra que poucas coisas podem ser mais bonitas e mais insuportáveis que a liberdade.