O mundo se despedaça de Chinua Achebe enviado pela Tag Experiências Literárias em parceria com a Companhia das Letras (2019) é um livro que trás um misto de sentimentos. Ao mesmo tempo em que adentramos em um universo e uma escrita que são mágicos, também somos apresentados ao lado mais cruel dos ritos, dos mitos e das religiões. O mundo se despedaça  é uma obra certeira aos demonstrar como funcionava e ainda funciona a desintegração de um povo pela colonização. Se no início da história nos assustamos com algumas tradições da etnia ibo, que hoje são vistas como atentados aos direitos humanos e que eram naturalizados por uma cultura, logo em seguida nosso olhar colonizado é esbofeteado, quando Chinua Achebe insere na narrativa a violência da lógica cristã pela colonização inglesa da Nigéria. O homem branco chega pisando em ovos e utilizando de estratégias econômicas e "solidárias" para matar a cultura e a ancestralidade de um povo pela raiz. Aqueles que não se dobram a seu Deus único são exterminados sem chance de misericórdia. A cultura nigeriana e a cultura inglesa se encontram e se enfrentam numa saga pela liberdade de crença e de vida. O mundo se despedaça é visto hoje como um dos fundadores do romance nigeriano contemporâneo. 


Antes de "O mundo se despedaça" se tornar um retrato de um processo de colonização, Chinua Achebe faz uma contextualização muito rica da cultura da etnia ibo através da história de Okonkwo, um guerreiro que deseja se tornar um grande líder dentro de sua aldeia. Além de lutar com unhas e dentes pela sua ascensão econômica e social dentro da comunidade, Okonkwo lida com a vergonha que sente da memória de seu pai, um homem com aspirações bem menores que a de seu filho. Okonkwo utiliza das memórias de seu pai para forjar para si uma história completamente diferente. O guerreiro se valia de um preceito da tribo que dizia que "felizmente, entre esse povo, um homem era julgado por seu próprio valor, e não pelo valor do pai." Enquanto segue firme no seu propósito de ascensão e sua lealdade aos preceitos da aldeia e dos deuses, Okonkwo vai se mostrando uma figura séria, resignada e por vezes violenta.


Talvez, no fundo do coração, Okonkwo não fosse um homem cruel. Mas toda a sua vida era dominada pelo medo, o medo do fracasso e da fraqueza. 


Enquanto conhecemos Okonkwo somos inseridos na aldeia de Umuófia, uma das comunidades mais prósperas de toda a região ibo. Para quem não conhece ou conhece pouco sobre a vida e os costumes do povo ibo, o livro se torna um prato cheio para entender um pouco de sua relação com a terra, com os deuses, com a honra, com a família e a tradição. Como toda sociedade paternalista, as mulheres são expostas a diversos tipos de violências, uma vez que as mesmas são vistas como membros inferiores da aldeia, cabendo a elas o cuidado com os filhos (até certo ponto da vida), o cuidado da casa e total submissão ao marido que é quase a lei máxima a ser seguida. 


Chinua Achebe concebeu uma obra que consegue nos mostrar um povo com todos os seus contrapontos. Com uma escrita primorosa extrai a beleza e a violência que fazem parte de todas as religiões e crenças. Algumas dessas crenças promovem seu domínio através de um controle mais sutil dos desejos e das individualidades das pessoas, enquanto outras executam mutilações, assassinatos e abandonos em nome do dito "bem maior" e da vontade divina. Essa dualidade é o que existe de mais fantástico nesse livro que nos morde e depois assopra. 

A escuridão inspirava um vago terror nessa gente, mesmo nos mais corajosos. As crianças eram advertidas de que não deviam assobiar à noite, por causa dos espíritos malignos. Os animais perigosos tornavam-se ainda mais sinistros e estranhos na escuridão. Uma cobra nunca era chamada pelo nome, a noite, pois ela poderia ouvir. Era chamada de cordão. E assim, nessa determinada noite, à medida que a voz do pregoeiro ia sendo gradualmente engolida pela distância, o silêncio retornava ao mundo, um silêncio vibrante, que se fazia mais intenso com o trilo universal de milhões de insetos na floresta. 

Queria que o filho se tornasse um homem próspero, cujo celeiro contivesse o suficiente para alimentar os ancestrais com sacrifícios regulares. Por isso ficava contente quando o ouvia rabugento com as mulheres. Isso era sinal de que, futuramente, o filho seria capaz de controlar suas esposas, pois, por maior que fosse a prosperidade de um homem, se ele não demonstrasse ser capaz de dominar suas mulheres e seus filhos (principalmente suas mulheres), não era um homem de verdade.


 Muitos acontecimentos da trama vão servindo de estratégia para que o leitor se familiarize com a forma de viver do povo ibo. A vida de Okonkwo na comunidade passa por diversos episódios de glória e de declínio alçando sua vida a uma verdadeira saga. Aos poucos as garras do colonialismo vai aparecendo em Umuófia. Muitos membros da aldeia nem ao menos tinham visto ainda um homem branco com seus próprios olhos. Alguns acreditavam em boatos que diziam que homens brancos não tinham os dedos dos pés. Eles chegam trazendo consigo a ideia de um único Deus e dispostos a convencer a todos de que suas crenças são mais do que algo errado, que são a manifestação do mal. Chinua Achebe faz uma comparação muito certeira ao equiparar a invasão dos homens brancos a essas regiões como uma infestação de gafanhotos. O homem branco chega com sua igreja, com sua escola e também com seus métodos de controle e privação da liberdade através da guarda, que é uma espécie de polícia e de uma forma de governo para impor seus costumes. 


Ele disse também que mais homens brancos estavam a caminho. Eram gafanhotos, falou o Oráculo, e aquele primeiro homem era o batedor dos demais, enviado por seus companheiros para explorar o terreno. 


 Quando retrata o momento em que o homem branco chega em Umuófia, Chinua Achebe entrega uma obra potente que serve de registro simbólico de um processo violento que culminou em muitas mortes, mas também na independência do povo nigeriano. O mundo vai se despedaçando a cada página que passamos e promovendo vários fins do mundo para aqueles que eram fieis a própria tradição.