O coração é um caçador solitário de Carson McCullers (TAG - Experiências Literárias, 2018 em parceria com a Companhia das Letras) é o livro que fecha minha meta de leitura de 2019. E fecho com chave de ouro.


A história se passa no sul dos Estados Unidos em meados de 1939 e o livro em si foi publicado em 1940. Vários pontos tornam o universo em torno dessa obra excitante, como a própria biografia da escritora Carson McCullers, que tinha apenas 23 anos quando a escreveu. O livro encanta pelo seu caráter progressista, pois em pleno anos 40, Carson nos apresenta uma história onde as protagonistas são as minorias, com destaque para uma discussão muito interessante, responsável e sensível sobre a realidade dos negros. A autora tinha uma personalidade inquieta e durante toda sua vida enfrentou doenças e acontecimentos trágicos que não conseguiram impedir que ela se tornasse uma das autoras americanas mais influentes do século 20.

A narrativa acompanha as histórias de Singer, um homem surdo que conquista a todos com sua inteligência e simpatia, Mick que é uma garota sonhadora e apaixonada por música, Dr. Copeland um médico negro comprometido com a comunidade e com a justiça social, Jake Blount um bêbado incorrigível, comunista e que sonha encontrar a melhor forma de mostrar "a verdade" a todos e Biff Brannon um dono de restaurante que desafia todos os estereótipos do empresário padrão, pois é tão caridoso a ponto de não cobrar as dívidas das pessoas mais necessitadas.



A estrutura do romance consegue apresentar de forma muito completa cada uma dessas personagens e vamos entendendo o objetivo de vida de cada um deles, que serve para descrever a ebulição da sociedade na década de 40, o clima pré-guerra e o ápice de uma convulsão social. Através das vivências das personagens, Carson faz uma crítica bem elaborada sobre a estrutura política e social dos EUA, um país rico mas com altos índices de segregação. Dr. Copeland, o médico negro e dedicado à comunidade pobre e negra é responsável pelos capítulos mais belos e fortes da obra. Ele questiona a situação de servidão dos negros e levanta discursos sobre privilégios da branquitude e luta por direitos humanos. "O trabalho tem que começar de baixo. As velhas tradições têm que ser destruídas e novas têm que ser criadas. É preciso forjar todo um novo padrão para o mundo. Transformar o homem, pela primeira vez na história da humanidade, numa criatura social, vivendo numa sociedade ordeira e controlada em que ele não seja forçado a ser injusto para sobreviver."

Singer é a personagem que serve como elo de ligação entre todas essas personagens. Com o tempo ele se torna amigo e confidente de cada um deles. Por ser um bom ouvinte e conselheiro, é através das visitas a ele que conhecemos os desejos mais íntimos, as dores e alegrias dos nossos protagonistas. Enquanto escuta, Singer também luta com seus próprios anseios que ironicamente não divide com ninguém. É uma história sobre pobreza, preconceito, intolerância, solidão, mas também de amor e amizade. A seu modo cada personagem devota seu amor, não necessariamente romântico a algo ou alguém em demonstrações do verdadeiro afeto mesmo em situações onde o preço a se pagar era alto.

Saio dessa obra com muita curiosidade sobre a biografia da Carson McCullers. Nos anos 40 ela criou uma história pautada nas discussões de justiça social, direitos humanos, minorias, liberdade, justiça e igualdade para a população negra. Se hoje ainda é difícil convencer os brancos de seus privilégios e suas dívidas históricas, é incrível imaginar que McCullers foi uma mulher branca a frente de seu tempo, uma mulher branca antirracista.