Pequena coreografia do adeus da Aline Bei (Companhia das Letras, 2021) é um livro que confirma o fato de que Aline é uma das mais interessantes revelações da literatura brasileira nos últimos anos. Se o seu livro anterior, “O peso do pássaro morto”, já surpreendeu por sua estrutura literária e densidade, em seu segundo livro a autora vem com uma escrita ainda mais madura e exploratória. A prosa poética de Aline é algo que transporta os leitores para lugares muito íntimos e consegue aliar texto poético a uma estrutura que conduz os leitores não só pela narrativa, mas também por pausas, respirações, sussurros e imagens que são fundamentais para a história. A pequena coreografia que abre um leque de interpretações também se manifesta pela forma que nossos olhos dançam ao passear por palavras que se organizam de formas diferentes, para além da trama palavra após palavra que já conhecemos.




A forma como Aline Bei estrutura o texto é algo bem significativo na sua produção e um dos pontos altos de sua obra. Olhamos para um texto onde narrativa e imagem trabalham juntas para movimentar o leitor, além de demonstrar uma liberdade inspiradora de criação da autora. Aline tem liberdade para tecer o texto, por tanto utiliza de espaçamentos, maiúsculas e minúsculas, quebras de página que não aparecem de forma aleatória, elas conferem sentido às emoções que estão sendo transmitidas.

O livro conta a história de Julia Terra, uma personagem que ainda muito cedo precisou acessar um sentimento devastador: o abandono. Quando digo cedo, me refiro exatamente à infância. Em uma etapa da vida onde apoio, afeto e exemplo são fundamentais para formação do caráter e da própria individualidade, Julia se vê extremamente só, vivendo no meio da crise conjugal de seus pais, que por não saberem lidar com as próprias dores a projetam pelas paredes da casa.

Julia se vê entre uma mãe que já possuía um temperamento frio e a separação intensifica seu distanciamento, a transformando em um retrato angustiante do sofrimento, que por vezes explode em raiva e agressividade. Sua mãe não se permite seguir em frente após o término do casamento e cada dia se torna um lembrete do ato, seja por palavras duras ou simplesmente por um olhar que denuncia tristeza e vazio.



em casa

minha mãe arrastava as suas dores como um Manto

ao mesmo tempo que marchava

seu velho soldado

era ele quem lhe causava uma falsa sensação de controle

enquanto o Manto emanava uma aura de respeito

como se dissesse: não se aproxime, sou uma ilha, sou A Mulher que Sofreu.



Julia está também diante de um pai que abomina completamente o fato de já ter sido casado. Se a esposa veste o manto da dor, o marido veste o manto do desapego, uma vez que seguir em frente sempre foi mais fácil e socialmente permitido aos homens. Julia experimenta uma espécie de invisibilidade que vem de ambos os lados, que se manifestam de formas diferentes e que nem por isso deixam de roubar seu direito de viver a própria infância e até mesmo a própria dor.




Eu só queria ter um pai que não fosse eternamente o

homem que deixou a minha mãe.



Todas as vivências que Julia experimentou em sua infância vão se refletindo na jovem mulher em que se transformou. A dor e a melancolia de um lar fraturado impacta diretamente nas conexões que a jovem passa a fazer com outras pessoas que entram em sua vida adulta. Algo notável durante toda a história é o caráter extremamente reflexivo da protagonista. Julia carrega consigo uma força de persistência que vai se traduzindo e se fortalecendo em uma relação sempre presente com as artes, principalmente a escrita. Aos poucos vai percebendo que seu caminho é o de entender a própria existência pela arte e que sempre esteve na busca de referências afetivas, principalmente femininas. É quando começa a dançar a coreografia de despedida do lar de origem que novas possibilidades começam a se abrir.

“Pequena coreografia do adeus” é um livro que explora com muita sensibilidade alguns processos que são muito violentos. A narrativa se mostra ainda mais densa por tratar de uma violência que vem do seio familiar e que se projeta na falta de afeto, no desinteresse, nas palavras duras. A forma como Julia aprende a olhar para sua própria mãe é um exemplo disso:


Ela usava óculos escuros

que lhe caíam bem, é verdade

agora ela vendia perfume na casa das pessoas

e assim, de longe



até que parecia ser uma boa mãe.





e que seria perder a minha mãe?

não é a mesma coisa que perder uma boa mãe

perder a minha

seria uma dor e um alívio cheio de culpa, então

até o alívio

se transforma em Dor

e eu teria que me acostumar

com as minhas cicatrizes

órfãs de seu carrasco


Uma das características mais interessantes de Julia Terra é que durante toda a vida ela sempre recebeu violência como resposta, mas isso nunca fez com que ela devolvesse na mesma moeda. O que vinha de mais pesado era despejado em seu diário, saía dela e ia direto para o papel. Ainda que a violência tenha sido presença constante em sua vida, Julia consegue romper com o ciclo, romper com o trauma e o carma. Acredito que isso tenha a ver com a realidade de que por sempre ter buscado afeto, visibilidade e acolhimento, Julia sabia exatamente as consequências de se oferecer o contrário.


“Pequena coreografia do adeus” é um livro que apesar de muitas passagens tristes e angustiantes consegue transmitir também uma energia de redenção, movimento e descoberta. A violência, o abandono e a solidão são as pequenas coreografias com que Julia precisa lidar e aos poucos ela vai entendendo que se despedir não é abandonar e que pequenas mortes, pequenas despedidas e o adeus em si são formas de manter a vida em movimento.