Luxúria da Raven Leilani (Companhia das Letras, 2021) é um livro que surpreende pela forma como olha para a juventude. Com uma escrita honesta, sarcástica, engraçada e por vezes sensível, a autora faz uma radiografia sobre o que é ter vinte e poucos anos vivendo em uma cidade grande, lutando para manter um emprego mediano, se aventurando entre encontros casuais e amores complicados, históricos familiares difíceis. Além de explorar diversos anseios típicos da juventude, Raven nos faz mergulhar em uma narrativa sob o ponto de vista de uma mulher negra e jovem escrevendo sobre uma personagem negra e jovem. Uma proximidade que permite a construção de um texto ficcional que parece quase uma confissão.



Ao contar a história de Edie, a autora faz o retrato de uma geração que precisa se equilibrar entre a competição e o discurso do cuidado com a saúde mental, entre a frivolidade dos aplicativos de relacionamento e o desejo de uma relação sólida, entre a cobrança por dedicação aos estudos e a falta de empregos, entre a apatia e a busca de prazer, entre o se dar bem na vida e a falta de empatia por histórias alheias. É um livro onde as dualidades se escancaram e no caso da protagonista Edie, tudo ganha ares ainda mais intensos, pois somados às suas lutas e descobertas está a sua condição de mulher negra e pobre em uma sociedade machista e racista. Isso é feito através de um texto que beira o improvável pela maneira como a personagem debocha da vida. Edie utiliza de uma ironia inteligente e engraçada para enfrentar a vida e acabamos dando algumas gargalhadas com a sua forma de interpretar a realidade. 

No caso dele, no entanto, parece que isso é novidade. Não só sair com alguém que não é a mulher dele e que é algumas décadas mais jovem, mas também sair com uma mulher que por acaso é negra. Eu percebo pela extrema cautela com que ele diz afrodescendente. Pela forma como ela jamais fala a palavra negra. Via de regra, eu evito tirar esse cabaço. Eu me recuso a ser a primeira mulher negra com quem um homem branco se relaciona. Não tolero as tentativas trêmulas dos brancos de cantar rap underground, a óbvia insistência na linguagem coloquial, a empáfia do homem cor-de-rosa que usa tecido estampado de Gana. 

Basicamente acompanhamos o dia a dia de Edie, uma moça de temperamento forte, raciocínio rápido e boas reflexões sobre a realidade. Ela trabalha em uma editora de livros e seu campo de trabalho está mais voltado para as publicações juvenis. O tempo todo Edie se mostra consciente de que sua cabeça está a prêmio e que logo poderá ser demitida. Além de ser uma mulher negra sem medo de se colocar, o que incomoda boa parte da equipe majoritariamente branca, Adie ainda não se priva de aventuras sexuais com alguns colegas de trabalho.

Adie foi por muito tempo a única mulher negra em seu trabalho e após a chegada de outra no setor, o que poderia se tornar uma relação pautada na sororidade e até uma espécie de apoio racial acaba caminhando mais para o campo do desencontro, principalmente na forma como se defendem do preconceito, revelando assim mais uma faceta do racismo.

E depois eu me equivoquei. Mostrei raiva demais cedo demais. Muitos desses brancos não têm jeito mesmo. Muito fuck the police. Nós duas estudamos na escola do Dobro de Qualidade pela Metade do Mérito, mas pelo jeito ela ainda acha que vale a pena pagar esse preço para entrar no clube. Até hoje ela se ajeita toda, esperando que a escolham. E vão escolher. Porque é uma arte – ser negra, perseverante e inofensiva. Ela é tudo isso e fica constrangida por quem eu sou.
Através de contato por um aplicativo, Edie conhece Erick, um homem branco de meia idade e casado que vive um relacionamento aberto com sua esposa Rebecca. É uma relação que obedece a uma série de combinados e regras que logo serão quebradas. Edie se encanta rapidamente pela figura de Erick e eles passam a se encontrar com frequência dando início a um relacionamento bastante peculiar e intenso.

A diferença de idade não me incomoda. Homens mais velhos têm uma vida financeira mais estável e uma percepção diferente do clitóris, mas, para além disso, o desequilíbrio de poder é uma droga muito potente. Assim como se ver no limbo doloroso que separa o desinteresse e a perícia de outra pessoa. O pavor que a pessoa sente da indiferença crescente do mundo. A revolta e o fracasso da vida adulta, canalizados para o esforço de reduzir o corpo de alguém, e nesse caso o seu, as partes brilhantes e elásticas


A autora vai traçando um contraponto entre a vida aparentemente estruturada de Erick e sua esposa e um certo caos que ronda a vida de Edie. A própria representação do apartamento que a garota vive, serve como uma metáfora para os desafios da juventude, para a busca por estabilidade financeira e amorosa, para a falta de oportunidades. Seu apartamento é assustadoramente infestado de ratos e baratas e a forma como Raven relata isso no livro não deixa de trazer uma angústia para o leitor.

Infelizmente, meu vibrador morreu. Tento achar pilhas, mas não encontro nenhuma AA. Tento usar a mão, mas uma barata atravessa o teto quando estou quase gozando. Quando me olho no espelho, um dos meus cílios postiços sumiu. Espero que isso tenha acontecido há pouco tempo e que eu não tenha passado o dia todo com um olho triste e cheio de cola.

Se existe um incômodo que perpassa a vida financeira de Edie, por outro lado existe uma forma de falar e refletir sobre sexo e sexualidade que é muito livre e transgressora, principalmente em boca de mulher.

Porque tem homens que são uma resposta a uma imposição biológica, que eu mastigo e engulo, e tem homens que guardo na boca até dissolverem.

Após alguns acontecimentos, Edie perde o emprego e sua situação a leva a morar na mesma casa que Erick e Rebecca. Uma dinâmica estranha e por vezes constrangedora passa a rondar a relação dos três. Edie conhece Akila, a filha adotiva do casal. Ela é uma menina negra na faixa dos treze anos de idade e sem referências de pessoas que sejam como ela, pois vive em um bairro onde é a única negra. Edie e Akila vão se aproximando aos poucos e logo percebemos que o convite para que Edie passasse um tempo naquela casa não foi em vão. Erick e Rebecca estão meio apavorados com a experiência de serem pais e ao mesmo tempo não medem esforços para cumprirem bem esse papel.

A gente não pode deixar Akila fazer o que quer só porque ela é negra, Rebecca diz. Isso não é feminismo interseccional, é só uma desculpa para sermos pais ruins.
Quando nos deparamos com o título “Luxúria”, logo imaginamos que estaremos diante de uma obra que olha apenas para o aspecto excitante e sensual do sexo. Na verdade não é isso que encontramos. Apesar de Edie ser uma jovem pragmática e que diz o que precisa dizer e que não tem receio de transar apenas para saciar um pedido do corpo, podemos entender que a Luxúria de que se trata o livro é menos a sexual e mais a da busca de prazer pela vida, pela busca de um propósito, de um lugar no mundo, da ansiedade de entender e lidar com a sociedade e com a própria individualidade. É um relato poderoso sobre a vivência e a voz de uma mulher negra.