A palavra que resta de Stênio Gardel (Editora Companhia das Letras, 2021) é o livro de estreia do autor. Stênio entrega uma prosa poética arrebatadora e coloca "A palavra que resta" entre os grandes lançamentos do ano. Com muita sensibilidade e uma escrita com um estilo muito bem marcado, o livro nos conta a história de Raimundo, um homem que ousou se apaixonar por outro homem ainda na juventude, morando em uma comunidade rural regida por princípios conservadores e convenções sociais que demarcam rigidamente os papéis de gênero. Raimundo se apaixona por Cícero, é correspondido, e ambos tem ciência de que precisam esconder a relação a todo custo. "Foi aos dezessete, num forró na quadra do grupo, que os olhos cor de terra de Cícero lavraram Raimundo." Quando são descobertos passam a conhecer de fato a natureza brutal da homofobia e suas histórias tomam caminhos diferentes. Enquanto a narrativa passeia cá e lá pelo tempo, mostrando o Raimundo jovem do sertão e o Raimundo que caiu no mundo, Stênio vai transportando para a literatura as questões sociais que impactaram a vida do personagem e sua família, como também as questões que vão de encontro à trajetória de vida de alguém que precisou se calar, por não poder levantar sua própria voz e explicitar seus desejos, como pelo fato de não saber ler e escrever. De Cícero ficaram o sentimento de amor, a saudade e uma carta nunca lida. 


A história já começa nos apresentando a um Raimundo velho. Aos 71 anos ele resolveu aprender a ler e escrever. Enquanto era jovem não teve a oportunidade de estudar, pois desde muito cedo precisou lidar com o trabalho no campo junto com seu pai. O mesmo pai que dizia que "a letra era para menino que não precisava encher o próprio prato." Na juventude e vida adulta se prendeu a trabalhos temporários e que não tinham pouso fixo. Por todos os lugares que Raimundo passou a carta de Cícero estava com ele, lacrada e quase como a representação de uma presença. 

Raimundo Gaudêncio de Freitas, traço incerto, arredio ao toque de papel. Lápis danado, domado, e ele escrevia o nome completo pela primeira vez. Setenta e um anos e essa invenção, como ele diz, de aprender a ler e escrever depois de velho. Raimundo não foi difícil. Complicado era Gaudêncio, denso de saudade, as cinco vogais e acentuado. Freitas era feito de sangue.

 A palavra que resta é uma obra sobre muitas questões. Temos ali a homofobia nua e crua, ainda que o texto não use esse termo em nenhum momento. A homofobia aparece escondida atrás da formação religiosa, da tradição, das convenções sociais e das regras ditas e não ditas sobre o papel de cada gênero em nossa sociedade. Está atrás da máscara que precisamos assumir desde muito cedo para ganhar o mínimo de respeito. Um respeito que pode custar a própria individualidade. O preconceito e o medo acabam por germinar em Raimundo e Cícero o sentimento de que são um erro, uma abominação, e como não conseguem conter o desejo acabam se contentando com um amor clandestino. 

Se encontravam quase todo dia. O risco era grande. Tudo na moita. Na moita mesmo se escondiam dos outros e se mostravam um para o outro. Homem e homem, e se entendiam muito bem, se gostavam. Gosto bom mas que deixava um ranço arranhando as ideias. 


 A vista de Raimundo escapulia até o corpo do outro, de peito duro descamisado, coberto de suor e poeira. Paisagem que desperta num pássaro preso o desejo de voar. Raimundo gaiola. 

A carta deixada por Cícero, que sabia ler e escrever, para Raimundo que não sabia, exerce um papel narrativo muito interessante para a trama. A carta ao mesmo tempo que representa toda a repressão que os dois sofreram, o sigilo da relação, a dúvida sobre um futuro juntos e sobre o destino tomado por Cícero, também representa o grande problema que é a miséria, que consequentemente pode levar ao analfabetismo. A carta representa um silêncio, que está no amor impossível e na impossibilidade de ler e escrever. 

Que invenção, Raimundo! e tu ainda consegue aprender alguma coisa? quanto mais ler e escrever, nessa altura da vida a gente tem que sonhar baixo, que a mente não alcança, nem o corpo, se tinha saúde, só a pressão um pouco alta e essa dor nas costas mas os braços e as pernas obedecendo, estava bom, e a cabeça sem esquecer também, as pessoas de ontem e de hoje, mas mesmo depois de velho parece que a gente não deixa de querer, o bom da vida é teimar...

Somado a tudo isso temos o peso do analfabetismo na vida de uma pessoa idosa. A obra passa a discutir sobre a oportunidade de resgatar um tempo perdido e de que sempre é tempo para aprender algo novo. Vamos percebendo que a trajetória de Raimundo está sempre nesse limiar entre a desistência e a resistência. Independente de todas as adversidades Raimundo acaba sempre escolhendo seguir em frente, mesmo que tardiamente.  

Sabia assinar, não tinha motivo para ficar com o documento só com a marca do dedo e ainda um carimbo vermelho, analfabeto. Tinha que trocar, que ele era outro. Saber ler e escrever estava fazendo isso mesmo. 

 "Que ele era outro". Essa passagem tem um poder muito forte de ilustrar toda a trajetória de vida de Raimundo. Ele sempre foi outro, nunca foi aquele que esperavam que fosse. Ser outro quando ninguém quer que você o seja tem um alto custo e Raimundo decide pagar por ele. Enquanto o conteúdo da carta de Cícero se torna uma expectativa para nós leitores, para Raimundo o adiamento de sua leitura parece o evitar do fim. É como se lendo a carta estivesse colocando um ponto final em uma grande história de amor. Raimundo carregou uma carta lacrada por cinquenta anos porque era como se assim continuasse caminhando ao lado de Cícero. 

Apesar de possuir passagens bem dolorosas, principalmente as que tem relação com a família de origem de Raimundo e Cícero, também mergulhamos em uma história que mostra o poder de se reinventar, de descobrir quem é e onde quer estar no mundo. É um livro que mostra que as dores podem servir como aprendizado. "A palavra que resta" fala muito sobre a exclusão que aparece das mais variadas formas, mas também fala de resistência e ressignificação. Raimundo é destruído por muitos mas também é reerguido por outros. Toda essa potência é possível porque tem como suporte uma escrita que explora a força da linguagem. Stênio se mostra um grande narrador, com um texto que tira o leitor do lugar comum e mostra que "tem palavras que a gente escuta na vida que parece poesia."