Cartas para a minha mãe da Teresa Cárdenas (Editora Pallas, 2010) é um livro epistolar que é quase um pedido de socorro. Não com o intuito de que apareça um salvador para tirar a protagonista do ambiente de violência parental em que vive, mas como um auto socorro. Nele uma menina escreve cartas para sua mãe morta e em seus escritos fica nítido o amor, a admiração e as saudades que sente dessa realidade. Escrever se torna então refúgio, lembranças de tempos bons, manutenção de sua memória afetiva e desabafo, já que na casa em que mora com uma tia e suas primas precisa fingir não existir. Sua avó também está sempre presente na história e assim como os demais parentes é incapaz de uma demonstração de carinho para a menina órfã. 

Parece que vovó nasceu velha e amarga, com pouco carinho. Às vezes tenho vontade de tirar o lenço de sua cabeça e fazer carinho em seus cabelos brancos, suas mãos, seu coração. Mas tenho medo. Ela não quer que ninguém lhe dê carinho. Diz que não adianta nada, se não serve pra comer.

A cada carta endereçada à memória da mãe, como leitores vamos acessando também a história de uma família que guarda dores e tragédias. Acessamos um pouco da construção social de Cuba em relação aos pobres, a um racismo arraigado nas relações, e muito sobre o poder das crenças e da religião sobre a vida das pessoas. 


O livro expõe uma nuance do racismo que violenta fortemente a construção das identidade, pois existe uma manifestação do preconceito que convence os próprios negros da sua inferioridade. Quando consegue fazer com que o negro abrace a ideia de que está exatamente na situação em que devia estar por conta da sua cor, o racismo garante sua manutenção do controle e do poder. 

A velhinha das flores me explicou que o Deus dos negros se chamam Olofi, mas é o mesmo Deus dos brancos, só que cada um coloca nele a cor e o nome que tiver vontade... Imagino que muitos brancos não conhecem essa história. Eles não gostariam de adorar um Deus preto retinto e beiçudo, por mais misericordioso que fosse. Não iam achar bonito.

 Ao mesmo tempo que as cartas revelam as dores e violências que a menina precisa enfrentar, vai também mostrando como pouco a pouco ela foi reencontrando sua força. O livro nos deixa angustiado do começo ao fim, pois escancara a realidade da violência contra uma criança, algo que infelizmente acontece muito. Mas a menina, sempre que possível, exerce sua ironia perante a vida, reconhece intenções, atos e falas destrutivas, questiona o porque de alguns acontecimentos e por vezes temos momentos bem engraçados, que serve como um respiro para os leitores. 


Existe uma não aceitação de seu núcleo familiar que tem a ver com o racismo e um outro lado que tem raiz na história familiar. No que se refere ao racismo, Teresa Cárdenas faz algo muito interessante que é colocar a personagem principal no lugar de questionadora. Enquanto suas primas a perseguem por conta da cor da pele, do cabelo, das suas feições de menina negra, a mesma ao questionar o porque dos ataques vai chegando à conclusão do absurdo de tudo. Ela transforma a violência em auto afirmação. 


Mãezinha, encontrei um pedaço de espelho na rua. Agora, passo o tempo todo me olhando. A testa, os olhos, o nariz, a boca... Sabe de uma coisa? Descobri que meus olhos são parecidos com os seus, que não podiam ser mais bonitos, e que minha boca e meu nariz são normais... Se Deus existe, com certeza está furioso por ouvir tanta gente criticando sua obra.

Um outro acontecimento que será muito importante para a libertação da menina será a relação familiar que passará a estabelecer com outras pessoas que entrarão em sua vida. Uma velha tida como bruxa na comunidade com quem conversa e se refugia do sofrimento. E um jovem que estuda na mesma escola e que também enfrenta problemas familiares. Com ele a menina começa a descobrir o amor. 


Podemos dizer que "Cartas para a minha mãe" é um livro que exalta a liberdade, o auto conhecimento, a libertação. Ele também demonstra como nós, seres humanos, somos seres que necessitam da interação e do afeto dos nossos para enfrentar melhor os desafios da vida. Estamos diante de cartas que registram o amadurecimento e o crescimento de uma menina que utilizou das perdas irreparáveis para construção da sua individualidade. A menina escrevia para a mãe e também para si.