Cachorro Velho da Teresa Cárdenas (Editora Pallas, 2010) é uma obra prima. O livro foi o vencedor do Prêmio Casa de Las Américas, um dos mais importantes do mundo de fala hispânica e conta a história de um negro escravizado que ainda criança recebeu o apelido de Cachorro Velho. O livro apresenta um histórico de fácil compreensão para quem conhece minimamente os impactos da escravidão em nosso país. A forma como Brasil e Cuba viveram esse período de extrema violência é bastante parecido, inclusive em detalhes como a data de abolição. Cuba aboliu a escravidão apenas dois anos antes do Brasil, em 1886. Durante toda a sua vida Cachorro Velho foi escravo em um engenho de açúcar e enquanto acessamos suas memórias, já idoso e cansado, deparamos com toda a crueldade e violência do racismo e suas consequências para corpo, alma e subjetividade de um ser humano. 


Quantos anos de vida lhe restavam: três, quatro, vinte? Toda uma eternidade? Difícil saber. Os escravos nasciam com a morte dentro de si e, as vezes, esta se mostrava de maneira caprichosa. Ou não se manifestava tão rapidamente quanto alguns prefeririam ou aparecia quando menos esperavam.


"Cachorro Velho" trás uma reflexão que para boa parte da humanidade é inconcebível se medir. Pode-se ler sobre, mas impossível alcançar uma dimensão próxima como a de quem teve o corpo marcado a ferro e chicotadas. Quais os reflexos para a alma e o dia a dia de alguém que vive escravizado? Que tem um dono a quem precisa obedecer como a um deus? A alguém que possui o "direito" de fazer o que bem entender com o seu corpo, inclusive matar? No livro Teresa Cárdenas explora essas questões de uma forma muito sensível e também chocante. A personalidade de Cachorro Velho serve de instrumento para ilustrar o absurdo da escravidão. Quando começamos a leitura "Cachorro Velho" está olhando para si, para o barracão em sua volta, para sua amiga Beira e para sua própria trajetória de vida que não o pertencia, pensando que "nunca em sua vida havia ultrapassado a cancela do engenho. Tinha setenta anos e não se lembrava de ter vivido em outro lugar."

No almoço, quando o patrão descia até o pátio da fazenda, todos deviam olhar para o chão. E se o senhorzinho cismasse de sair cavalgando pela propriedade, então Cachorro Velho devia abrir a cancela, cabisbaixo, e sem dar um pio. Para o porteiro, todos aqueles senhores eram um só. Quer tivessem cruz, bengala, cavalo, arnica, chicote, breviário ou coroa de espinhos, dava tudo no mesmo. Um escravo nunca poderia ficar ereto diante deles, e muito mesmo fitá-los nos olhos. Os escravo sabiam que o patrão era dono de suas vidas, seu senhor, aquele que decidia se eles mereciam viver ou não, se estavam prontos para constituir família, se podiam ficar com os próprios filhos, ou se estes seriam vendidos como cestas de frutas. O patrão deliberava sobre tudo que se relacionasse às suas vidas e mortes, com mais poder do que Deus, e do que todos os santos dos quais o vigário falava nos domingos. Um escravo era apenas um pedaço de carne malcheirosa, e mais nada. 

 Além de lidar com todas as agruras do trabalho escravo, Cachorro Velho, agora um senhor de 70 anos, também se vê em risco maior por conta do avançar da idade. Fora colocado como porteiro do engenho. Ele já perdeu grande parte de sua força de trabalho e teme sobre seu futuro, uma vez que um escravo que não dá conta do trabalho pode ser simplesmente descartado pelo senhor de engenho.


Uma parte tocante do livro é quando Cachorro Velho reflete sobre sua relação com o amor, com a vida amorosa. Nos vemos diante de mais uma violência do racismo, que é a proibição também dos afetos. Por medo da violência e do poder de decisão dos patrões sobre sua vida, Cachorro Velho, durante toda sua sobrevivência, acaba fazendo de tudo para impedir que o amor romântico se manifeste. O mesmo movimento de afastamento foi feito após nosso protagonista perder um amigo de forma violenta. Na narrativa percebemos o quanto a morte de seu amigo Ulundi, pelas mãos dos senhores, fez com que o afeto deixasse de ser uma opção em sua vida. 

O porteiro tinha conhecido a tristeza, a dor incessante de todas as suas perdas, a inquietação do medo que não ia embora, o cheiro ameaçador da tortura e da morte. No entanto, desconhecia qualquer coisa que tivesse a ver com o amor. Duvidava que seu coração tivesse a força ou a resistência necessárias para encontrar o caminho correto e chegar aquele sentimento.  

Assim como o amor e o afeto encontra suas formas de se manifestar na vida de Cachorro Velho, devagar e sorrateiramente, o desejo de liberdade também brota como erva daninha. Tivera uma vida inteira de privação e após um acontecimento no engenho, Cachorro Velho vê brotar o desejo de uma fuga, de alcançar os morros e chegar a um Quilombo. Nessa altura o livro nos mostra que é da natureza humana a resistência e o desejo de viver.