A visão das plantas da Djaimilia Pereira de Almeida (Editora Todavia, 2021) encara de frente um dos maiores dilemas enfrentados pela religião, pela filosofia, pelos poetas e diversas outras instâncias do pensamento: o que é ser bom ou ser mal? Mas é claro que a autora não tem a pretensão de dar uma resposta definitiva pra gente, pois então não estaríamos falando de literatura. Djaimilia coloca muitas outras questões em nossa cabeça e isso tudo com uma escrita poética de tirar o fôlego de tão artística, profunda e desafiadora. Se falar de bem e mal é explorar dualidades, a autora aproveitou dessa característica para criar uma narrativa que também é pura dualidade. Desde a personalidade do protagonista, até a representação do que poderia significar a lida e o cuidado com as plantas, existem dois mundos a serem explorados, uma espécie de Yin e Yang mostrando que na vida tudo tem mais lados do que poderíamos imaginar. A ideia para escrever essa história nasceu após a autora ter lido o livro "Os Pescadores" do Raul Brandão. O trecho que chamou a atenção de Djaimilia está na introdução de A visão das plantas.


Djaimilia conta a história de um capitão de navio negreiro que após se aposentar retorna a Portugal, para a casa abandonada de sua família com uma trajetória de violências e atrocidades. Ele sabe muito bem de tudo que fez e seus vizinhos, a comunidade para a qual retorna também conhece seus mal feitos. Carregando essa bagagem, uma trajetória assombrosa, o Capitão Celestino se joga com afinco nos cuidados de um jardim. Cercado por flores e plantas dos mais diversos tipos, Celestino se fecha cada vez mais em seu próprio mundo. A lida com as plantas parece ser a sua maneira de realizar algo de bom e delicado antes do fim de sua existência. 

Nenhuma flor lamentava a morte dos escravos que Celestino sufocara em mar alto. Os homens despejaram a cal no porão, saco a saco. Os negros viram que um pó caía sobre eles, mas não entenderam o que se passava. Os sacos de cal foram vazados no porão e a porta fechada por Celestino. Ouviram-se gemidos, pedidos de socorro e, passado algum tempo, um silêncio que apaziguou os piratas. O rapaz que lhes abrira o porão pela calada manteve-se a um canto, aturdido.

Na minha leitura, não consegui perceber um sentimento real de arrependimento pelas monstruosidades cometidas por Celestino. Acredito que o homem mantinha vívida todas as suas concepções de mundo, e o que ele fizera foi se render ao cansaço, se recolher à própria solidão por saber que boa parte das pessoas não comungariam com o que fizera durante toda a vida. Celestino começou a se ver diante de um outro mundo que não aceitaria  a sua história. 


As plantas aparecem como algo que significa o belo, o estético e o prazer para Celestino, mas também como companhias, que encheriam sua vida de beleza, que ocupariam seu tempo e o mais importante, não o julgariam. 


O retorno de Celestino para casa, para Portugal, serve como uma ótima alegoria para demonstrar a mudança de um tempo, o processo de transição da sociedade. Quando Celestino volta pra casa ele se vê em um lugar que faz parte da sua história, onde estão suas maiores lembranças, onde passou a sua infância, acontece que como ele não é mais o mesmo, aquele lugar também não teria como ser o mesmo. "A mobília não saudou o seu regresso. Não tinha mais ninguém na vida." A partir daí Djaimilia é muito perspicaz a dar vida à casa, às plantas, aos móveis e a própria poeira da casa a muito fechada. 

Abriu as portadas e o ar entrou nela como um esconjuro. Os lençóis sobre os móveis esvoaçaram e o capitão teve medo de que a alma da casa saísse pela janela e se perdesse na rua. Fechou-as de novo e, em silêncio, respirou o pó.

... a missão do jardim desgovernado era penetrar nas frinchas das portas, apodrecer a água do poço com fungos venenosos, apoderar-se da mobília, entrar nas gavetas, alastrar os ramos até aos olhos dos quadros dos velhos e levar a memória do que fora a vida humana que um dia ali tinha habitado.

Seguindo na aposta pela dualidade a única pessoa com a qual Celestino conversa e recebe visita é a do Padre Alfredo. O homem tenta convencê-lo a se confessar, a enfrentar de frente seu passado, mas naquele momento de vida de Celestino, um homem velho, rechaçado pelas pessoas e quase cego o que menos deseja é verbalizar suas atrocidades. Celestino, apesar de aparentar não fazer mais nenhuma das maldades que fazia parte do seu dia a dia, faz questão em manter sua fama de abominável viva. Assim ele mantém as pessoas longe. 

O homem previdente que ali vivia só plantava as flores do seu sepulcro. Sozinho com ele, padre Alfredo não se atreveu no passado do pirata. Tinha diante de si um jardineiro. As mãos, que outrora haviam de ter cheirado a rum e a sangue, cheiravam agora a coalho e a terra cultivada.

Celestino, que sempre fora um homem duro, bruto, um assassino, no fim da vida se ajoelha para cuidar de plantas e com um cuidado e um amor que saltam aos olhos, tanto pela dedicação como pela beleza do seu jardim. Uma mão que levantou faca, porrete e pólvora, de repente se vê podando, aguando e retirando ervas daninhas. O delicado substitui a brutalidade em devoção e silêncio. 


"A visão da plantas" trabalha com uma beleza que pode ser a beleza por si só, como também uma beleza mórbida. No livro plantas e protagonista são explorados a fundo. O silêncio de Celestino fala mais do que se a publicação se estendesse por mais de mil páginas e toda a simbologia das plantas, a sua necessidade de contenção para que não tome conta de tudo, e sua quase que indiferença ao que está a sua volta, ajudam a criar um clima em torno da leitura que é poético, mas que também é tenso. Assim como toda a história de vida de Celestino, também a lida com as plantas o aproxima da relação vida e morte. Vida e morte continuam em suas mãos. 


O livro se torna muito ousado ao mostrar um outro lado de uma pessoa com uma história pavorosa. Não é uma história de pequenos erros, é a história de um assassino genocida. É de uma coragem imensa escrever sobre a humanidade que possa existir (e existe de alguma forma) também nessas pessoas que devassam vidas. A máxima de que ninguém é só mal permeia todo o livro e de forma alguma Celestino ganha um perdão dos leitores por isso. O certo e errado, assim como bem e mal deixam de pedir uma definição para ganhar exploração. Assim, podemos refletir e conversar, deixando um pouco o julgamento de lado, e indo um pouco mais a fundo tentando entender sobre o que leva alguém a ser o que é. Djaimilia consegue se manter como uma narradora completamente imparcial e joga a história de Celestino em nossa cara. O leitor faz o que quiser com ela.