Um rio chamado tempo, uma casa chamada Terra de Mia Couto (Companhia das Letras, 2003) é um livro que abraça forte um projeto de literatura como arte. Essa é uma característica que podemos encontrar nos diversos textos de Mia Couto, que trabalha com as palavras de forma cirúrgica sem perder algo que garante fluidez de leitura e aproximação dos leitores das temáticas que propõe tratar. Em "Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra" encontraremos temas muito fortes e estruturantes para a história apresentada. Temos a morte como um dos temas centrais, e aqui a morte não aparece como eminência de fim, e sim como ponto de partida. Encontraremos a exploração das relações familiares sob diversas óticas e principalmente através do viés das lembranças e das memórias. Veremos o rio e a casa como simbologias para tempo, espaço, ciclo e movimento. Também teremos a beleza e o peso das tradições, assim como as questões sobre mestiçagem como um "não lugar", mas também como possibilidade de estar lá e cá, da construção das individualidades culturais, nacionais, coletivas e individuais. O livro é também um contraponto entre as tradições e as ditas modernidades e suas formas de coexistirem - algo que nem sempre ocorrerá de forma pacífica. 


A história do livro se passa em Luar do Chão, uma aldeia isolada que enfrenta diversos problemas advindos da desigualdade social e de um contexto político pós guerra civil. É nesse contexto que os personagens vão sendo desenhados e que o tema da mestiçagem vai sendo trabalhado de forma muito intensa. Marianinho, um jovem estudante universitário, chega a Luar do Chão por conta da morte de seu avô também chamado Mariano, e serve como nossos olhos, como nossos óculos a medida que vai retornando a seu lugar de origem, reencontrando familiares e histórias de sua família. 


Como Marianinho viveu processo de afastamento de sua aldeia para viver em um centro urbano, podemos perceber na história uma exploração das tradições em contraponto com o dito "mundo moderno". Lemos uma espécie de comparação entre as vivências de um espaço urbano das vivências de um ambiente de aldeia. Enquanto o espaço urbano acaba por promover um afastamento das tradições, o que é algo quase que inerente a ideia de globalização e modernidade que vivemos hoje, a aldeia aparece como o lugar que possibilita o contato com a tradição quase como algo sagrado e místico. O espaço de aldeia é apresentado como uma personificação das lutas pela manutenção das tradições. 

Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade e a ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam mais que a sua própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas nações, mais  longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas. 

Mia Couto vai passeando entre o moderno e as tradições, entre o real e o fantástico. A própria morte do avô Mariano serve como uma estratégia narrativa para isso. Quando Marianinho chega ao vilarejo percebe que seu avô ainda não fora clinicamente declarado como morto e que seu pulso apesar de estar extremamente fraco, ainda está ali pulsando. Enquanto esperam pelo desfecho, pelo último suspiro de Mariano as tradições em relação a morte vão desfilando pelas páginas, mostrando a morte como movimento, como renascimento. Diante do "fim" toda a família se move. "A morte, essa viagem sem viajante, ali estava a dar-nos destino."


O autor cria um universo que muito se aproxima do realismo fantástico latino americano do século XX. É como se ao atravessar o rio que leva a ilha de Luar do Chão estivéssemos também atravessando uma linha que divide o mundo moderno de um mundo místico, cheio de segredos e que vive sob lógicas que Marianinho vai passar a investigar. A história de cada personagem de Luar do Chão parece viver também sob as régias da natureza, com descrições fantásticas de encher os olhos. Mia Couto criou uma narrativa onde os segredos, os mistérios e os principais eventos que modificam uma vida são tão fortes a ponto de causar manifestações da natureza. 


Um outro ponto interessante do livro são os nomes que Mia Couto escolhe para as personagens. Alguns são quase literais a ponto de carregarem consigo uma grande característica da personalidade da pessoa que o carrega. Os nomes vão trazer consigo um caráter simbólico para a obra e serão mais um elemento para que o leitor entenda cada personagem. Tio Abstinêncio, Mariavilhosa, Ultímio e Admirança são alguns dos exemplos. A forma como Mia Couto brinca com algumas palavras também é algo que pede dos leitores uma total imersão na obra e no tipo de história que está sendo contada. Muitas vezes não entendemos se a construção de algumas palavras obedece a alguma tradição, dialeto de Moçambique ou se é algum analogismo. 


Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra" Mia Couto trás o sagrado até a palavra e a palavra até o sagrado em uma troca que não busca explicações lógicas. O autor consegue torna o real algo realíssimo utilizando do fantástico em uma literatura que desafia nosso olhar acostumado apenas a leituras ocidentalizadas. O livro utiliza muito bem da fantasia, dos mistérios, dos sonhos, do suspense para criar uma obra que atravessa o rios e faz morada dentro das vivências de cada leitor.