Moisés Negro de Alain Mabanckou (Tag Experiências Literárias, 2020)  é um história de formação que acompanha a vida de Tokumisa Nzambe po Mose yamoyindo abotami namboka ya Bakoko desde a infância e adolescência no orfanato até a vida adulta. Grande parte da narrativa se passa no orfanato Loango que está localizado na República do Congo. Enquanto acompanhamos o desdobrar de uma vida sofrida em meio aos ditos excluídos em meados dos anos 70, também temos contato com fragmentos da história recente de um país e de uma revolução comunista. O autor fala sobre o Congo, seu lugar de origem, e a forma como explora o país parece ter uma ligação com o fato de que Mabanckou está, desde 2015, proibido de visitar seu país. Escrever é sua forma de revisitar o Congo. 


Tudo começou nessa época em que, adolescente, eu me perguntava a respeito do sobrenome que Papai Moupelo, o padre do orfanato Loango, tinha me dado: Tokumisa Nzambe po Mose yamoyindo abotami namboka ya Bakoko. Esse longo sobrenome significa, em lingala, "Demos graças a Deus, o Moisés negro nasceu na terra dos ancestrais", e ainda está registrado em minha certidão de nascimento...


Estamos diante de um personagem narrador, que começa a contar sua história aos 13 anos de idade, mas que também revisita sua infância e os acontecimentos que o levaram a se tornar um órfão. Dentro do orfanato, Moisés aprende as primeiras lições da vida, tem em Papai Moupelo uma referência, e em Bonaventure Kokolo uma amizade que funciona como âncora. 


Minha amizade com Bonaventure era como de um paralítico com um cego. Ele andava por mim, eu via por ele, e às vezes era o contrário. Quando não o via, procurava-o em todo canto. 

 

Moisés aprendeu muito cedo que precisava encontrar maneiras, artimanhas para garantir sua sobrevivência. Apesar de seu contato com o mundo exterior praticamente não existir inicialmente, dentro do orfanato Loango ele vê muitas questões sociais sendo refletidas, como ânsia de poder, preconceitos, violências e a tensão existente entre povos de etnias diferentes. É interessante analisar as percepções de Moisés em relação ao mundo, ao que está lá fora e principalmente com as pessoas que passam por sua vida.


Um ponto forte do livro é a temática da perda. A perda já se manifesta no próprio fato de Moisés ser um menino órfão que vive em um orfanato e no decorrer do livro, o jovem vai se vendo em novas situações de perda que parecem sempre atingir as pessoas pela qual ele constrói relações de afeto. 


A República do Congo também aparece como ponto de destaque na obra. De dentro do orfanato as crianças e os funcionários vão sentindo os impactos de uma revolução comunista que assola o país e vai mudando as estruturas dos poderes. 

Um dia seria preciso que nós nos acostumássemos a essa situação e que, de todo modo, deveríamos jogar o jogo da Revolução, e assim aprender os discursos do presidente da República em vez de rezas e danças do norte e dos pigmeus do Zaire. 


Durante todo o livro Alain Mabanckou vai nos apresentando como contraponto à Revolução aspectos relacionados a cultura do Congo, como histórias, crenças, religiões, fantasias, alimentos, danças que fazem parte do imaginário do povo. Também é discutida a forma como os processos de descaracterização dos países acontecem através de invasões estrangeiras e de pensamentos colonizadores, como no trecho abaixo, que demonstra de forma genial como a religião também é uma forma de dominação.

Quando os Brancos vieram para a África, tínhamos as terras e eles tinham a Bíblia. Eles nos ensinaram a rezar de olhos fechados: assim que os abrimos, os Brancos tinham a terra, e nós, a Bíblia

Moisés nasce do abandono, passa toda uma vida colecionando mais perdas e vivendo uma realidade onde até o alimento de cada dia é uma incógnita. É a partir daí que o livro passa a tratar também sobre saúde mental. Como ser feliz em uma sociedade tão desigual? Como ser feliz quando não se conhece suas próprias origens e quando o afeto parece ser algo proibido a sua realidade? Todos esses dilemas são tratados por Alain com uma linguagem coloquial que apesar do peso das temáticas se tornou um livro de leitura muito rápida e fluida. Mabanckou torna a dor e a loucura algo mais palatável em Moisés Negro para que o leitor tenha a possibilidade de refletir sobre o peso que uma história de vida pode ter.