1895 - Adolfo Caminha lança “Bom Crioulo”, um romance que ousou tratar do amor romântico e da relação sexual entre dois homens. Quando olhamos para essa data, logo imaginamos a construção de uma narrativa de episódios que brincam com a sugestão para tratar dessa temática, mas não foi isso o que Caminha fez. O autor retratou o homoerotismo de forma explícita. O desejo, as pretensões e os sentimentos de Amaro e Aleixo são apresentados sem muitos pudores e isso, é claro, gerou grande polêmica e o livro foi considerado pornográfico. Uma história de amor entre pessoas do mesmo sexo, onde um era negro e o outro branco e integrantes da Marinha fez com que o preconceito em relação à orientação sexual, o preconceito racial e o machismo mostrassem sua força relegando uma obra literária ao esquecimento. O “Bom Crioulo” acabou sendo reeditado nos anos 30 e mais uma vez a reação da Marinha fez com que o livro causasse polêmica e estranhamento. Utilizaram o argumento de que se tratava de uma obra comunista para poder impedir sua circulação. Nos anos 50, por conta de ações de movimentos LGBT e de acadêmicos, o livro voltou a ser publicado e dessa vez sendo reconhecido como um clássico e carregando a importância de ser considerado talvez o primeiro livro publicado a ter um homem gay e negro como protagonista.


1962 - Cassandra Rios escreveu o livro “A Volúpia do Pecado” na década de 1940 quando ainda tinha 16 anos. A obra que trata de uma história ardente de amor entre duas mulheres teve que ser publicada com investimentos próprios depois de ter sido recusada por inúmeras editoras. Cassandra era uma escritora assumidamente lésbica e seu intuito sempre foi representar as diversas manifestações de amor entre mulheres de maneira natural. Sua obra, por incrível que pareça, circulava de forma massiva entre os leitores, sendo a primeira escritora brasileira a alcançar o número de 1 milhão de exemplares vendidos. Logo chamou atenção da censura e dos preconceituosos. Em 1962 seu primeiro livro “A volúpia do pecado” foi proibido. Cassandra Rios foi censurada e presa durante o governo Getúlio Vargas. Nos anos de chumbo foi novamente censurada, detida, multada por atentado à moral e aos bons costumes e recebeu a alcunha de “escritora maldita”. Durante toda sua vida, 36 dos 50 livros que escreveu foram censurados. A escritora era perseguida por “ofender os valores familiares” e esse histórico a levou para um esquecimento social e literário.


Maio de 2019 - Guido Arosa lança seu livro de estreia “O Complexo Melancólico” que trata de forma corajosa e sincera sobre traumas, dores, estigmas e demais questões que um jovem gay pode enfrentar. Estamos diante de um livro sobre abuso sexual, sobre doenças, sobre a violência da homofobia, conflitos familiares e hipocrisia da sociedade. “O complexo melancólico" foi vencedor do Prêmio Rio de Literatura na categoria Novo Autor Fluminense. O facebook, uma das redes sociais mais populares no mundo, chegou a censurar a capa de do livro pelo simples fato de aparecer um tronco masculino peludo e com vestígios de suor, que também sugere esperma escorrendo pela barriga. A capa além de fazer total sentido para a temática do livro é uma das obras do Alair Gomes, precursor da fotografia homoafetiva no Brasil. O autor Guido Arosa teve a postagem com a capa do livro apagada e foi bloqueado pela rede social por 30 dias.


Setembro de 2019 - O gibi “Vingadores: a cruzada das crianças” sofreu uma tentativa de censura pela Prefeitura do Rio de Janeiro durante a Bienal do Livro. Marcelo Crivella, o prefeito, publicou um vídeo nas redes sociais informando que havia determinado que os organizadores da Bienal recolhessem o livro por trazer conteúdo sexual para menores. Todo esse alarde se deu por conta de uma ilustração contida no livro de dois rapazes abraçados e se beijando. Após grande repercussão a prefeitura mandou uma notificação extrajudicial para a Bienal pedindo que os livros fossem lacrados com plástico preto e que viessem com classificação indicativa e aviso de material impróprio. Com isso, um livro que estava apenas exposto numa prateleira e que a ilustração em questão estava na parte interna, passou a ser amplamente procurado pelos leitores e mobilizou artistas, editoras e a população em geral para manifestações contra a censura e a homofobia. A imagem do beijo que a prefeitura não queria que as crianças vissem passou a figurar em todos os jornais televisivos e impressos, nas redes sociais e a notícia rodou o mundo.


Podemos dizer que hoje existe uma literatura gay? Esse é um assunto que demandaria muita pesquisa e consulta de pensadores e teóricos que defendem e que discordam dessa nomenclatura ou conceito. Teríamos que estudar se existem então características, marcas, pontos, aspectos estéticos e políticos que marcariam essa distinção e o intuito aqui não é esse. O meu objetivo é falar sobre apagamento da diversidade em nome de uma “normalidade” e de um pudor que custam a identidade e a vida de milhares de pessoas. Algo que já podemos fazer é uma reflexão pela observação e análise desse passeio temporal pelo obscurantismo. Citei alguns poucos exemplos de manifestações do preconceito a fim de introdução e desconfio que você que me lê, deve ter se lembrado de outras ocorrências da censura que também ilustram esse movimento de apagamento da diversidade na literatura.

De uns anos pra cá temos visto muitas publicações do mercado editorial que visam o público LGBTQIA+ e até um movimento de incentivo para que membros da comunidade escrevam suas próprias histórias. Ainda assim é algo pequeno se olharmos para nosso contexto brasileiro e se pensarmos que grande parte da comunidade queer que enveredou pela literatura, precisou fazer isso de forma independente e abrindo espaços com muita luta. Somos um país que carrega consigo inúmeras mazelas sociais e elas refletem na forma como tudo funciona. Se somos o país que mais mata LGBT’s no mundo é muito fácil concluir que a população queer não estaria bem representada na TV, no cinema, nas vagas de emprego, na política, e claro, na literatura. Uma das maneiras mais eficazes de se excluir uma parcela da população, promover seu apagamento e banalizar sua morte é pelo viés da não existência.

O que aconteceu em meados de 1895 com Adolfo Caminha, com Cassandra Rios a partir da década de 60, com Guido Arosa e a Bienal do Livro do Rio em 2019 é a perpetuação de um movimento que busca a total invisibilidade da diversidade, uma tentativa de manutenção da ideia de não existência da população LGBT que utiliza sem pudores do jogo político, da religião e dos cargos de poder. O que não existe não precisa de respeito, não precisa de igualdade, não precisa de direitos e não será digno nem mesmo da empatia de alguém que presencia um espancamento numa esquina.

Sempre que tenho acesso a esses novos romances LGBT’s para jovens adultos que estão sendo lançados faço questão de ler. E sempre me passa pela cabeça que não tive a oportunidade de fazer esse tipo de leitura na adolescência, ou seja, me ver representado nas histórias que tanto lia e que poderiam fazer com que tivesse referências diferentes sobre minha própria formação. Representatividade importa e não podemos deixar com que essa expressão se banalize e se esvazie de significado, pois ela se conecta com a construção de nossas identidades e nos coloca como sujeitos no mundo. Fico empolgado só de imaginar os sentimentos de um jovem gay que tivera acesso a um exemplar de “Bom Crioulo” no fim do século XIX, de uma garota confusa com seus sentimentos acessando uma das obras de Cassandra Rios e descobrindo que existem outras pessoas como ela.

O mercado editorial ainda tem muito preconceito ou falta de coragem em bancar produções que, de alguma forma, questionam os estereótipos binários impostos pela sociedade. Quando falamos de uma literatura que vem dar voz aos invisibilizados, automaticamente estamos falando de uma obra que precisa representar o sujeito. Digo especificamente o sujeito gay na sua particularidade fugindo de estereótipos que durante muito tempo serviram como campanha de desmoralização e reafirmação de preconceitos. Não é necessário apenas dar visibilidade, mas se faz necessário que seja uma visibilidade que nos torna existentes. Como estamos falando de livro e leitura o conceito de arte e literatura precisam caminhar juntos nesse processo que é estético, mas também político.


Texto foi publicado originalmente na edição de setembro de 2020 da Revista Terrível em uma coluna que assino chamada "escrelivrarei". A revista é um projeto idealizado pelo bibliotecário, escritor e desenhista Igor Tavares. Conheça: https://revistaterrivel.wordpress.com/