Verás que tudo é mentira do Mário Baggio (Editora Coralina, 2020) é um livro de contos onde o autor explora mais uma vez as realidades, o fantástico, o maravilhoso, o assustador, o surpreendente e o comportamento humano em narrativas curtas e dilacerantes. Na escrita de Mário, encontramos uma dedicação sobre o olhar, a percepção da vida, das pessoas e dos acontecimentos sob outra ótica. O fantástico trabalha como lupa para tratar da realidade e é essa ampliação dos fatos através da ficção o mais fascinante em sua obra. Nos contos percebemos a mentira como protagonista e a mesma não é explorada apenas em seu caráter pejorativo, da mentira como problema, como inverdade, como pecado, mas também como estratégia de sobrevivência, manutenção das boas relações, escudo contra as dores e como algo inerente ao ser humano enquanto ser narrativo independente de suas intenções.
Claro que aquela sirigaita da Heleninha não era perfeita. Não era o anjo que as freiras diziam que era. Grande coisa que era a mais bonita que nós, as outras, as coitadas, como a madre superiora gostava de falar. A Heleninha não, não era uma coitada, tinha uma beleza marmórea semelhante à dos querubins e por isso era sempre colocada na frente - na fila do pátio, na sala de aula, no refeitório, na hora de canta o hino. As freiras até paravam de respirar quando ela passava perto. É feita de porcelana, diziam.Os cachos do querubim eram de um amarelo irreal, perfeito, e estava sempre com o uniforme impecável, sem nenhum amassadinho. Seus sapatos, então, eram como um espelho de tão reluzentes. Se nós, as coitadas, nos colocássemos muito perto dela na fila, podíamos ver o nosso rosto refletido no couro imaculado de seus calçados. Isso nos dava arrepios, parecia coisa de bruxa.Na aula, quando a professora não estava olhando, a angelical criatura metia suas unhas rosadas e redondas no braço de quem estivesse perto e, segundo ela, atrapalhando sua concentração - como alguém pode ter unhas assim, tão perfeitas? Se a vítima soltasse um gritinho e a professora se virasse, o querubim sorria com doçura, fingindo copiar a lição da lousa. A verdade é que tínhamos medo dela e do seu jeito dissimulado. Uma atriz, sem dúvida. Poderia ser uma artista de muito sucesso no futuro, se chegasse a ter um futuro. Não teve.A boneca de pele de alabastro morreu anteontem e nenhuma de nós fingiu pesar porque tínhamos certeza de que não era um anjo. Se fosse, teria que voar quando a colocamos descalça e sozinha no parapeito do sexto andar e demos um empurrãozinho de leve. Não voou. Azar dela.
No conto acima e em muitos dos outros presentes no livro, podemos perceber esses elementos onde verdade e mentira são manipuladas a bel prazer das personagens e em prol de uma narrativa edificante, de uma justificativa, do ataque, da defesa e da manutenção das aparências. Em outros as personagens são vítimas de uma mentira que parece não ter origem e ser uma regra de vida. Algo que adoro também na narrativa de Baggio é seu rompimento com o politicamente correto, o que confere uma maior liberdade para sua escrita. Quando se despe de medos e de travas sobre o que se pode ou não escrever, o autor se veste de possibilidades para devassar a existência e as relações.
Quando falamos de mentira, também falamos sobre verdade, assim como o imã que parece sempre atrair amor e ódio, vida e morte. E mentira e verdade nada mais são do que construções que vão ser influenciadas por diversos fatores e que se tornam impossíveis de serem enquadradas em uma regra. A escritora Marina Colasanti, em uma crônica recente que fala sobre "realidade", outra faceta da "verdade/mentira" nos diz brilhantemente que "a realidade é a miragem pela qual orientamos nossas vidas. A solidez inexistente. A rocha-nuvem." Mário Baggio nos deixa um recado muito parecido sobre a mentira. Ela está aí e faz parte do jogo da vida, as vezes pode ser mensurada, as vezes não, pode fazer tão mal quanto bem e a gente usa. Quem diz nunca mentir mente para si mesmo.
Mário Baggio é jornalista, escritor e blogueiro. Mantém o blog homem de palavra, em que divulga sua produção literária. Para adquirir um exemplar de "Verás que tudo é mentira" é só acessar o site da Editora Coralina AQUI!
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