Verás que tudo é mentira do Mário Baggio (Editora Coralina, 2020) é um livro de contos onde o autor explora mais uma vez as realidades, o fantástico, o maravilhoso, o assustador, o surpreendente e o comportamento humano em narrativas curtas e dilacerantes. Na escrita de Mário, encontramos uma dedicação sobre o olhar, a percepção da vida, das pessoas e dos acontecimentos sob outra ótica. O fantástico trabalha como lupa para tratar da realidade e é essa ampliação dos fatos através da ficção o mais fascinante em sua obra. Nos contos percebemos a mentira como protagonista e a mesma não é explorada apenas em seu caráter pejorativo, da mentira como problema, como inverdade, como pecado, mas também como estratégia de sobrevivência, manutenção das boas relações, escudo contra as dores e como algo inerente ao ser humano enquanto ser narrativo independente de suas intenções. 


Dostoiévski dizia que “a mentira é o único privilégio do homem sobre todos os animais” e acredito que a literatura é um dos principais instrumentos onde podemos fazer uso desse privilégio quase que impunemente. Mário utilizou de seu privilégio de escritor e escancarou as mentiras em seus mais diversos formatos. Lemos sobre uma mentira que mata, mas também sobre uma mentira que salva, assim como diversas provocações sobre as mentiras que engolimos desde cedo, por assim termos encontrado o mundo. Lemos sobre aquelas mentiras que sabemos muito bem o que são e que é mais fácil fingir serem verdades. Lemos sobre mentiras que realmente acreditamos nelas e nem por isso deixam de ser mentiras. Lemos sobre mentiras que são manifestações de ódio e também de amor. 

Tudo isso é trabalhado muito bem, textualmente falando. E imageticamente também. Mário Baggio narra com precisão em poucas linhas e faz com que a gente fique vários minutos olhando para o nada, com o livro pendendo sob os dedos a cada leitura. Nos conectamos com situações e momentos que são íntimos, que são engraçados, que são dolorosos, que são extremamente irônicos e que demonstram o tempo todo como somos um universo de beleza e barbárie, de verdades e mentiras. 

Heleninha

Claro que aquela sirigaita da Heleninha não era perfeita. Não era o anjo que as freiras diziam que era. Grande coisa que era a mais bonita que nós, as outras, as coitadas, como a madre superiora gostava de falar. A Heleninha não, não era uma coitada, tinha uma beleza marmórea semelhante à dos querubins e por isso era sempre colocada na frente - na fila do pátio, na sala de aula, no refeitório, na hora de canta o hino. As freiras até paravam de respirar quando ela passava perto. É feita de porcelana, diziam. 

Os cachos do querubim eram de um amarelo irreal, perfeito, e estava sempre com o uniforme impecável, sem nenhum amassadinho. Seus sapatos, então, eram como um espelho de tão reluzentes. Se nós, as coitadas, nos colocássemos muito perto dela na fila, podíamos ver o nosso rosto refletido no couro imaculado de seus calçados. Isso nos dava arrepios, parecia coisa de bruxa. 

Na aula, quando a professora não estava olhando, a angelical criatura metia suas unhas rosadas e redondas no braço de quem estivesse perto e, segundo ela, atrapalhando sua concentração - como alguém pode ter unhas assim, tão perfeitas? Se a vítima soltasse um gritinho e a professora se virasse, o querubim sorria com doçura, fingindo copiar a lição da lousa. A verdade é que tínhamos medo dela e do seu jeito dissimulado. Uma atriz, sem dúvida. Poderia ser uma artista de muito sucesso no futuro, se chegasse a ter um futuro. Não teve. 

A boneca de pele de alabastro morreu anteontem e nenhuma de nós fingiu pesar porque tínhamos certeza de que não era um anjo. Se fosse, teria que voar quando a colocamos descalça e sozinha no parapeito do sexto andar e demos um empurrãozinho de leve. Não voou. Azar dela. 


No conto acima e em muitos dos outros presentes no livro, podemos perceber esses elementos onde verdade e mentira são manipuladas a bel prazer das personagens e em prol de uma narrativa edificante, de uma justificativa, do ataque, da defesa e da manutenção das aparências. Em outros as personagens são vítimas de uma mentira que parece não ter origem e ser uma regra de vida. Algo que adoro também na narrativa de Baggio é seu rompimento com o politicamente correto, o que confere uma maior liberdade para sua escrita. Quando se despe de medos e de travas sobre o que se pode ou não escrever, o autor se veste de possibilidades para devassar a existência e as relações. 


Quando falamos de mentira, também falamos sobre verdade, assim como o imã que parece sempre atrair amor e ódio, vida e morte. E mentira e verdade nada mais são do que construções que vão ser influenciadas por diversos fatores e que se tornam impossíveis de serem enquadradas em uma regra. A escritora Marina Colasanti, em uma crônica recente que fala sobre "realidade", outra faceta da "verdade/mentira" nos diz brilhantemente que "a realidade é a miragem pela qual orientamos nossas vidas. A solidez inexistente. A rocha-nuvem." Mário Baggio nos deixa um recado muito parecido sobre a mentira. Ela está aí e faz parte do jogo da vida, as vezes pode ser mensurada, as vezes não, pode fazer tão mal quanto bem e a gente usa. Quem diz nunca mentir mente para si mesmo. 


Mário Baggio é jornalista, escritor e blogueiro. Mantém o blog homem de palavra, em que divulga sua produção literária. Para adquirir um exemplar de "Verás que tudo é mentira" é só acessar o site da Editora Coralina AQUI!