Deus ajude essa criança (Editora Companhia das Letras, 2018) é um romance instigante de autoria da grande escritora Toni Morrison, vencedora de um Nobel de Literatura, sendo a primeira mulher negra a receber tal prêmio. "Deus ajude essa criança" é um livro de impactos e o maior deles está na exploração do racismo na infância e como essa experiência de violência pode se manifestar na história das pessoas. O racismo é uma temática bastante presente na obra de Morrison, mas nesse livro podemos ver uma exploração maior sobre as questões da pele, do dito "colorismo". Esse tema é inserido ao acompanharmos o nascimento de Lula Ann Bridewell, uma menina que já nasce sendo repelida pelos próprios pais por ter a pele muito mais retinta do que eles julgavam "aceitável". 


Não levou mais de uma hora depois que tiraram a criança do meio das minhas pernas pra perceberem que tinha alguma coisa errada. Muito errada. Ela era tão preta que me assustou. Preto meia-noite, preto Sudão. Eu tenho a pele clara, o cabelo bom, o que chamam de pele oliva, e o pai de Lula Ann também. Não tem ninguém na minha família com uma cor daquela. Alcatrão é o que chega mais perto, só que o cabelo dela não combina com a pele. É diferente: liso mas ondulado, igual ao daquelas tribos nuas da Austrália. Dá pra pensar que ela é uma agressão, mas agressão pra quê? 

Nesse trecho da obra já podemos perceber diversas nuances de como o racismo se manifesta. O racismo tem raízes tão profundas no modelo de sociedade que construímos, sendo possível a existência de uma escala de cor de pele aceitável, inserida também entre os próprios pretos como uma forma violenta de auto preservação, de defesa. Lula Ann é filha de pais negros, mas nasceu com a pele mais escura, mais retinta que a pele dos seus pais. Movido por uma desconfiança o pai acaba abandonando a família e Lula Ann passa a lidar com o desprezo da própria mãe e as demais consequências do racismo em uma sociedade que quanto menos preto você parecer, melhor. 

Quando impera o medo, obedecer é a única opção de sobrevivência. E eu era boa nisso.


Para além dessas questões de âmbito familiar, Lula Ann acaba sendo ainda na infância a peça chave da conclusão de um julgamento. Ela ajuda a condenar uma pessoa por um crime que supostamente presenciara. Esse acontecimento acaba por melhorar um pouco a relação com sua mãe, que acha uma grande coisa sua filha negra ajudando a condenar e mudar o destino de uma pessoa branca, algo muito simbólico nesse livro, mas também se torna meio que uma obsessão, um fantasma que acompanha os dias da menina e que reverbera na sua vida adulta. 


Quando constrói a fase de Lula Ann adulta na história, Toni Morrison faz algo genial que é nos mostrar as estratégias da Lula mulher para driblar o racismo e enfrentar (ou reprimir) suas memórias. Ela se torna uma mulher bem sucedida, trabalha na área de cosméticos e inclusive fora a responsável pela criação de uma linha de cosméticos e maquiagem muito celebrada. Lula Ann que agora adotara o nome Bride, algo muito significativo no que diz respeito a suas memórias, usa de sua beleza como escudo, de sua ascensão econômica e social para garantir um local de sossego e descanso do preconceito, ainda que sua eficácia não seja cem por cento. 

Os retalhos da vida que ela havia remendado: glamour pessoal, controle em uma profissão excitante, criativa até, liberdade sexual e , acima de tudo, um escudo que a protegia de qualquer outro sentimento intenso demais, fosse raiva, vergonha ou amor. 

Bride passou a viver uma vida que muitas vezes parecia ser monitorada por aparelhos anti tensão. Acontece que as questões referentes à sua própria história, à sua família de origem, às violências que viveu ou presenciaram acabam batendo à porta e Bride começa um movimento que parece uma revisitação desses traumas e desses dores, como se fosse seu inconsciente, sua história pregressa a tomando de assalto.  


"Deus ajude essa criança" se aproxima muitas vezes de algo que beira a fantasia para ilustrar a reforma íntima e a luta com a própria consciência que é travada pela protagonista da história. É uma narrativa que olha para a sociedade, com intuito de demonstrar o quanto ela é cruel e a inserção das crianças no texto não é aleatória. Tive a impressão de que Toni Morrison decidiu utilizar a figura da criança, que no livro são expostas a diversos tipos de violência, como uma estratégia de sensibilização, como a ideia de que se uma criança em estado de vulnerabilidade e violência extrema não for capaz de provocar reflexão e abrir os olhos de uma pessoa para as injustiças do mundo, o que mais será capaz de promover esse acordar?