O quase último Aum de Ulisses B.R (Editora Varanda, 2020) é um livro brasileiro de fantasia que inaugura os "escritos para etraz-quaassa" e nos leva a um universo com muitos dos ingredientes que uma boa história fantástica pede. A saga inicia na cidade de São Paulo, onde acompanhamos a vida aparentemente normal de um garoto vindo de Recife - Pernambuco chamado Tales. Um adolescente de ensino médio que passa os dias com os amigos, enfrenta alguns episódios de bullying no colégio, que é apaixonado por música, que possui um pai amoroso mas distante pelo excesso de trabalho, e praticamente criado pela empregada da família. Acontece que um dia em especial, especificamente uma quarta-feira, depois de um misterioso apagão, Tales se depara com um homem que não deveria estar ali no seu quarto e que diz ao rapaz que ele pode ter o poder de salvar um planeta chamado Ungurae e que ele talvez seja um Aum.
Ungurae é um planeta complicado. Nunca foi simples. O tempo passa e algumas coisas mudam. Outras, não. As pessoas, cada vez mais, compreendem a natureza, a drahiva, os qirus. Porém, cada vez menos, sabem sobre si mesmas, sobre os outros, sobre as relações. Parecem fazer força para esquecer, para não ver, para não ouvir. Vivemos agora em um tempo de medo, de ignorância, de ódio e de preconceito, e, por isso, a guerra voltou a nos assombrar.
"O quase último Aum" é literalmente o início de uma grande saga. É uma obra onde somos apresentados às personagens e a fragmentos de suas histórias, sendo esses pequenos fragmentos muito importantes para começarmos a entender a lógica do que será apresentado de mistérios e códigos para os leitores desvendarem. O autor começa a nos mostrar um universo rico em detalhes, e principalmente, quando partimos do planeta Terra, que na história também é chamado de Unman, nos deparamos com habitantes de um outro planeta chamado Ungurae que tem suas próprias características, sua própria língua, cultura, flora, fauna e modos de explorar energia - que é algo genial dentro da narrativa e rende descrições que fazem nossa mente viajar. É um livro que nos leva a transitar entre dois mundos e abre oportunidades para pensarmos sobre outras formas de pensar as relações, as cidades, o meio ambiente, as diferenças e o processo de amadurecimento individual e em grupo.
A maior parte da história se passa em Ungurae, que vamos conhecendo juntamente com Tales. Enquanto acompanhamos o processo do personagem de aprender a língua Kartu, é como se a gente também estivesse aprendendo um novo idioma, pois o livro é cheio de notas de rodapés que brincam com os significados das palavras em português e em kartu.
- Línguas diferentes não são empecilhos, Tales. São convites.
É como se a história que lemos já tivesse sido traduzida diversas vezes e que a lemos num futuro distante, após o desenrolar de todos aqueles fatos que parecem fazer parte do imaginário de uma civilização. Ungurae é um planeta regido por duas energias, a drahiva e a quirumae e o uso dessas energias além de ser fundamental para a vida no planeta, também se torna motivo de exploração e guerra.
A drahiva é a energia comum, que todos os unguráqueos sabem manipular. É como se fosse uma eletricidade, ou uma radioatividade, ou uma mistura das duas. Usamos a drahiva para as coisas mais corriqueiras, como cozinhar e desenhar, até as mais complexas, como construir e guerrear.
A quirumae serve exclusivamente para uma coisa: fender. Ou, como você diria na Terra, para o teletransporte. A quirumae é a energia utilizada pelos portais de acesso às Nove Cidades, nos portais internos, para enviar objetos e mensagens. Essa energia só pode ser encontrada nos qirus.
Sendo assim, um outro ponto de tensão da história está na relação dos unguráqueos com os qirus. Como os qirus dominam a quirumae que é uma energia essencial e rara, vários qirus foram aprisionados nas grandes cidades, em situação de escravidão, para utilização de suas energias. Quando chega a Ungurae com seu agora guardião Rhoda, Tales acaba se afeiçoando a um grupo de qirus livres que vivem reclusos e realizando expedições de recuperação da liberdade. Os qirus além de terem sido banidos das maioria das cidades de Ungurae, ainda se tornaram personagem das mais escabrosas histórias infantis que diziam que se uma criança olhasse diretamente nos olhos de um qiru estaria dando acesso as suas casas. Os qirus conseguiriam fender em qualquer lugar que a criança estivesse. A vida de Tales se entrelaça com esse pequeno grupo de qirus, e juntos irão descobrir muitas coisas sobre as energias essenciais do planeta e formas de derrotar um "líder" opressor e espécie de movimento que vem tomando cada uma das nove cidades de Ungurae.
O que Tales ainda não sabia era que as Nove Cidades de Ungurae não eram como as cidades de Unman. Eram muito maiores. Talvez, na Terra, fossem chamadas de nações, ou países.
Aparentemente Tales é um Aum que seria uma pessoa capaz de dominar tanto a drahiva quanto a quirumae, o que é algo raro e lhe daria poderes inimagináveis e a capacidade de vencer uma grande guerra que se anuncia. A existência dos Aum é algo já impensável na época em que a história se passa, como se fosse uma lenda e muitos dos habitantes do planeta nem mesmo ouviram falar sobre eles. Enquanto tenta descobrir se é ou não esse escolhido, que teria tanto poder de mudar a vida do povo de Ungurae, Tales vai criando fortes laços de amizade, descobrindo muito sobre si mesmo e sobre a essência de tudo que está a seu redor.
Esse primeiro volume dos "escritos para etraz-quaassa" abre muitas brechas e formas de interpretação para os leitores. Dá para fazermos uma analogia com o próprio universo da história, que acredita que ao fender, ou seja, se teletransportar, uma pessoa pode cair no oco e ficar vagando eternamente nessa espécie de nada. O autor Ulisses B.R joga o leitor em uma espécie de oco em vários momentos e essa estratégia faz com que nossa ânsia pelos desdobramentos da história aumentem ainda mais. Em certo momento da narrativa, literalmente somos jogado no oco. Entre as páginas 256 e 266 de um capítulo chamado "Encontro" não encontramos nada escrito. As páginas estão vazias, em branco, como se esses escritos tivessem sido perdidos e temos acesso apenas a algumas notas de rodapés que podem nos dar algumas dicas sobre o rumo que a história tomará nos próximos volumes da saga.
"O quase último Aum" é um livro muito divertido, cheio de mistérios e fantasia. Mais um exemplo de que a literatura nacional também produz sagas de fantasia de qualidade. É uma boa oportunidade para experimentar uma leitura que embora fale de mundos não existentes, consegue explorar temáticas muito próximas de nós brasileiros, ao apresentar um personagem que vive em São Paulo, mas nasceu em Recife e que enfrenta problemas banais da adolescência, mas que também se vê diante de uma grande saga do herói, que serve de simbologia para qualquer processo de amadurecimento diante dos desafios da vida.
Essa história é muito boa, tive a oportunidade de ler e me encantei.
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