Frankenstein ou o prometeu moderno da Mary Shelley (Editora Darkside, 2017) é um livro que me surpreendeu muito por diversos motivos. Foi uma leitura que iniciei por indicação de um clube de leitura que participo com amigos e que eu imaginava já saber muito sobre ela por conta das adaptações para o cinema e do que acabamos conhecendo sobre a famosa história do monstro por conta de sua fama. A verdade é que eu acabei encontrando algo completamente diferente do que esperava. Frankenstein é muito mais do que se adapta por aí , do que se fala e mais do que uma história de terror convencional. Mary Shelley entregou uma obra que escancara e devassa a natureza humana, a fim de fazer discussões sobre o que há de potente e o que há de assustador na nossa natureza e no nosso íntimo. É um livro que exalta e ao mesmo tempo questiona a sede por conhecimento de forma a mostrar que definitivamente, tudo na vida precisa encontrar a sua medida. Mary Shelley faz com que a gente reflita sobre ética e ciência, convivência e afeto e nos coloca frente a frente com nossos próprios monstros. 

Frankenstein é um clássico do terror e da literatura mundial que começou a ser escrito em 1816. Um fato interessante sobre a obra é a forma como ela começou a ser concebida. Mary Shelley era muito amiga de um grupo de escritores, sendo um deles o poeta Lorde Byron e em uma reunião dos mesmos na casa de Byron, na região da Suíça, o poeta desafiou os amigos a escreverem um conto de terror cada um. A ideia surgiu após eles realizarem leitura de um volume de histórias de terror alemãs chamado Fantasmagoriana. Foi movida por esse desafio que a autora concebeu as primeiras ideias que viriam a ser o Frankenstein. 


Como já dito, Frankenstein conta uma história conhecida inclusive por quem nunca leu o livro ou viu qualquer adaptação de cinema e teatro, porque o monstro criado por Mary Shelley já faz parte do nosso imaginário quando se fala das criaturas mais famosas das histórias de horror. Sendo assim, não vou me deter muito à sinopse do livro para explorar alguns outros elementos que me surpreenderam como leitor. 


Tanto o Víctor Frankenstein, jovem cientista protagonista da trama, como o "monstro" criado por ele são retratados de uma forma muito exploratória. Começamos a acompanhar a história do Victor ainda na juventude e somos inseridos com muita calma em seu ambiente familiar, sua relação com os pais e irmãos, em suas aspirações por conhecimento e inclusive os primeiros teóricos que ajudaram a despertar seu amor pela ciência. Enquanto que nas histórias do livro que são contadas por aí e nos filmes e séries (adaptações) conhecemos só a carcaça de um cientista brilhante e ambicioso sem entendermos muito bem suas reais motivações, no livro de Mary Shelley nós conseguimos entender cada motivo que faz Victor ser quem é e o porque dele buscar o que busca. Victor, em certa parte de seu relato chega a dizer que "a filosofia natural é o gênio que controlou seu destino" e conseguimos ver isso acontecer a cada letra que decodificamos na leitura da obra. Como na primeira parte lemos a descrição do relato de Victor Frankenstein, mesmo que registrado por um terceiro, acabamos nos sentindo muito próximos de sua história e ele não guarda segredo quanto a suas ambições, pois estamos diante de uma confissão. 

Em uma segunda parte da obra vamos ler o relato do "monstro" depois de ter sido criado, abandonado e vivido à própria sorte. Nessa parte vem uma das maiores surpresas da obra para mim, pois nunca vi o monstro da história ser retratado (nas adaptações) de forma fiel ao que Mary Shelley apresenta no livro. A imagem que guardava do monstro criado por Frankenstein era de uma criatura "burra", que só proferia grunhidos e com uma violência assassina prestes a explodir. No livro sabemos que ele passou por essa fase, mas apenas através do relato do próprio monstro, numa conversa entre criatura e criador, em páginas que são as minhas preferidas da obra. Ao narrar para seu próprio criador como sobrevivera depois de ter sido criado e rejeitado por ele, o monstro vai nos mostrando de forma genial como se deu sua própria percepção do mundo, das pessoas e do conhecimento por simples e puro processo de vivência e observação. O monstro da história que precisou aprender quem era e como funcionava seu próprio corpo, os códigos do mundo e as pessoas conforme precisava lidar com elas, faz então um ensaio magnífico sobre a condição humana. Mary Shelley teve a ideia genial de criar uma história onde uma criatura deformada, assustadora e chamada de monstro se assusta com o ser humano e sua capacidade de ser miserável e cruel. A escritora inverte os papéis e nos faz refletir sobre quem é verdadeiramente o monstro e que isso definitivamente não tem a ver com aparência. 

Essas narrativas maravilhosas inspiraram-me sentimentos estranhos. Seria o homem, ao mesmo tempo, de fato, tão poderoso, virtuoso e magnífico e, no entanto, tão vicioso e desprezível? Pareceu-me, simultaneamente, um mero herdeiro do princípio do mal e, por outro lado, tudo o que pode ser concebido como nobre e divino. Ser um homem grande e digno é a maior honra que pode caber a um ser sensível; ser vil e impuro, como muitos o foram, parece a mais baixa degradação, uma condição mais abjeta que a de uma toupeira cega ou a de um verme inofensivo. Por muito tempo não pude conceber como um homem poderia assassinar o próximo ou mesmo por que havia leis e governos, mas quando ouvi detalhes dos vícios e das matanças, deixei de pensar e afastei-me com desgosto e aversão. 

O monstro criado por Victor Frankenstein conheceu na pele o lado mais sombrio da alma humana transfigurado em violência e ao mesmo tempo se viu envolto no exercício de admirar o ser humano pelas coisas grandiosas e fantásticas que também são capazes de realizar. O monstro olha para essa dualidade e não a entende, como se fosse a própria voz da autora jogando um questionamento íntimo para quem lê o seu livro sobre o porque de algumas configurações sociais. Mary Shelley brinca com a criação de um monstro que é puro e bom, pois ainda não fora corrompido pelo mundo, como se tivesse literalmente acabado de nascer, em contraponto com uma humanidade cheia de dores, mágoas, raiva, fome e injustiças que respingam na formação de seu caráter e no modo de viver em sociedade. 


Esse capítulo é tão fantástico que vamos tentando olhar o mundo sob o viés de alguém que não o conhece e que está aprendendo agora como tudo funciona. A autora consegue unir a ideia de um monstro deformado e gigante a de um bebê inofensivo que está descobrindo o mundo, as sensações e começando a fazer suas inferências sobre o funcionamento de tudo. São nesses detalhes que soam meio grotescos que também mora o terror da história. 

Falei sobre a construção de Victor Frankenstein e a do monstro e de como elas se dão de forma completa e intensa. Essas são duas das questões que queria tratar nessa resenha. Feito isso um terceiro ponto seria a exploração da importância e do perigo do conhecimento. Fica nítido na obra que a busca por conhecimento é uma das temáticas principais. A autora explora isso o tempo todo nas características dos principais personagens, nas referências a teóricos e cientistas que realmente existiram e em teorias científicas que fizeram e fazem parte da linha de pesquisas científicas. A questão do conhecimento aparece então como um dos pontos que ligam Victor Frankenstein e o monstro. A apresentação da história de um cientista que cria um monstro é uma metáfora perfeita para discutir o poder do conhecimento, seu uso como manutenção do poder e sobre questões éticas. 


Victor e Frankenstein representam duas formas diferentes de lidar com a aquisição de conhecimentos. Com o passar do tempo a busca por conhecimento de Victor passa a ter um caráter mais de poder, vaidade e competição do que a vontade de colaborar com empreendimentos científicos que poderiam ajudar a comunidade científica. O conhecimento para Victor passa a ter um caráter egoísta e vira uma obsessão, a ponto de colocar sua própria saúde em risco. 

... quão perigosa é a aquisição do conhecimento e quão mais feliz é o homem que vê o mundo como sua cidade natal do que aquele que aspira tornar-se maior do que permite sua natureza.

Já para o monstro o conhecimento significa descoberta de si próprio e de sua essência. Representa possibilidade de sobrevivência. O conhecimento para o monstro é o que fará com que ele entenda a sociedade e o seu lugar no mundo, assim como as pessoas e suas condutas diversas. É o que irá fazer com que ele saiba se proteger do frio e do calor, o que comer e o que não comer, onde ir e onde não ir, quando andar e quando se esconder. E quanto mais observa, mais ele aprende sobre os códigos sociais e com o que acontece em sua volta.

Com o livro, obtive um conhecimento superficial da história e uma visão de vários impérios que existiam no mundo. Conferiu-me um conhecimento dos hábitos, dos governos e das religiões  de diferentes nações da Terra. 

Mary Shelley, através de metáforas e alegorias nos convida a pensar sobre ciência e conhecimento, responsabilidade e ética. 

Um ser humano maduro deve sempre preservar a mente calma e pacífica e nunca permitir que a paixão ou o desejo transitório perturbe sua tranquilidade. Não creio que a busca pelo conhecimento seja uma exceção á regra. Se o estudo a que a pessoa se dedica tende a enfraquecer seus afetos e a destruir o gosto pelos prazeres simples que não admitem mistura alguma, então esse estudo certamente é ilegítimo, ou seja, não condizente com a razão humana.

Por fim, o último ponto que gostaria de ressaltar é a questão do afeto na obra. Essa foi outra grata surpresa. A autora criou sim uma história de terror com todos os elementos clássicos necessários para uma escrita desse gênero, mas também fez algo inovador que foi extrapolar o gênero e a narrativa para apresentar um livro com muitas outras camadas. Existem muitas discussões sociais e filosóficas na obra que fizeram com que ela tenha atravessado século com tanta relevância. Todos os personagens da trama são atingidos de alguma forma com a falta ou outro tipo de expressão de afeto. No caso do monstro da história, que é a personificação do terror, do macabro e do asqueroso vemos as consequências desastrosas da falta de convivência e afeto em suas reflexões

Porém, onde estavam meus amigos e minhas relações? Nenhum pai velara pelos meus dias de infância, nenhuma mãe abençoara-me com sorrisos e carícias ou, se o fizeram, toda a minha vida pregressa se mostrava então como uma mancha, uma lacuna cega em que não distinguia nada. Desde a primeira lembrança, era como ainda sou em estatura e proporção. Não tinha visto ser algum que se parecesse comigo ou que pretendesse qualquer comunicação. O que eu era? A pergunta, mais uma vez, voltara a ser respondida somente com gemidos.  

Frankenstein é um livro de leitura obrigatória tanto para quem gosta do gênero de terror, como para quem gosta de clássicos. Não poderia deixar de ressaltar também o quanto essa obra tem importância para a representatividade das mulheres na literatura. Se ainda hoje precisamos fazer campanhas de sensibilização da necessidade de equidade de gêneros no mercado editorial, imaginem o cenário em meados de 1818. Mary Shelley inova ainda mais ao adentrar em uma temática de escrita que geralmente são creditadas aos homens, como se mulheres não fossem capazes de escrever boas histórias de terror. Ainda hoje encontramos pessoas que ficam surpresas ao saberem que Frankenstein, uma das histórias de terror mas famosas da literatura, fora escrita por uma mulher.