O Rio e eu de Lygia Bojunga (Editora Salamandra, 1999) é um livro onde a autora revisita seu processo de encantamento pela cidade do Rio de Janeiro. Em uma narrativa curta e intensa que se assemelha muito a um conto, Lygia volta lá para a sua infância na cidade de Pelotas, onde através da figura de Maria da Anunciação, uma mulher que aparecia toda semana em sua casa para passar roupa, começa a construir um Rio de Janeiro pelo campo do fascínio e da imaginação. Maria da Anunciação contava histórias sobre a cidade do Rio para a jovem Lygia, e tal era o amor com que as histórias eram contadas que muitas vezes Lygia chegava a duvidar da existência de um lugar tão mágico. Na primeira parte do livro Lygia narra seu encanto por aquela passadeira alegre e grande contadora de histórias e por um Rio de Janeiro que passa a ser seu objeto de desejo e destino. 


Eu era pequena, tinha seis anos; morando lá mesmo, na cidade onde nasci: Pelotas, Rio Grande do Sul. E o inverno já tinha chegado, quando a Maria da Anunciação apareceu lá em casa pela primeira vez. Foi meu olho bater nela e eu senti uma atração. Muitos anos mais tarde, um dia me perguntando quando é que tinha começado meu caso de amor com o Rio, eu fui voltando pra trás na minha vida, fui voltando, voltando, até chegar na Maria da Anunciação. 

Maria da Anunciação anuncia a existência do Rio de Janeiro para Lygia. O Rio com sua natureza, seus morros, seus prédios, seu mar, seu Cristo Redentor, seu carnaval. Assim como em "As mil e uma noites" a Lygia esperava o dia que Maria chegaria para passar as roupas da família e para ouvir mais uma parte das histórias sobre a cidade do Rio de Janeiro. O fascínio que a garota estabelece com a cidade se deve muito ao entusiasmo com que Anunciação fala dessa cidade que deixou para trás por amor e pela qual, anos mais tarde, Lygia também se aproximaria também por amor. 


Os diálogos entre Maria da Anunciação e Lygia são muito divertidos e poéticos. As conversas são dotadas de sensibilidade e de construção de memórias afetivas que dizem muito sobre a cidade, como também da construção de uma identidade, do fazer parte de um lugar, do se sentir em casa. 

- Pega um trenzinho, que vai subindo toda a vida no meio do arvoredo; quanto mais ele sobe, mais Rio a gente vai vendo; e quando chega lá na casa do Redentor, a gente tem até que respirar fundo, assim, ó, pra se acalmar do susto de ver tanto Rio lá embaixo. É casa, é lagoa, é montanha, é praia, é mar, é floresta, é navio, carro, avião, é prédio tão alto que arranha o céu, tem até cemitério pra, querendo, a gente olhar onde é que vai se enterrar. 

A literatura dá conta de fazer a gente construir uma imagem sobre um personagem, sobre um local, mas quem já teve a oportunidade de ir ao Rio de Janeiro e fazer esse trajeto rumo ao Cristo Redentor, entende perfeitamente o que esse trecho representa. Como diz a autora "é muito Rio" pra ver e a gente fica saciado de tanta beleza. Sendo assim "O Rio e eu" é um livro que revisita memórias da própria autora e é também uma declaração de amor à cidade. 


No decorrer do texto, Lygia não foge da necessidade de narrar também muitos dos processos que levaram com que aos poucos, o Rio se tornasse um lugar com muitos problemas e como a violência passou a ser uma questão muito séria. A autora discute sobre a forma como o Rio de Janeiro sempre teve que lutar contra uma maré de desigualdades sociais e há até uma menção discreta à época da ditadura. 


É quando o amor por um lugar passa a estabelecer um confronto entre beleza e a perda de segurança, de status de lar. Lygia faz isso ao tansformar o Rio em um personagem, quase como se fosse um amante que ela troca cartas e conversa muito intimamente. Entre manifestações de intenso amor, de preocupação, de saudades e de decepções vamos conhecendo o Rio de uma forma muito particular e sob a visão de Lygia que divide conosco alguns capítulos de sua vida e de como o Rio passou a germinar dentro de si.