Faz um tempo que ando apaixonado pela cultura da Coréia do Sul e consumindo filmes, músicas, livros, canais do youtube e até a culinária de lá. Uma das portas de entrada para essa curiosidade sobre a Coréia se deu a partir dos doramas, também conhecidos como K-dramas ou séries sul coreanas. Os doramas são histórias que geralmente são contadas em dezesseis episódios e que tratam de temas universais que aparecem nas narrativas, independente de que canto do mundo estamos falando. Os doramas trazem discussões sobre amor, amizade, família, educação, violência, sociedade, consumo, arte, entre outras temáticas, de forma que temos contato com uma cultura que se difere da nossa em muitos aspectos, e que inclusive, inicialmente, pode provocar um grande estranhamento para além do idioma. É como o diretor sul-coreano Bong Joon-ho sugeriu ao ganhar o Oscar por "Parasita": que o público e os especialistas deveriam superar a barreira do idioma para conhecerem outros universos incríveis.


As relações amorosas são um grande exemplo desse possível estranhamento. Nos doramas, assim como em nossas novelas, a saga de um casal lutando contra as adversidades para ficarem juntos também é algo central. Acontece que as relações de paquera, namoro e casamento dos coreanos são bem diferentes das nossas e seguem códigos muito rígidos, principalmente a olhos ocidentais. Pegar na mão leva tempo, abraçar e beijar só depois de compromisso firmado e não é algo que é feito a todo momento e em público. Essa realidade aparece nos dramas coreanos e é aí que exalto a força dessas narrativas. As histórias são tão bem apresentadas, o roteiro é tão bem construído e a carga emocional das relações estabelecidas são tão convincentes, que a gente se vê completamente envolvido por um jogo de sedução muito diferente do que estamos acostumados a ver na novela das oito. A gente se pega vibrando a cada encontro de mãos, a cada olhar apaixonado trocado e suspira, enfim, com o primeiro beijo, porque a história nos prepara para esse clímax e acabamos entendendo que estamos diante de um código comportamental diferente. O interessante desse contato com outra cultura e outros modos de viver não é estabelecer o que é certo e errado, afinal toda nação tem suas qualidades e seus problemas a serem enfrentados, mas exercitar o olhar para entender e apreciar outros moldes culturais. 

O dorama "Tudo bem não ser normal" (It's Okay to Not Be Okay) estreou na Netflix em 20 de junho de 2020 e foi lançado na Coreia do Sul pela tvN e com produção do Studio Dragon. Acompanhamos a história de Ko Moon-young (Seo Ye-ji) que é uma escritora de contos de fadas bem sucedida que tem transtorno de personalidade anti-social. Ela é uma mulher de temperamento difícil e que coloca seu agente literário e a editora que a representa em situações muito complicadas por conta de seu temperamento. Uma grande tragédia aconteceu na infância de Ko Moon-young e isso afetou drasticamente a relação com seus pais e a mesma se tornou uma adulta não muito simpática e solitária. 

Ko Moon-young acaba se encontrando com Moon Gang-tae (Kim Soo-hyun) um jovem órfão que trabalha como cuidador. Ele é um rapaz muito centrado, responsável, paciente e que foi obrigado a amadurecer muito cedo por conta das muitas responsabilidades que precisou tomar para si após a morte de sua mãe, que o deixou com seu irmão mais velho, o Moon Sang-tae (Oh Jung-se) que tem transtorno do espectro autista. O ator Oh Jung-se, inclusive, é um dos pontos altos do drama ao entregar uma interpretação impecável e sensível. Os irmãos também possuem em seu histórico um trauma que vem da família de origem e que modificou completamente o rumo de suas vidas. Sendo assim, a série irá aprofundar em muitas temáticas interessantes, mas as que gostaria de comentar nesse texto se referem à saúde mental, à produção e escrita de contos de fadas e o enfrentamento de traumas para alcance da "cura". 


Uma vez que esse trio de protagonistas vive assombrado por um trauma do passado, a série passa a nos mostrar como cada um deles utiliza de estratégias diferentes para tentar seguir em frente. Ko Moon-young despeja seus traumas na produção e escrita de contos de fadas muito intensos e que possuem total ligação com sua infância difícil. O Moon Gang-tae, que precisou abrir mão de sua individualidade para cuidar do irmão mais velho acaba se estabelecendo na profissão de cuidador e esse fato tem muito a ver com o que o personagem acredita ter sido uma missão posta a ele desde o nascimento, a de cuidar das pessoas. Moon Sang-tae possui um espectro do autismo que muitas vezes o assemelha a uma criança em sua forma de se comportar e em relação aos seus gestos e gostos. Ele dedica boa parte do seu tempo aos desenhos e é muito bom no que faz. 


Saúde mental


O título da série já nos entrega uma dica do que será explorado. Um dos grandes objetivos da trama é discutir sobre o que é considerado normal e quem pode se considerar normal se olharmos com cuidado para nosso próprio íntimo. Nós, como humanos que somos, sujeitos a erros e à exploração de formas de ser e estar no mundo, acabamos lidando com experiências que moldam nossa forma de agir e nossa personalidade. A série vem mostrar que somos impactados pelo amor e pelo afeto e também como as experiências infelizes podem culminar em doenças que podem ser físicas, como também da ordem da saúde mental. Nesse ponto as personagens da escritora Ko Moon-young e do autista Moon Sang-tae vão nos dar um ótimo panorama de análise sobre a influência dos traumas na vida de uma pessoa. 


Ko Moon-young é uma personagem que foi criada de forma a explorar os principais sinais e sintomas que definem uma pessoa com transtorno de personalidade anti-social. Ela possui total desprezo pela lei e pelas normas, grande impulsividade, entra em fácil estado de irritação e agressividade que culminam em agressão, falta de remorso pelos próprios atos e dificuldade de sentir empatia com os sentimentos das outras pessoas. É uma personagem que de cara movimenta bem a trama e acabamos nos divertindo com suas ações intempestivas, mas que também possuem essa missão de discutir sobre uma faceta da saúde mental, mais especificamente do transtorno de personalidade anti-social e nos inserir no universo da série. Uma das possibilidades de manifestação desse transtorno que a escritora possui, pode estar associado a  um trauma vivido na infância, o que é o caso de Ko Moon-young. 


 Moon Sang-tae, que é o personagem com Transtorno do Espectro do Autismo também faz uma importante reflexão sobre essa condição. A palavra "espectro" é muito utilizada hoje em dia de forma a salientar que existem vários níveis de autismo e a forma como essa condição se manifestará dependerá muito do acompanhamento e dos estímulos que a pessoa receberá desde a infância. O transtorno não é considerado uma doença, mas precisa de acompanhamento constante, pois podem levar a problemas no desenvolvimento da linguagem, na interação social, nos processos de comunicação e do comportamento social. 


A interpretação do Oh Jung-se é de uma responsabilidade incrível e podemos perceber que demandou cuidado, pesquisa e responsabilização com a temática, além da construção de um personagem que passamos a amar durante a trama. A série mostra que uma pessoa nessa condição pode estar apta a viver uma vida normal, pronta a se relacionar com as pessoas e a se estabelecer em uma profissão. Em "Tudo bem não ser normal" companhamos essa saga de Moon Sang-tae descobrindo sua própria liberdade e o transtorno do espectro autista não é colocado como uma questão de sofrimento para Moon Sang-tae e sim as circunstâncias da morte misteriosa de sua mãe que causara um grande trauma. 


O personagem de Moon Gang-tae também serve como um importante elo para se discutir saúde mental. Um deles é na sua relação de cuidado com o irmão autista e com o amor de sua vida,  Ko Moon-young que possui transtorno de personalidade anti-social. Outro ponto está na forma como o personagem vai se descobrindo em sofrimento mental por conta de todas as responsabilidades que precisou assumir desde a infância e que levaram a perda de sua individualidade e de uma tristeza constante que o acompanha. Moon Gang-tae acaba se descobrindo como uma pessoa que cuida, mas que poucas vezes foi foco do cuidado de alguém e que inclusive abriu mão de muitos de seus sonhos em detrimento dos cuidados com o irmão autista. Ainda acompanhando esse personagem somos inseridos no ambiente de um hospital psiquiátrico, que é onde ele exerce sua função de cuidador. Nesse hospital o telespectador acaba presenciando a manifestação de diversos outros tipos de transtornos e acometimentos da saúde mental dos mais graves aos mais comuns como depressão, psicopatia e transtorno dissociativo de identidade ou personalidade. A série chama nossa atenção para a diferença entre doença, transtorno e síndrome, colaborando assim para o enfrentamento de vários preconceitos. 


Contos de Fadas


"Tudo bem não ser normal" faz um grande serviço ao tratar sobre as peculiaridades dos contos de fadas e uma delas está no rompimento com a ideia de que contos de fadas são histórias apenas para crianças. Acredito que inclusive, de forma intencional, o diretor explorou mais a relação dos adultos com os contos do que as crianças. Esse é um gênero literário que explora profundamente a potência das narrativas, das fantasias e da ficção para encararmos de frente as questões da vida. Através de símbolos e metáforas, os contos de fadas nos ajudam a conectar com nossos desejos e anseios mais íntimos, além de aguçar nosso olhar para a forma como o mundo se organiza, se constrói e se desconstrói através de nossa ação sobre ele. No livro "A psicanálise dos contos de fadas" do Bruno Bettelheim (Ed. Paz e Terra, 1980) podemos encontrar diversas defesas sobre o caráter formativo inerente à experiência de ler contos de fadas. 

Os contos de fadas, à diferença de qualquer outra forma de literatura, dirigem a criança para a descoberta de sua identidade e comunicação, e também sugerem as experiências que são necessárias para desenvolver ainda mais o seu caráter. Os contos de fadas declaram que uma vida compensadora e boa está ao alcance da pessoa apesar da adversidade - mas apenas se ela não se intimidar com as lutas do destino, sem as quais nunca se adquire verdadeira identidade. 

Os contos de fadas entram na série justamente com essa função de ilustrar a trajetória dos personagens rumo a uma "cura" das dores e dos traumas que limitam o florescer de suas vidas. Para tanto, cada capítulo é intitulado com o nome de um conto de fadas e a condução desse mesmo capítulo vai fazendo relações com a temática do conto. Em alguns episódios também somos apresentados aos livros que são escritos pela personagem Ko Moon-young, como o incrível "O menino zumbi". 


O interessante é que a série apresenta todos os livros da personagem Ko Moon-young na íntegra, seja mostrando os personagens fazendo a leitura do mesmo ou em formato de animações muito bem feitas e que fazem parte do projeto gráfico e ilustrações de seus livros. Devido ao sucesso da série os fãs ganharam alguns mimos que podem ser adquiridos em alguns sites especializados, sendo um dos mais legais os cinco livros escritos pela personagem e que são explorados no dorama. 


As publicações de Ko Moon-young, assim como a estética da série flertam com um estilo mais gótico e sombrio, o que nos leva a mais um ponto de qualidade da série em relação aos livros que é a discussão sobre temas proibidos ou tabus para a literatura dita infantil. 


Em certo momento da história a Ko Moon-young sofre uma espécie de retaliação da mídia e de alguns leitores em relação a seu livro "O menino zumbi" dizendo que a história e as ilustrações são muito grotescas. Nesse momento a série faz uma espécie de posicionamento, de manifesto em defesa do caráter libertário dos contos de fadas e da sua destreza em tratar de temas espinhosos como a morte, por exemplo. 

A própria história de "Tudo bem não ser normal" flerta com a estrutura e elementos que são muito utilizados nos principais contos de fadas. Temos mistérios envolvendo o passado de todos os personagens, assim como mortes não muito bem explicadas que suscitam os fãs a irem construindo teorias para explicar o porque de alguns dos acontecimentos. Um dos cenários mais utilizados é um grande castelo onde Ko Moon-young vive e onde as cenas brincam com nosso imaginário ao sugerir atividades sobrenaturais e toda uma áurea de mistério que será explicada nos últimos episódios.


Enfrentamento de traumas 


O dorama finaliza com uma mensagem muito importante sobre o aprendizado de lidar de frente com os próprios traumas para alcançar uma solução possível ou uma amenização dos problemas que podem paralisar o curso de uma vida. Os livros e os contos de fadas fazem parte da narrativa todo o tempo e servem como instrumento de transformação para cada uma das personagens. Uma das mensagens finais que ficam para nós que assistimos está presente em um dos livros de Ko Moon-young, o menino zumbi, e que diz:


"Não se esqueça de nada. Lembre-se de tudo e supere. Se não superar, sempre será uma criança cuja alma nunca floresce."

É isso que acompanharemos no dorama, a trajetória de três personagens que embora tenham suas vidas interligadas por diversas questões e mistérios, ainda assim, precisam encontrar na individualidade os seus monstros. Ko Moon-young, Moon Gang-tae e Moon Sang-tae aos poucos vão deixando de ser reféns do passado e vão percebendo que só o fechamento de um clico de medos poderá fazer com que tenham uma vida mais feliz. Ko Moon-young enfrenta seus dramas de violência familiar, Moon Gang-tae vai em busca da sua individualidade e Moon Sang-tae começa a experimentar a liberdade.