Sul da fronteira, oeste do sol de Haruki Murakami (Tag Experiências Literárias e Editora Alfaguara, 2020) é um livro narrado pelo Hajime. Acompanhamos parte de sua infância, adolescência e vida adulta em uma narrativa que é quase uma biografia. O protagonista narrador faz reflexões sobre suas vivências, o vazio existencial que sempre o acompanhou e sobre uma grande cisão que o marcara profundamente: o afastamento de Shimamoto. Hajime e Shimamoto tinham várias coisas em comum, como o amor pela música (algo que perpassa toda a história), o fato de que eram vizinhos, estudavam na mesma escola e ambos filhos únicos, algo visto como incomum na época. Encontram um no outro uma amizade intensa, um lugar confortável onde aportar, até que Hajime precisa mudar de cidade, ir para outra escola e aos poucos, por consequências banais da vida acabam perdendo o contato. Eles tinham doze anos de idade. 


É muito forte na obra a representação da solidão, a busca por auto conhecimento que passa longe de um modelo de auto ajuda, o impacto dos acontecimentos que carregam consigo a banalidade da vida, as intensas reflexões sobre honestidade, caráter, índole e a importância das escolhas que fazemos. Todos esses temas usam da busca por alguém especial e dos desencontros do amor para testar os personagens e o leitor que estarão diante de uma obra com diversas possibilidades de interpretação. E uma das interpretações que ficaram mais fortes para mim foi a da falta.


Perder o contato com Shimamoto faz com que Hajime se conecte com a falta de uma forma que ela passa a se estabelecer em diversos âmbitos de sua vida. A falta vira uma companhia constante. Ao falar do que sente, o narrador deixa sempre essa ideia de uma busca por algo que está faltando e essa incompletude vai moldando também seu caráter e sua forma de ver o mundo. 


Hajime é um personagem muito interessante, pois rompe com a ideia do herói incorruptível e acima de qualquer suspeita. Essa é uma opinião que o próprio narrador tem sobre si, pois ele se coloca o tempo todo como alguém egoísta, sem controle sobre o próprio desejo e ciente do mal que suas escolhas podem provocar na vida de outras pessoas. Nós acabamos entendendo e aceitando muitas das escolhas de Hajime, e até sua personalidade, por participarmos muito de perto dos principais acontecimentos de sua vida e conhecermos seus desejos mais profundos. Murakami desnuda Hajime completamente para que a gente possa embarcar em suas lembranças, seu vazio moldado pela falta, seu desejo de reencontrar Shimamoto. E esse desejo de saber o que aconteceu com Shimamoto nos mantem o tempo todo ao lado de Hajime, relevando suas atitudes anti éticas ou insensíveis porque o que desejamos também é alcançar Shimamoto, o que só podemos fazer através das lembranças e ações de Hajime.

Eu nasci no dia 4 de janeiro de 1951. Na primeira semana do primeiro mês do primeiro ano da segunda metade do século XX. Pode-se dizer que é uma data digna de comemoração. Por isso, recebi o nome Hajime, que significa começo.

O significado do nome de Hajime faz todo o sentido para a estrutura da obra e para a história do próprio protagonista que se vê envolto em mais de um processo que envolve começos e recomeços. Como assistimos a muitas etapas de seu desenvolvimento pessoal através da infância, adolescência e vida adulta, encontramos um Hajime que é uma pessoa bem comum, com problemas comuns e que de certa forma segue o script do que se espera que alguém faça na vida, mas ao mesmo tempo conhecemos um Hajime que não consegue ficar desconfortável, talvez por conta do vazio que o acompanha. 


Hajime não dá conta de viver um namoro sem emoção e podemos vincular essa sua aspiração, ao que ele imagina que poderia ter vivido se não tivesse se afastado de Shimamoto. Quando, ainda na adolescência, ele conhece e começa a namorar com Izumi sua cabeça está sempre voltada para uma paixão avassaladora que ele acredita que viveria com Shimamoto. Uma emoção que ele conhecera transfigurada em amizade, pois ainda eram crianças, mas que acredita que se transformaria em amor. Se antes Hajime já carregava algumas inquietações diante da presença ausente de Shimamoto, a forma como esse seu primeiro namoro com Izumi termina também será algo que o acompanhará pela vida. 


Hajime não dá conta de um trabalho que limita suas possibilidades de criação, e apesar de ficar quase uma década trabalhando como revisor de livros didáticos, esse era um trabalho que o entristecia, que o deixava sem perspectivas de ascensão e de alcançar a felicidade. 


Já um adulto formado, Hajime constitui sua família com Yukiko. Se casa e tem duas filhas. Como sua esposa vem de uma família de muitas posses, Hajime acaba conseguindo o apoio financeiro necessário para abrir dois bares de jazz e esses estabelecimentos passam a ser foco de sua dedicação. Hajime administra de forma muito competente os seus bares e consegue uma ascensão financeira. Seu casamento é feliz, ele ama as filhas, é um pai presente e Yukiko é uma ótima esposa, mas a falta de Shimamoto continua a assombrar Hajime e ele se surpreende sempre pensado nela e chega a imaginar que a viu pelas ruas. É como se Shimamoto fosse um fantasma vivo. 


Depois de ter sua foto publicada em uma revista de grande circulação por conta do sucesso dos bares Hajime começa a receber visita de amigos da época da escola. Assim revisita alguns acontecimentos, recebe notícias de terceiros sobre sua primeira namorada Izumi e o que descobre não é nada animador. Hajime sente culpa pela forma como sua história com Izumi terminara e tudo indica que suas atitudes tem total ligação com a pessoa que Izumi se tornou. Até que um dia, depois de achar que a matéria da revista já tivesse sido esquecida Shimamoto adentra seu bar e a história embarca em um tom de mistério inquietante. 


Em "Sul da fronteira, oeste do sol" o autor nos transporta para um universo que tem uma áurea que quase podemos tocar com as mãos de tão densa. Não digo de uma densidade enquanto linguagem literária  rebuscada, mas densa no sentido de que tudo é construído em cima de sentimentos difíceis de descrever, mas que fazem parte da experiência humana, como a saudade, a espera, a dúvida, a tristeza, o vazio existencial. Para ampliar a experiência de leitura Murakami colocou todos esses elementos dentro de uma história simples e de acontecimentos quase banais, mas que flerta com o fantástico. O fantasioso fica o tempo todo a espreita, sugerindo ao leitor que algo de muito especial pode estar  acontecendo a cada virada de página e que as coisas podem não ser bem o que parecem ser. O próprio título da obra nos leva a pensar num lugar, em coordenadas para um lugar além do óbvio, onde talvez estejam as respostas sobre Shimamoto e onde Hajime completará seu vazio.