O complexo melancólico do Guido Arosa (Editora Garamond, 2019) é um livro devastador. Para ler o que o narrador tem a nos contar é preciso se permitir a imersão numa escrita que fala sobre a dor e que não faz subterfúgios ao escolher as palavras que vão ilustrar o que o autor tem a nos dizer. Guido diz o que precisa dizer e em muitos pontos diz sobre coisas que não queremos ouvir. Em "O complexo melancólico" acompanhamos a trajetória de um trauma e uma luta constante, que as vezes se dá de forma racional, que as vezes se apresenta como manifestação do inconsciente, mas que tem por objetivo o entendimento de sua condição enquanto ser que vive e morre muitas vezes em uma mesma existência.
O autor olha para seus próprios traumas e arremata: "meu texto é a dor que tento compreender." Estamos diante de um livro sobre abuso sexual, sobre doenças, sobre a violência da homofobia, conflitos familiares, hipocrisia social, mas também somos testemunhas de uma obra que foi construída com uma coragem que emociona. Olhando para suas feridas, Guido olha para incontáveis mazelas que não são apenas suas e que conversam com a gente de forma muito particular. Além de ser um livro cheio de dores, é um livro sobre o poder de se reinventar e tomar a própria vida nas mãos custe o que custar.
Guido Arosa fez escolhas narrativas interessantes para nos inserir em seu universo. Inicialmente ele utiliza da força das metáforas em contos que já nos remete à tônica que seguirá nas páginas seguintes onde temas como homossexualidade, família e abandono são estruturantes. No primeiro texto o autor chama Freud para a conversa, pois "o complexo melancólico se comporta como uma ferida aberta." Aqui os leitores tomam ciência de uma grave situação de violência que o marcou profundamente. Um episódio de abuso sexual vivido aos 12 anos pelas mãos do próprio terapeuta, que fora procurado para "curar" o garoto de sua homossexualidade. Em um texto intenso, Guido além de narrar a violência vivida, realiza quase um ensaio sobre vivências muito comuns a nós, homens gays, que precisamos provar nosso valor todos os dias.
Com a rejeição que meu pai demonstra a meu sexo, entendo como crime o que deveria entender como amor. Enquanto uns tem o direito de ostentar alianças, tenho apenas o de ostentar a clausura.
É onde Guido nos diz que cansou de transformar a tristeza em apenas lágrimas e que agora ela será sempre arte. O livro é um projeto que visa o desabafo e começa com uma denúncia, seguida de narrativas que vão nos mostrando o quanto o estupro vivido interferiu em suas relações homoafetivas, familiares e de auto cuidado. Nosso narrador é um jovem que tenta entender porque vivera essa violência, assim como entender porque seus pais não agiram da forma como o jovem esperava que agiriam e como essa forma de "desproteção" acabou por formar um adulto com dificuldades de se proteger de conflitos, de amores tóxicos, de doenças sexualmente transmissíveis e da tristeza.
O que fui antes do estupro? O que produzi antes de estar morto e ser morto? Eu era apenas uma coisa em processo de acontecer.
Nessa primeira parte formada por contos e poemas, Guido se apresenta e não sei dizer se intencionalmente, mas prepara os leitores para o peso das narrativas que estão por vir através de metáforas muito bem elaboradas. O peso a que me refiro é um peso que se forma mais pela quebra de um silêncio que é um projeto de nossa hipocrisia do que pelas temáticas que surgirão. Sabemos que existem famílias que desejam a reversão da homossexualidade, mas não falamos sobre isso. Sabemos que existem crianças sendo abusadas sexualmente, mas não falamos sobre isso. Sabemos do poder da homofobia de invisibilizar e patologizar a comunidade gay, mas não queremos falar sobre isso. Sabemos que não amamos nossos familiares o tempo todo, mas é quase um crime falar sobre isso. Guido Arosa fala, independente de você leitor estar preparado ou não.
Na segunda parte do livro o autor abraça de vez o tom confessional com textos em formato de diário. Enquanto estuda sua dor, Guido faz reflexões muito interessantes sobre processo de escrita, sobre o que se considera ou não um texto literário, sobre o poder de um olhar poético sobre as mazelas da vida.
É difícil entender a verdade com a poesia, porque parece que a poesia quer diminuir a verdade, dando lugar à invenção... Mas o poema da vida exacerba a verdade, escancara-a.
Quero começar a escrever um diário, porque assim o fazem escritores, e acho que preciso encarar com mais coragem minha profissão... mas fico com medo de escrevê-lo, pois acho que tudo o que poderia acabar produzindo como ficção será desperdiçado aqui em formato descartável para a literatura. Tenho medo de escrever um diário e jogar fora as energias que poderiam ser empregadas no conto, na novela. Mas o que escrevo como literatura já é uma forma de diário, de expurgar as mazelas do cotidiano.
Perdi o fôlego em vários capítulos desse livro. Guido mostra ter total consciência dos riscos de escrever o que ele escreve e como escreve, mas ainda assim não deixa de se entregar nas mãos do leitor que tem uma chance de rever sua forma de encarar diversos assuntos e de entender um ponto de vista que pode ser diferente do seu, de se conectar com uma outra história que trilhou um outro caminho tão digno de respeito e narrativa quanto qualquer outra história.
Quando falamos de narrativas invisibilizadas, a homossexualidade se configura como um ótimo exemplo da eficiência desse apagamento. Ainda temos muito o que caminhar para garantir uma representatividade de vivências homossexuais na literatura e "O complexo melancólico" chega sem preocupação com filtros e floreios. O facebook chegou a censurar a capa de "O complexo melancólico" pelo simples fato que nela aparece um tronco masculino peludo e com vestígios de um suor que parece um pós gozo. A capa além de fazer total sentido para a temática do livro é uma das obras do Alair Gomes, precursor da fotografia homoafetiva no Brasil. Além de ter a postagem com a capa do livro apagada, o escritor Guido Arosa foi bloqueado pela rede social por 30 dias.
Guido expõe o horror da homofobia ao demonstrar como através dos tempos os gays foram incorporando a ideia de "proprietários de doenças". Desde a crescente epidemia de HIV/AIDS, que também já foi chamada de câncer gay que esse estigma persegue os homens gays, como uma sombra a espreita, principalmente nos momentos de prazer sexual. Nos fizeram acreditar que se você se relaciona com uma pessoa do mesmo sexo você está fadado a algum dia adoecer. Ainda que em diferentes graus, todo homossexual já se viu imerso nesse medo da doença e da morte.
As relações familiares aparecem de maneira muito forte em "O complexo melancólico". As figuras materna e paterna são apresentadas numa perspectiva para além do que estamos acostumados. Guido exalta a figura de seus pais em tudo aquilo que merece menção, mas também não deixa de falar sobre suas expectativas não alcançadas, sobre as vezes em que se sentiu desamparado e agredido simbolicamente. Sim, familiares também podem fazer isso.
O mundo pode estar de ouvidos atentos, mas caso meus pais estejam de orelhas tapadas é como se o mundo inteiro me desse as costas, pois meus pais são o mundo.
Guido Arosa dedica "O complexo melancólico" aos abusados e homossexuais, mas ali também é possível enxergar uma carta aos seus pais e aos seus familiares. É possível ler uma espécie de manifesto sobre a liberdade sexual e o direito ao prazer, assim como um importante registro sobre a importância de se cuidar, não para alcançar um modo de vida higienista que parte dos moldes cristãos e heteronormativos, mas partindo da ideia de que somos nosso próprio templo, nossa própria casa. "O complexo melancólico" é uma ferida aberta, mas também um livro aberto onde cada leitor encontrará suas respostas para questões universais.
Esse é o texto mais profundo que já li sobre meu livro! Minha gratidão.
ResponderExcluirFico muito feliz de ler isso, pois foi uma leitura muito marcante pra mim. Eu que agradeço a oportunidade de poder ter lido seu livro.
ExcluirParabéns pelo exelente texto!
ResponderExcluirMuito obrigado pelas palavras e por ter lido.
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