Dom Casmurro de Machado de Assis (Editora Carambaia, 2018) é um livro que merece o lugar ao qual foi alçado na literatura brasileira. Existem vários elementos na obra que fazem com que ela seja visionária, criativa, desafiadora e foco de diversas análises, teorias literárias, sociais e de comportamento. Somos muito bem inseridos em uma narrativa que explora o ponto de vista de Bentinho sobre a própria vida e sobre as pessoas que o circundam e ao fazer isso, Machado de Assis, nos dá inúmeras pistas de quem possa ser o Bentinho ao colocar o narrador como personagem e o livro como uma espécie de relato e confissão. É uma história sobre um amor avassalador da adolescência, sobre projeção e relação familiar, sobre individualidade e liberdade, sobre ciúme doentio. O motor principal do livro é a dúvida explorada em uma escrita impecável que coloca o leitor a formular inúmeras teorias. É um romance psicológico, uma obra aberta a espera da contribuição do leitor para sua conclusão.
Machado de Assis encontrou uma forma diferente e acredito que inusitada para a época de contar a história de Dom Casmurro. Ele conversa com os leitores de forma consciente, de maneira a mostrar que o narrador sabia que seria lido e que portanto, queria ressaltar alguns pontos de forma muito explicativa. Talvez mais do que ressaltar, e sim convencer a quem o lê sobre os fatos que está narrando. Essa brincadeira já começa com um capítulo que normalmente poderíamos chamar de prólogo, onde Machado subverte a norma e cria um texto de apresentação que já é a própria voz do narrador. As duas primeiras partes do livro intituladas "Do título" e "Do livro" servem para situar o leitor que estamos diante de apenas um ponto de vista de um narrador que está se apresentando e ao mesmo tempo se justificando em uma escrita cheia de intenções onde nos resta aceitar os fatos como apresentados ou explorar outras possibilidades de interpretar as entrelinhas.
A primeira grande saga de Bentinho, o Dom Casmurro, está no fato de lidar com uma promessa de sua mãe com poder de mudar completamente os rumos da sua vida. É uma promessa bem aos moldes cristãos, onde você responsabiliza um terceiro pelo alcance de uma graça. No caso dessa nossa história o futuro de Bentinho fora decidido por conta de uma promessa antes mesmo dele nascer e que até mesmo seu pai morrera sem ter conhecimento de sua existência.
Tendo-lhe nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo na igreja.
Acontece que Bentinho não tem a menor vocação para se tornar padre. Sua mãe o fez crescer envolto nas questões religiosas, onde até suas brincadeiras eram sobre presidir uma missa e outros ritos religiosos, todos impostos por Glória que estava amarrada ao objetivo de entregar um filho à igreja. Três fatos irão dificultar que Bentinho se livre rapidamente dessa promessa - sua personalidade submissa, a devoção à sua mãe a qual chama de "uma santa" e seu amor por vezes cego pela intensa Capitu.
... sim, sim, minha mãe era adorável. Por mais que me estivesse então obrigando a uma carreira que eu não queria, não podia deixar de sentir que era adorável, como uma santa.
Bentinho e Capitu são amigos de infância e essa amizade aos poucos foi se tornando algo mais especial. Quando começamos a acompanhar de fato a história de amor de Bentinho e Capitu (pelos olhos de Bentinho e isso deve ficar evidenciado), ambos estão na faixa dos 15 anos de idade e com toda aquela intensidade do primeiro amor da adolescência. Como os pais de Capitu e a mãe de Bentinho tinham uma relação cordial de vizinhos e amigos, os adolescentes gozavam de uma certa liberdade de estarem sempre juntos sem uma vigília muito repressora dos adultos.
A primeira pessoa a notar que um sentimento estava nascendo entre Capitu e o garoto fora o agregado da família de Bentinho, o José Dias, figura que os acompanha a muitos anos e que era muito apreciado pelo pai de Bentinho, portanto, mesmo após a morte do patriarca, José Dias continuou servindo a família. Ele era uma espécie de "faz tudo" e também confidente. Logo no começo do livro, em uma conversa entre José Dias e Glória, que Bentinho escuta escondido, o homem comenta sobre a proximidade entre os adolescentes e a necessidade de que Bentinho fosse logo para o seminário para que a promessa fosse cumprida. Uma chave parece virar na cabeça de Bentinho e ele percebe o quanto gosta da sua vizinha.
Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si que não era feio que os meninos de quinze anos andassem nos cantos com as meninas de quatorze; ao contrário, os adolescentes daquela idade não tinham outro ofício, nem os cantos outra utilidade.
Capitu entra na história rompendo um clima de submissão à tradição. É uma garota de personalidade forte e de grande beleza que é traduzida no livro até pela intensidade de seus olhos. Capitu e o José Dias são as pessoas responsáveis por movimentar os núcleos familiares com muita inteligência, destreza e algumas intenções. De certa forma, podemos dizer que são manipuladores, só que de formas diferentes. Enquanto José Dias está preocupado com a manutenção de seu lugar de prestígio e conforto no seio da família que serve a anos, Capitu está dedicada à sua liberdade de sentimentos e a um projeto de futuro ao lado de Bentinho.
No capítulo 25 chamado "No passeio público" onde Bentinho está colocando em prática o plano de ganhar o apoio de José Dias junto a sua mãe para convencê-la de sua falta de vocação à vida religiosa (um plano que também tem dedos de Capitu), Dias profere o seguinte comentário, que irá interferir na visão de Bentinho sobre Capitu: "Você reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada." Vemos aqui que o intuito de Dias era o de quebrar a imagem apaixonada que Bentinho estava construindo sobre Capitu, uma vez que tudo que envolvia ciganos nessa época era dotado de preconceitos e nem precisamos explicar muito o significado da palavra "dissimulada".
Em vários trechos da obra, apesar de estarmos diante da visão de Bentinho sobre os acontecimentos, o mesmo acaba se entregando como um homem facilmente manipulável. O narrador não consegue se esconder das entrelinhas e essa é uma das genialidades de Machado de Assis em Dom Casmurro. Bentinho sempre abaixa a cabeça para as vontades de sua mãe, é facilmente moldado pelos interesses de Dias e até um certo ponto se coloca aos pés de Capitu. "Capitu era Capitu, isto é, uma criatura muito particular, mais mulher do que eu era homem."
Como a própria obra diz: "aos quinze anos, tudo é infinito", portanto tenho a teoria de que José Dias é o grande pivô de quase todos os problemas em que Bentinho se coloca, utilizando da pouca idade e imaturidade do garoto, como de sua posição de autoridade na família. Percebemos que mesmo após Bentinho achar ter conquistado a confiança e aliança de Dias para se livrar do seminário e se casar com Capitu, não percebemos movimentos muito significativos do mesmo junto à Glória. O que percebemos é um Dias que diz a Bentinho o que ele quer ouvir e que faz o mesmo movimento em relação à Glória. As principais dúvidas que Bentinho passa a ter em relação à fidelidade de Capitu são lançadas sutilmente e ironicamente pelos diálogos de José Dias. Em certo ponto, quando Bentinho não consegue se livrar do seminário e tem um encontro com José Dias, o rapaz pergunta sobre como Capitu está e Dias responde:
- Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo, enquanto não pegar algum peralta da vizinhança que case com ela...
Aos poucos, a visão de Bentinho sobre Capitu, passa a carregar muito da visão do próprio Dias. Após esse comentário maldoso Bentinho passa a se incomodar com todas as saídas de Capitu, até para visitar uma amiga doente. Começa a se irritar com o fato de Capitu chegar até a janela de sua própria casa e a questionar falas e posicionamentos que até então não estavam no seu radar. Em muitos trechos Machado nos dá dicas sobre essa nuance da personalidade de Bentinho:
Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a opinião provável do meu interlocutor, desde que a matéria não me agrava, aborrece ou impõe.
Continuei a tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer; muita vez só a indiferença bastava. Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança. É certo que Capitu gostava de ser vista, e o meio mais próximo a tal fim (disse-me uma senhora um dia) é ver também, e não há ver sem mostrar que se vê.
Um outro personagem muito importante para o desenrolar da trama é Escobar. Bentinho conhece Escobar durante o seminário e nasce uma amizade muito forte entre os dois. Tão forte como a amizade era também a personalidade do amigo. Mais uma vez Bentinho se vê envolvido na vida de alguém que muito diferente dele mesmo. Escobar acaba sendo a única referência de amizade citada por Bentinho durante o livro. Assim como Bentinho ele não tem vocação religiosa e fora obrigado a estar no seminário, mas chega a propor planos a Bentinho de se livrarem daquela obrigação, sendo um deles a visita ao próprio Papa. Essa amizade vai se estender pelos anos a frente até o momento em que Bentinho começa a desconfiar de que Escobar e Capitu podem estar tendo um caso. Acontece que tanto Capitu, como Escobar representam tudo aquilo que Bentinho não consegue ser. Bentinho se vê sempre a disposição da vontade dos outros, não podemos dizer que seja muito corajoso, e por vezes se coloca numa posição de fragilidade e fraqueza. É como se Bentinho se sentisse extremamente atraído por essas duas figuras que são seu oposto complementar.
Podemos fazer uma reflexão interessante também de que o posicionamento de vida de Capitu era algo incomum para uma época onde a uma mulher só cabia a submissão e códigos sociais a serem seguidos. Durante a história não é narrado nenhum episódio muito "escandaloso" em relação às atitudes de Capitu, e acredito que essa estratégia do autor case bem com a atmosfera de dúvida que é essencial para a história. Capitu é uma personagem enigmática e que prende o leitor numa áurea de fascínio. É a mesma garota que encanta a todos com sua beleza e também aquela que em decorrência de uma emergência assume todas as responsabilidades de sua casa. É a mesma que se derrete com a presença de Bentinho fazendo juras e promessas de amor, mas que também atira ironias sagazes em sua cara quando se sente confrontada ou rejeitada.
Era mulher por dentro e por fora, mulher à direita e à esquerda, mulher por todos os lados, e desde os pés até à cabeça. Esse arvorecer era mais apressado, agora que eu a via de dias a dias; de cada vez que vinha a casa achava-a mais alta e mais cheia; os olhos pareciam ter outra reflexão, e a boca outro império.
Esse trecho da história fez com que eu ficasse ainda mais envolto em minha própria teoria da influência de Dias na crise entre Bentinho e Capitu. Dom Casmurro é uma obra que nunca será devassada em apenas um texto e muito menos por um leitor como eu que lê por gosto, por entretenimento e necessidade de acessar fabulação, mas admito que essa passagem acima movimentou ainda mais minha experiência de leitura e acho que o trecho carrega consigo uma mensagem subliminar, uma dica escondida de Machado para os leitores.
Quando ele diz "agora que eu a via de dias a dias" acredito que esteja deixando uma dica para o leitor da fração de desgaste existente, da influência de José Dias no relacionamento dos amantes. Capitu representava um perigo para a posição confortável que Dias possuía na vida daquela família, pois ele sabia que ela não seria facilmente manipulada. Um dos maiores desejos de Dias era continuar servindo aquele núcleo familiar e assim como fora confidente do pai de Bentinho, depois de sua mãe Glória, gostaria de seguir ocupando essa posição, agora ao lado de Bentinho, que um dia herdaria tudo. Dias se aproximou da família com uma mentira e se estabeleceu baseado inicialmente baseado nela.
Acredito que essa possibilidade de conversar com a obra e imaginar as diversas nuances que levaram ao fim que o livro apresenta é onde está a verdadeira maestria de Dom Casmurro. Machado de Assis teceu um texto com precisão quase matemática para que todos os personagens fossem muito bem apresentados e que ao mesmo tempo carregassem consigo um enigma, uma lacuna, uma outra possibilidade de serem interpretados e não existe uma resposta certa. Acho que no fim das contas, se Capitu traiu ou não Bentinho, se Bentinho estava paranoico e cego pelos ciúmes ou não é o que menos interessa. Inclusive eu mesmo não consegui chegar a uma conclusão e me dei o direito da dúvida. O que mais interessa é a apreciação dessa história que é um exemplo da literatura como manifestação artística e de que a vida e as narrativas são feitas de muitas histórias e pontos de vistas. Machado convida o leitor a revisitar o seu próprio ponto de vista e a gente escolhe o que vai ver munidos da nossa visão de mundo. Eu escolhi a minha teoria. Qual é a sua?
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