O milagre dos pássaros contado por Jorge Amado (Editora Record, 1997) é uma história bem curta, mas que nos remete ao encantado universo da literatura fantástica genuinamente brasileira. Quando pensamos em fantasia em nossa literatura, é impossível não lembrar logo de Jorge Amado. O autor consegue extrair da nossa cultura, do nosso povo, dos nossos costumes e principais figuras os elementos para criação de histórias surpreendentes e de pés descalços. Quando digo dos pés descalços, me refiro a uma produção que olha para o céu, mas que se conecta com o que há de mais nacional, de mais brasileiro, que nos remete a pontos de origem e que nos faz rir e chorar de emoção, que consegue nos aproximar por identificação.


A edição do livro é bem especial. Consegue ser simples e ao mesmo tempo rebuscada, exatamente como o universo do conto pede. O formato do livro foi pensado de forma a quase caber na palma da mão, e é todo encapado em tecido de vermelho bem vibrante. O livro é acompanhado de uma capinha também de tecido e vermelha que além de ajudar a preservar o exemplar, também lhe dá aspecto de presente, de algo a ser posto em canto especial.

No conto iremos encontrar personagens fascinantes e que nos fazem ficar presos na narrativa. Toda a história gira em torno de Ubaldo Capadócio, um literato de cordel que viaja de cidade em cidade, de Estado em Estado para vender sua poesia e poder sustentar suas três esposas ilegítimas e seus nove filhos.

O trovador Ubaldo Capadócio tinha estampa, arrebatava corações. Caboclo alto e garboso, um galalau, cabeleira esgrouvinhada, riso fácil, conversa de salão salpicada de ditos engraçados e palavras de dicionário, mal chegava, logo a roda de prosa se estabelecia. Na vastidão dos sertões da Bahia e de Sergipe onde habitualmente exercia deveres, cuidados e alegrias, era figura popular e requisitada. Vinham buscá-lo de longe para animar batizados, casamentos, velórios: não havia igual num brinde aos noivos, melhor contador de casos numa vigília, capaz de fazer o próprio defunto rir e chorar. 

E o milagre a que esse conto se refere se deu na cidade de Piranhas, às margens do Rio São Francisco em Alagoas. O famoso Capadócio se vê as voltas com mais uma sedução, só que dessa vez de mulher alheia e que vai colocá-lo numa situação de vida e morte. A pequena cidade de Piranhas inteira acompanha o fato, e cada uns dos personagens que aparece são dignos de nota, pois é onde encontramos boa parte das delícias e fantasias da história. São personagens ao mesmo tempo tão fantásticos e tão comuns em nossas pequenas cidades brasileiras. 

Na cidade de Piranhas reside Jarde Ramalho, coronel que se vangloria de ter lutado contra o bando de Lampião. Heloísa Ramos, que parece achar que ser viúva é profissão. O nosso herói Ubaldo Capadócio, que sustenta três famílias com proventos dos folhetos de cordel, da harmônica e da viola, com a voz rouquenha e as rimas de poesia. Ubaldo inventa de se meter, literalmente, com Sabô, mulher de Lindolfo Ezequiel, capitão com reputação de valentia e crueldade. Dizem que matou centenas de pessoas pelos motivos mais torpes. Sabô é narrada como a única pessoa da localidade a não ter respeito pela patente do marido, faz dele gato e sapato. Encontraremos também o Mestre Calazans Neto e Florisvaldo Matos, famosos por terem presenciado o momento em que o defunto Aristóbulo Negritude dera uma gargalhada por conta de uma história engraçada em seu próprio enterro. Além de figuras como Carybé, pintor e mentiroso inveterado.

Em pouco mais de trinta páginas Jorge Amado nos apresenta sem pressa a todas essas figuras. Nós leitores, saímos maravilhados e querendo saber mais sobre todas essas pessoas e de boca aberta com o tal do milagre dos pássaros, mais um acontecimento que fará parte do imaginário e das histórias do povo de Piranhas. O milagre dos pássaros é a transformação de uma história oral em narrativa escrita pelas mãos e imaginário eficientes de Amado que ajuda a alçar ao posto merecido mais uma grande história da tradição popular do sertão nordestino.