No mês de junho celebramos o mês do orgulho LGBTQIA+ e indicarei alguns livros escritos por pessoas da nossa comunidade ou que mesmo que não tenham sido escritos por nós, tem o nosso universo, nossa realidade como foco narrativo para além dos estereótipos. Os livros que falam sobre nós estão saindo dos porões e mostrando que todos precisam se ver representados em todas as expressões artísticas. Escrevi a resenha de "Dois garotos se beijando" do David Levithan a alguns anos, mas achei importante resgata-la, pois é um livro que gosto e que costumo indicar para todos os jovens que estão se encantando pela leitura e principalmente para jovens que fazem parte da comunidade queer. É um livro que começa a contar a história de como chegamos até aqui, apesar de toda a violência. 



Hoje enquanto parei em um banco de praça pra retomar o fôlego de um dia de trabalho eu vi dois garotos de mãos dadas, e não fui só eu que vi, alguns olhos raivosos também viram. E enquanto os dois garotos andavam, indiferentes a indignação alheia, fiquei pensando o que poderia acontecer se eles estivessem abraçados, ou muito melhor, se estivessem se beijando. Esse episódio fez com que eu retomasse a ideia de escrever sobre um dos livros que li recentemente: "Dois Garotos se Beijando"(Galera Record, 2015)  do escritor norte americano David Levithan.

A história do livro gira em torno de um beijo de 32 horas e alguns minutos entre os personagens Harry e Craig, que com isso pretendem quebrar o recorde do Guinness Book de beijo mais longo. Beijo que é também um protesto contra a homofobia e mobiliza uma cidade e a mídia enquanto as histórias paralelas de Peter e Neil, Ryan e Avery e Cooper se cruzam a dos garotos se beijando. São histórias diferentes que acontecem ao mesmo tempo e que segundo o próprio autor são inspiradas em fatos reais. 

Quando decidi ler o livro do Levithan a motivação inicial foi sanar uma curiosidade sobre o que andam escrevendo por aí sobre garotos gays e seus relacionamentos, no que intitulam de literatura para jovens adultos - e confesso que é algo que gostaria de ter tido a oportunidade de ter lido aos quinze anos de idade. 

Comecei a leitura também com três receios, primeiro pela qualidade literária do texto, segundo pela minha eterna desconfiança de livros que são sucesso de mercado e terceiro por uma ligeira implicância com o título do livro, que inicialmente achei vazio e meio bobo.  Pois me surpreendi com a criatividade e fluidez da narrativa, com a inteligência dos diálogos, com a grande sacada do autor que é a figura do narrador, quer dizer, dos narradores. A história é contada pelos fantasmas de gays do passado, por homossexuais que passaram pela epidemia de AIDS, por agressões violentas à diversidade e militantes responsáveis por muitos dos avanços que testemunhamos hoje. O interessante disso tudo é que esses narradores onipresentes acabam por fazer links com o passado ao acompanhar a histórias dos personagens, fazendo um paralelo do que era ser gay a algumas décadas atrás e o que é ser gay hoje.

Vocês não tem como saber como é para nós agora; sempre estarão um passo atrás. Agradeçam por isso. Vocês não tem como saber como era para nós antes; sempre estarão um passo à frente. Agradeçam por isso também. Acreditem em nós: existe um equilíbrio quase perfeito entre o passado e o futuro. Enquanto nos tornamos o passado distante, vocês se tornam o futuro que poucos de nós poderiam ter imaginado.

Assim somos introduzidos na narrativa de "Dois garotos se beijando". Lendo o livro fui desconstruindo meus receios, possíveis preconceitos com título, autor e lista de mais lidos do The New York Times e David foi justificando, ao menos para mim, todo o propósito do título do livro e após o seguinte trecho que transcrevo abaixo eu me entreguei completamente à história:

Dois garotos se beijando. Vocês sabem o que isso quer dizer.
Para nós, era um gesto tão secreto. Secreto porque sentíamos medo. Secreto porque sentíamos vergonha. Secreto porque era uma história que ninguém estava contando.
Mas que poder isso tinha. Quer nós disfarçássemos com a desculpa de Você será o garoto e eu serei a garota, quer chamássemos de forma desafiadora pelo nome correto, quando nos beijávamos era quando sabíamos o quanto era um gesto poderoso. Nossos beijos eram sísmicos. Quando vistos pela pessoa errada, podiam nos destruir. Quando compartilhados com a pessoa certa, tinham o poder da confirmação, a força do destino.
Se juntarmos armários suficientes, temos o espaço de um quarto. Se juntarmos quartos suficientes, temos o espaço de uma casa. Se juntarmos casas suficientes, temos o espaço de uma aldeia, de uma cidade, de uma nação, do mundo.
Sabíamos do poder particular de nossos beijos. Depois veio a primeira vez em que fomos testemunhas, a primeira vez que vimos acontecer abertamente. Para alguns de nós, foi antes de termos sido beijados. Saímos de nossas cidadezinhas, fomos para a cidade grande e, ali nas ruas, vimos dois garotos se beijando pela primeira vez. E o poder agora era o poder da possibilidade. Ao longo do tempo, não era só nas ruas ou nas boates ou nas festas que organizávamos. Estava no jornal. Na televisão. Nos filmes. Todas as vezes que víamos dois garotos se beijando assim, o poder aumentava. E agora... ah, agora. Há milhões de beijos para serem vistos, milhões de beijos a um clique de distância. Não estamos falando de sexo. Estamos falando de ver dois garotos que se amam se beijando. Isso tem muito mais poder do que o sexo. E mesmo se tornando lugar-comum, o poder ainda está presente. Todas as vezes que dois garotos se beijam, o mundo se abre um pouco mais. Seu mundo. O mundo que deixamos. O mundo que deixamos para vocês.
Este é o poder de um beijo:
Ele não tem o poder de matar você. Mas tem o poder de trazer você à vida.
De vazio e bobo o livro não tem nada. Está cheio de posicionamento político, discussões de direitos humanos, representatividade, diversidade, entre outros temas universais aos relacionamentos humanos sejam eles gays, héteros, bissexuais, enfim. Não é um livro bobo, é um livro sério que faz uma retrospectiva sem didatismo pedante, sobre a trajetória de luta dos homossexuais para que a geração de hoje pudesse estar vivendo com um pouco mais de dignidade e que muitas vezes parecemos esquecer daqueles primeiros militantes que começaram a lutar contra o processo de invisibilização dos LGBT's. 

Dois garotos se beijando é colocado no livro como um ato de amor, mas também um ato político. O título do livro trás consigo leveza e dor ao mesmo tempo, pois para muitos dois garotos se beijando é algo muito simples e bonito, como um beijo deve ser, e para outros é visto como algo abominável e que pode gerar ondas de violência, discursos de ódio e negação de direitos. O que estou dizendo pode ser comprovado simplesmente pela exposição da capa do livro e as expressões faciais que a mesma gera. Inclusive a capa da edição americana de Two Boys Kissing gerou um grande burburinho quando o livro foi lançado, e ela nada mais é do que a fotografia de dois garotos se beijando e que portanto é o tema do livro.

À esquerda edição americana do livro e à direita a edição brasileira

Dois garotos se beijando é uma bandeira de igualdade e liberdade. É um grande avanço que livros como esse estejam sendo publicados no Brasil em tempos de tanta mediocridade e hipocrisia. Com isso não estou de forma alguma dizendo que essa temática nunca foi tratada no país por escritores nacionais, pois temos e tivemos escritos primorosos de figuras como Caio Fernando Abreu, João Silvério Trevisan e Hebert Daniel que são citados numa coluna que li sobre "literatura gay" como "aqueles que ousaram e ousam a escrever sobre o amor que não se diz o nome". Literaturas como essa, que reconhecem "minorias" e contribuem com a representatividade de pessoas e grupos perseguidos acabam por cumprir um papel transformador nas mentes e na sociedade pois como dizia Sartre "só a liberdade pode tornar inteligível uma pessoa em sua totalidade, mostrar essa liberdade em luta contra o destino, primeiro esmagada por suas fatalidades, depois voltando-se contra elas, digerindo-as pouco a pouco (...)"