A terceira vida de Grange Copeland da Alice Walker (TAG Experiências Literárias, 2020) lançado em parceria com a Editora José Olympio foi o primeiro livro da autora. Alice iniciou a escrita em 1966 e o mesmo foi lançado em 1969. Quando pensamos na data de escrita dessa obra, entendemos ainda mais a sua temática voltada para a realidade dos negros em uma América segregada racialmente e com a explosão de movimentos pela liberdade e integração entre negros e brancos. Alice Walker possui uma vasta obra literária e também escreveu o aclamado "A cor púrpura" que ganhou uma adaptação cinematográfica.


Podemos perceber que nesse livro existem algumas nuances que nos remetem a própria biografia da autora. Assim como a família protagonista da obra, Alice nasceu e cresceu em uma comunidade rural do Estado da Geórgia. Esse Estado foi um dos que sofreu mais intensamente as consequências de um contexto pós-guerra civil, impactando assim no desenvolvimento local e no acirramento das questões sociais. A própria autora em um texto de apresentação do livro disse que:

Foi um livro extremamente difícil de escrever, porque tive que olhar, e dar voz, e falar sobre a violência entre pessoas negras, na comunidade negra, ao mesmo tempo que todos os negros (e alguns brancos) - inclusive eu e minha família - sofriam extrema violência psicológica e física de suprematistas brancos nos estados sulistas, sobretudo no Mississippi.

Em "A terceira vida de Grange Copeland" acompanhamos a história de uma família de negros que viviam no Estado da Geórgia. Durante três gerações essa família se vê enredada em um histórico de violências provindas do racismo como descendentes de negros escravizados. Alice Walker explora com muita sagacidade os impactos de se viver nessa época e nesse Condado tendo opressão racial, social e familiar como companhia.

Inicialmente, conhecemos o pai de família Grande Copeland, através do olhar de seu filho Brownfield. Grange é um homem embrutecido pela vida e pelo sistema e acaba projetando sua fúria na própria família. O livro trata de forma muito impactante da questão da violência contra as mulheres. Uma violência que é rotineira e que devassa a vivência feminina colocando-as  como propriedade do marido. As descrições das surras são muito fortes e causam um incômodo que pode ser demais para alguns leitores.

No sábado à noite, já bem tarde, Grange voltava para casa cambaleando de bêbado, ameaçando matar a esposa e o filho, tropeçando e disparando sua espingarda. Ele ameaçava Margareth, que saía correndo e se escondia na floresta, com Brownfield encolhido a seus pés.

A submissão de Margareth ao marido é algo angustiante, mas que é completamente compreensivo quando pensamos em um ambiente onde o machismo e a violência imperam e onde a mulher foi criada para servir. Sair dessa situação era praticamente impossível para a maioria das mulheres que precisavam se acostumar a realidade de que sábado a noite era dia de apanhar do marido bêbado.

Muitas coisas acontecem no decorrer da história e vemos a degradação dessa família acontecer. Por conta desses acontecimentos Brownfield se vê, ainda menino, sozinho no mundo, após seu pai decidir ir embora para tentar a vida no norte do país.

Se durante a infância, Brownfield fazia um esforço para entender quem era o homem por trás de tanta brutalidade e que nunca foi um pai verdadeiramente, aos poucos ele próprio começa a traçar um caminho que o tornará perigosamente parecido com o pai. Brownfield vai se tornando exatamente aquilo que não entendia e que o fazia sofrer. Ele não era seu pai, mas continuava imerso no mesmo universo que transformou Grange no homem que era. Servidão aos brancos com resquícios da relação da escravidão, salários miseráveis que o afogavam em dívidas, trabalho de sol a sol nas plantações de algodão, alcoolismo e moradia deplorável. Além de toda a armagura Brownfield herda do pai o ódio aos brancos.

Brownfield se casa com Mem, uma moça que inicialmente ama e deseja proteger, mas aos poucos a mesma realidade que destruiu Margareth começa a fazer parte dos dias de Mem. Mem é uma mulher diferente por ter tido a oportunidade de estudar, portanto vislumbrava um outro futuro. Enquanto Brownfield não dedica nenhum tipo de atenção ou carinho às filhas, Mem faz o que pode para protegê-las e para que possam estudar. Essa questão do acesso à educação no livro é muito interessante, pois traça um histórico da história dos EUA onde o acesso a escola para o povo preto era extremamente difícil. Crescia uma demanda pela existência de escolas públicas.

Uma nova tragédia se abate sobre a família Copeland e mais membros da família se vêem em situação de abandono. Partimos para uma terceira geração que promove alguns reencontros entre pessoas e com a própria história de violência. Vemos um integrante da família emergir como alguém que pode ser a pessoa que quebrará esse ciclo de tragédias e violências através de mãos antes improváveis.

Nessa parte é quando podemos perceber a incidência dos afetos com algum potencial de transformação. Somos apresentados a diálogos inteligentes sobre a condição dos negros, sobre privilégio branco, e sobre resistência. Quais seriam as armas que poderiam de fato construir uma sociedade mais igualitária?

Para mim ficou muito forte as reflexões de Grange Copeland ao pensar sobre o ódio como instrumento de transformação. Ele que tanto sofreu nas mãos da sociedade branca passa a defender o ódio como garantia de sobrevivência. Grange fala sobre o "ódio necessário" para libertar da apatia, da violência e da servidão, e nós leitores, diante do histórico que já conhecemos, e olhando para os últimos episódios de racismo no Brasil e nos EUA só podemos concordar.

Alice Walker faz uma escolha que é muito interessante para a obra. O ponto de vista de cada geração da vida de Copeland aparece através de alguém que está sendo oprimido e que olha para esse opressor com olhos de descrença mas também de análise do por que das coisas serem como são. Na primeira geração Brownfield olha para o pai, na segunda geração Mem olha para Brownfield e inclusive tenta fazer com que uma outra história seja construída (uma tentativa de virada) e na terceira geração a jovem Ruth, filha de Brownfield olha para o avô Grande e ali naquele olhar algo inédito pode estar acontecendo, pois existe afeto recíproco.

Em todas as gerações temos representações da sociedade e salta aos olhos as questões de raça e gênero, o que é algo presente em todas as obras de Alice Walker. A terceira vida de Grange Copeland é um livro necessário. Com ele dedicamos um tempo para a dor, mas com a certeza de que a vida é como um espelho, onde podemos cair na armadilha de viver apenas como reflexos e que as vezes se faz necessário olhar para esse espelho e deixá-lo em pedaços.