Meio sol amarelo de Chimamanda Ngozi Adichie (Companhia das Letras, 2008) é uma história grandiosa. É a segunda obra da Chimamanda que leio e sempre lembro de sua fala sobre o perigo da história única que pode levar à desumanização. Em um trecho a escritora relata como cresceu na Nigéria mas lendo apenas livros infantis britânicos e americanos, e que quando começou a escrever suas próprias histórias aos sete anos todos seus personagens eram brancos de olhos azuis, brincavam na neve, comiam maçãs e bebiam cerveja de gengibre, mesmo que ela nem soubesse o que era. Isso tudo porque eram os tipos de histórias que tinha acesso. Até que ela começou a escrever sobre coisas que conhecia.


Meio sol amarelo é mais um exemplo desse comprometimento de Chimamanda de olhar para si, e quando ela olha pra si olha também para um país e um continente que ainda conhecemos pouco e o que conhecemos é dotado de estereótipos. Em Meio sol amarelo Chimamanda nos apresenta a Nigéria com toda sua cultura, costumes, linguagens, música, diversidade, conflitos sociais e políticos. Quase impossível fazer essa leitura sem realizar pesquisas paralelas sobre as cidades citadas, o significado de algumas palavras, principalmente em realção aos igbos e os acontecimentos políticos. Passamos a fazer parte da vida de Ugwu, Olanna, Odenigbo, Kainene, Richard e diversas personagens que passam pela história, tendo uma guerra como pano de fundo.

O livro é baseado na guerra de Biafra que durou de 1967 a 1970 e dividiu o país em dois em busca da separação das províncias ao Sudeste da Nigéria. Nigerianos e Biafrenses lutando por domínio de terra e sobrevivência de seu povo. A guerra de Biafra surge por conta de muitos fatores, sendo os mais proeminentes os conflitos entre nigerianos de dois grupos étnicos diferentes (ibos e haussás) e uma convulsão social advinda de heranças da colonização.


Com essa nova realidade da Nigéria, após recente emancipação, começam a acontecer tensões entre os grupos étnicos que compõe o país, principalmente entre os ibos (grupo étnico dos nossos protagonistas) e os haussás. Os haussás ocupavam o noroeste do país e os ibos a região a sudoeste. Diante de toda essa instabilidade social e até preconceito entre povos, no início de 1966, um grupo de oficiais, e sua grande parte da etnia ibo, instauram um golpe de estado, onde irão assassinar o primeiro-ministro Sir Abubakar Tafawa Balewa, e os governadores da região norte e oeste, Ahmadu Bello e Ladoke Akintola. Apenas seis meses depois, militares da região norte dão um contra-golpe, acompanhado de manifestações populares e de perseguições violentas contra os ibo que eram assassinados nas ruas e dentro de suas casas. Os líderes políticos ibo decidem por separar seu território da Nigéria, declarando a República de Biafra e tem início uma guerra que matou mais de um milhão de pessoas.

Na primeira parte do livro conhecemos Ugwo, uma garoto de aldeia que consegue um emprego para servir na casa de Odenigbo, um intelectual revolucionário que conhece Olanna e os dois decidem morar juntos. Olanna é uma moça da alta sociedade nigeriana e professora universitária que acaba decepcionando seus pais ricos e poderosos por não seguir o caminhos dos negócios e dos conchavos políticos optando pela Educação. Ela tem uma irmã gêmea não idêntica chamada Kainene - uma mulher forte e empreendedora com talentos para gerir parte da fortuna da família. Kainene é uma personagem muito interessante do livro e cheia de camadas que ajudam a gente a entender o clima político e empresarial da Nigéria antes e durante a guerra. Ela acaba conhecendo e iniciando um romance com Richard, um jornalista branco e britânico que sonha escrever um livro.

A relação de Ugwo com seu patrão Odenigbo é algo de notável no livro. Em muitas ocasiões a vivência dos dois não deixa de cumprir a serviência, mas também existe ali uma relação afetiva que esbarra no respeito e no desejo de propiciar a Ugwo o acesso a livros e estudos. Eles propiciam diálogos potentes sobre decolonização do ser e dos saberes:

"Existem duas respostas para as coisas que eles vão lhe ensinar sobre a nossa terra: a resposta verdadeira e a resposta que você dá na escola para passar de ano. Você tem que ler livros e aprender as duas versões. Eu vou lhe dar livros, livros excelentes." O patrão interrompeu o que dizia para tomar um gole de chá. "Eles vão lhe ensinar que um homem branco chamado Mungo Park descobriu o rio Níger. Isso é besteira. Nosso povo pescava no Níger muito antes que o avô de Mungo Park tivesse nascido. Mas, no seu exame, escreva que foi Mungo Park."
A educação é uma prioridade. Como é que podemos resistir à exploração se não temos as ferramentas para entender o que é exploração?

Através das histórias dessas personagens e de outros mais que entrelaçam a trama conhecemos a rotina de vida da classe média nigeriana em meados dos anos 60, um período de efervescência por conta da recente independência do país. A casa de Odenigbo é uma espécie de QG dos estudiosos e pesquisadores da universidade. Nessas reuniões de amigos conhecemos detalhes sobre a cultura e política da Nigéria, um país que sofreu diversos golpes de Estado e que tenta se firmar mesmo diante de grande desigualdade social, forte influência de políticas externas e ocorrência de esquemas de corrupção.

"Claro, claro, mas o que eu digo é que a única identidade autêntica para um africano é sua tribo", disse o patrão. "Eu sou nigeriano porque um branco criou a Nigéria e me deu essa identidade. Sou negro porque o branco fez o negro ser o mais diferente possível do branco. Mas eu era ibo antes que o branco aparecesse."

Da segunda parte em diante acompanharemos a fuga das nossas personagens para as cidades ainda não conquistadas. Eles não fogem apenas dos bombardeios e dos tiros, mas também da fome. Fome e doença assolam os civis que resistem bravamente e tentam se agarrar na certeza da vitória de Biafra, no amor por seus parentes e nas diversas crenças para sobreviver. Chimamanda traça um fio perfeito entre ficção e realidade ao narrar os horrores da guerra e mostrar que toda guerra é feia. O livro além de ser uma obra prima da literatura ajuda a contribuir com a memória de um fato marcante da história de um país e levar para milhões de pessoas uma narrativa que ajuda a desinvibilizar parte da história da Nigéria.

"Ele escreve sobre fome. A fome foi a arma de guerra da Nigéria. A fome quebrou Biafra, trouxe fama a Biafra e fez Biafra durar o tempo que durou. A fome fez os povos do mundo repararem e provocou protestos e manifestações em Londres, Moscou e na Tchecoslováquia. A fome fez a Zâmbia, a Tanzânia, a Costa do Marfim e o Gabão reconhecerem Biafra, a fome levou a África até a campanha presidencial de Nixon, e fez os pais do mundo todo dizerem aos filhos para raspar o prato. A fome levou organizações de ajuda a fazer transportes clandestinos de comida durante a noite, uma vez que nenhum dos lados conseguia chegar a um acordo quanto às rotas. A fome ajudou a carreira dos fotógrafos. E a fome fez a Cruz Vermelha Internacional chamar Biafra de sua maior emergência, desde a Segunda Guerra Mundial."
A obra de Chimamanda Ngozi Adichie ataca de frente o problema das histórias únicas. Seus livros são um exemplo do poder da leitura e da escrita para demonstrar que "histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida."