Estação atocha de Ben Lerner (Tag Experiências Literárias, 2020) é um livro que se debruça sobre as artes. A literatura aparece como  protagonista através das diversas experiências que a  poesia pode proporcionar. Acompanhamos Adam Gordom, um jovem e promissor poeta que conseguiu uma bolsa de estudos para estudar em Madri. Enquanto trabalha em seu projeto de pesquisa, Adam irá ser o fio condutor de uma história que reflete sobre o poder da literatura, inclusive a níveis sociais e políticos.


Em "Estação atocha" a ironia chama atenção através da voz de nosso personagem narrador que é uma figura que consegue ser realista, instável, inconsequente e por vezes bastante insensível - o que é algo que não cogitamos para a personalidade de um poeta. Adam Gordom chega em Madri para finalizar um longo poema sobre a Guerra Civil, mas por mais que ele vai tentando situar o leitor temporalmente sobre seu processo de pesquisa, percebemos que o mesmo não tem o projeto como seu foco principal.

Adam Gordom é talentoso mas muito inseguro e tem a mania  de auto sabotagem. Durante todo o livro são poucos os momentos em que podemos dizer que o rapaz estava livre dos efeitos de drogas e álcool. Ele costuma se automedicar mesmo tendo dúvidas se esses medicamentos ainda provocam algum efeito, principalmente sobre seus problemas com insônia e ansiedade. Faz uso constante de maconha, haxixe e álcool como uma forma de potencializar a visão que tem de si e como estratégia de moldar a imagem que passa para os outros.  Em certo momento do livro, uma das personagens com quem Adam estabelece um relacionamento amoroso, a mesma chega a perguntar "quando vai parar de fingir que está fingindo ser poeta?"


Durante todo o livro, Adam se provoca quanto à sua condição de artista e também das pessoas que se dizem arrebatadas por qualquer expressão de arte. É um cético quanto às características, atitudes ou símbolos que definem alguém como tal, e principalmente como poeta. Logo no início da história temos um capítulo que explora bem essa faceta da personagem:

Por muito tempo, eu convivera com a preocupação de que era incapaz de passar por uma profunda experiência artística e me custava acreditar que alguém mais fosse, pelo menos entre os meus conhecidos. Nutria profundo ceticismo a respeito das pessoas que alegavam que um poema ou uma música tinham "mudado a vida delas", especialmente porque, observado-as antes e depois dessa experiência, não conseguia detectar a menor mudança. Embora quisesse dar uma de poeta e apesar de ter ganhado minha bolsa de estudos na Espanha graças ao meu suposto talento literário, eu só conseguia apreciar a beleza dos versos quando os encontrava citados em trechos de prosa, nos ensaios que os professores da faculdade me mandavam ler, com as barras substituindo as as quebras de linha, de modo que o que me impressionava não era um poema em particular, mas o eco de uma possibilidade poética. O que realmente me interessava na arte era a desconexão entre a minha percepção das obras de arte físicas e as alegações feitas em nome delas. A sensação mais próxima de uma profunda experiência artística que eu tivera talvez tenha sido a vivência dessa desconexão, uma profunda experiência da ausência de profundidade.

O jovem leva também seu ceticismo e excentricidade para as relações sociais e amorosas. No livro ele se aproxima de duas mulheres, utiliza de jogos emocionais e acaba se mostrando um mentiroso compulsivo. Adam não pensa duas vezes nas consequências de uma grande mentira para que possa passar exatamente a imagem que sua mente deseja projetar para as outras pessoas. Em certa parte da história o mesmo chega a se definir como "um mentiroso compulsivo, violento e bipolar ... um autêntico americano."

Em sua intensa busca pelo seu eu-poeta nosso personagem vai fazendo conjecturas e interpretações enquanto foge de todas as responsabilidades acadêmicas possíveis. Apesar de ter o risco de perder sua bolsa de estudos caso não mostre resultados de sua pesquisa, Adam deixa nítido que o que está garantindo seu processo de formação e alimentando sua vontade de escrever são a  observação das pessoas, sua busca por autenticidade, por verdade e a condição de estrangeiro enfrentando barreiras culturais e linguísticas.

Se eu era um poeta, tornara-me um porque a poesia, mais que qualquer outra atividade, não podia se esquivar de seu anacronismo e de sua marginalidade, e por isso representava uma espécie de reconhecimento da minha insensatez, uma forma de admitir a minha má-fé na boa fé, por assim dizer. 

As reflexões sobre literatura, escrita e artes visuais são também uma crítica muito bem marcada aos pensadores americanos do âmbito acadêmico. Adam Gordom se mostra muitas vezes bastante alienado em relação às conexões da poesia com a política e a sociedade e um atentado terrorista à Estação Atocha que matou muitos trabalhadores e imigrantes e deixou outros milhares feridos irá suscitar mais discussões sobre qual é a função da literatura e da poesia para a política, e se há alguma, que tipo de mudança ela pode estabelecer?

A Estação Atocha entra então como mais uma personagem do livro. Esse desastre que realmente ocorreu na Espanha em 2004 e que até hoje não teve autoria assumida por nenhum grupo terrorista ocorreu ás véspera de uma eleição e movimentou o país com grandes manifestações. Todo o grupo de amigos de Adam acaba se envolvendo nesse grande acontecimento político e mais uma vez Adam se mantém à distância, como observador, na posição de turista que sabe que aquele não é seu país.

Adam usa muitas vezes da barreira linguística como uma maneira de não se posicionar e de impedir que as pessoas se aproximem muito. Em várias passagens ele narra diálogos com as personagens  onde ele apresenta de duas as três versões das possibilidades de interpretações para a conversa que estava tendo. Diante do ela/ele disse isso, ou podia ser aquilo ou aquilo outro, Adam podia se manter em sua cápsula e inclusive podia fugir de problemas e até de se responsabilizar por suas próprias falas e atos.

Terminamos o livro com as possibilidades de Adam ser uma fraude ou ser um artista passando pelo processo de experiência artística que ele fingia não acreditar mas que era o que tanto buscava. 


Estação Atocha foi indicado à TAG Curadoria pela Marília Garcia, primeira mulher brasileira a vencer o Prêmio Oceanos de Literatura com "Câmera Lenta" (2018).