Olhos D'água da Conceição Evaristo (Editora Pallas, 2016) é um livro composto por vários contos que nos aproximam de realidades distintas. A maioria dessas histórias são do ponto de vista feminino com a apresentação de mulheres fortes que sofrem as consequências ou enfrentam situações de racismo, homofobia, pobreza, violência policial, sexismo, morte, estupro, drogas, mas que também exalta a força da ancestralidade, do amor, do afeto e da representatividade com um texto cheio de sensibilidade e poesia.


Como é uma obra que trabalha com as questões de classe e gênero, deparamos com passagens que exploram a violência sem rodeios em uma narrativa onde nada é gratuito. Conceição Evaristo consegue ser realista usando da palavra como arte. Em seu texto a palavra fere e encanta em igual medida. É uma escritora que domina as nuances para se contar uma boa história.

Em "Olhos D'água" Conceição faz algo genial, que é falar de exclusão para incluir. É uma obra que humaniza os excluídos e dá voz aqueles que muitos fingem não existir em nossa sociedade ou que sua existência seja lembrada apenas para a servidão. E para dar voz a esses grupos e pessoas, Conceição se aproxima o máximo que pode de suas vivências para mostrar tanto a injustiça, quanto a banalidade da vida de ser e estar em um lugar ou condição. Não é atoa que a questão do olhar é tratada em diversas partes do livro como um convite a ver o que está posto e a partir da visualização iniciar um processo de conscientização/ação perante os diversos tipos de violências que assolam as relações e a sociedade.


Nos últimos tempos na favela, os tiroteios aconteciam com frequência e a qualquer hora. Os componentes dos grupos rivais brigavam para garantir seus espaços e freguesias. Havia ainda o confronto constante com os policiais que invadiam a área. O irmão de Zaíta liderava o grupo mais novo, entretanto, o mais armado. A área perto de sua casa ele queria só para si. O barulho seco de balas se misturava à algazarra infantil. As crianças obedeciam à recomendação de não brincarem longe de casa, mas as vezes se distraíam. E, então, não experimentavam somente as balas adocicadas, suaves, que derretiam na boca, mas ainda aquelas que lhes dissolviam a vida. 
O livro trás também muitas narrativas onde as mães são vistas para além dos clichês da maternidade. Ser mãe aqui é colocado em seu caráter de provedora da vida, como também da formação e da sobrevivência em uma sociedade que extermina. Ser uma mãe preta de favela, de periferia, é ser uma mãe em alerta. A introdução do livro já nos prepara para o que está por vir e nos interroga ao dizer que:

 A mulher negra tem muitas formas de estar no mundo (todos têm). Mas um contexto desfavorável, um cenário de discriminações, as estatísticas que demonstram pobreza, baixa escolaridade, subempregos, violações de direitos humanos, traduzem histórias de dor. Quem não vê?
"Olhos D'água" fala muito de perto com a negritude e convida a todos para pensarem sobre o contexto social em que vivemos. Reconhecer os dilemas de ser negro em um país onde o racismo é estrutural é um passo muito importante, mas o mais difícil é o reconhecimento dos privilégios e o medo de perder o status social que a desigualdade propicia. O livro apresenta muitas dores "e quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um olho chora, o outro espia o tempo procurando a solução."