Uma vida pequena da Hanya Yanagihara (Editora Record, 2024) finalista do Man Booker Prize e do National Book Award, além de candidato ao Pulitzer é um livro que divide opiniões e o motivo é bem compreensível. As questões sobre violência e saúde mental são tratadas de forma que podem soar como perturbadoras e traumatizantes. Na obra, acompanhamos a vida de quatro amigos que se conhecem na universidade e que vão construir uma relação que atravessará décadas. Willem, JB, Malcolm e Jude tem personalidades completamente diferentes, mas existem alguns fios que os ligam de forma intensa.


Um deles é uma quase materialização do amor incondicional. Outro é que são apoiadores e confidentes no que se refere às suas ambições profissionais e de vida. Paralelo a isso, existe um outro fio que os liga – e também a toda narrativa - que é a personalidade misteriosa de Jude St. Francis. Dos quatro, Jude é o amigo que menos se deixa conhecer e todos sabem que ele guarda para si uma dor tão grande que o impede de viver plenamente. Jude é um homem que vive com um trauma.

Podemos dizer que “Uma vida pequena” é também um romance de formação, pois vemos o amadurecimento dos quatro personagens desde a tenra idade. A história começa quando eles estão ali, pela faixa dos vinte anos, se descobrindo pelas ruas de Nova York, mas a narrativa viaja pelo tempo e aos poucos vai dando pistas sobre o passado de cada um deles, principalmente sobre o passado triste de Jude.

Mas estavam na era da realização, em que aceitar algo que não fosse sua primeira opção de vida parecia fraqueza, algo desprezível. Em algum ponto, aceitar o que parecia ser seu destino deixara de ser uma atitude digna e passara a ser sinal de covardia. Havia momentos em que a pressão para alcançar a felicidade era quase opressiva, como se a felicidade fosse algo que todos deviam e podiam conquistar, e que qualquer tipo de concessão na busca por ela fosse, de algum modo, culpa sua.
Nos primeiros capítulos, parece que estamos diante de um romance comum sobre a banalidade da vida, sobre aquele roteiro que recebemos ao nascer que é o próprio desenrolar da vida e suas obrigações. Mas à medida que a narrativa vai se cercando da timidez, do isolamento e do silêncio de Jude, vamos percebendo que acessaremos uma outra camada que é sobre sobrevivência.

Jude protege o seu passado a todo custo. Por mais que estabeleça uma relação bonita com seus amigos, existe um limite que nunca é ultrapassado. Ninguém sabe muito bem de onde Jude viera, quem eram seus pais ou o que aconteceu em sua infância e até nós mesmos, leitores, conhecemos a história de Jude conforme a vontade do narrador, que obedece a um fluxo de memória que as vezes cessa de forma repentina.

Jude sofre com uma dor nas pernas que se manifesta em momentos esporádicos. Quando suas crises de dor acontecem, é o único momento que demonstra alguma fragilidade e que revela um pouco de si, pois é uma dor que o paralisa. Jude diz aos amigos que essa dor é sequela de um acidente de carro que sofrera e não revela mais do que isso. Com o tempo, seus amigos deixam de fazer perguntas íntimas como uma forma de respeitar o que quer que tenha acontecido a ele, mas o silêncio de Jude acaba por chamar mais atenção do que ele mesmo deseja.

A forma como Hanya descreve o sofrimento de Jude, é um dos pontos que fez com que “Uma vida pequena” fosse tão comentado. O tema da saúde mental já é algo delicado e como a depressão de Jude alcança um nível onde ele começa a ter o hábito de se cortar para esvaziar a mente das aflições, os leitores se veem diante de descrições que são muito gráficas. Existe até uma discussão se a autora não exagerou ao descrever essas cenas, pois poderiam servir de estímulo para pessoas que se encontram na mesma situação.

O nível de tristeza que encontramos na obra, nitidamente é um projeto. Foi algo que a escritora construiu com a intenção de sensibilizar. As violências que Jude passa não são irreais, pois existem pessoas que experimentam ou experimentaram situações até mesmo piores que as descritas no livro. Quando lemos as violências soam, por vezes, como exageradas, e acredito que isso cause um choque.

Ainda que “Uma vida pequena” seja um livro difícil de ler, por conta de todos os gatilhos que pode promover em uma pessoa, creio que aqueles que conseguem ir até a última frase, não são movidos pela violência física e emocional que faz parte da obra, mas sim porque apesar de tudo, se trata de uma história de amor.

Como acompanhamos a jornada de Willem, JB, Malcolm e Jude ao longo de muitas décadas, acabamos estabelecendo uma aproximação com aqueles personagens. Passamos a entender melhor seus dilemas, suas dores e principalmente que eles se amam.

É muito bonita a forma como Hanya Yanagihara relata o amor e a amizade. Jude St. Francis é uma figura que serve quase como uma representação da dor, mas também como um exemplo da importância do afeto. Mesmo nos momentos em que está mais cego para o amor que seus amigos o dedicam, ele nunca é abandonado e vale ressaltar aqui, o amor e a proteção com que ele é tratado pelo Andy, médico que cuida dele durante toda a vida, e por Willem, personagem pelo qual o amor se apresenta em muitos níveis.

Nos últimos tempos, vinha pensando se a codependência seria assim, algo tão ruim. Sentia prazer em estar na presença dos amigos e aquilo não fazia mal a ninguém, então quem se importava se ele era codependente ou não? E, de qualquer forma, como uma amizade poderia ser mais codependente que um relacionamento a dois? Por que seria algo admirável quando você tinha vinte e sete anos, mas esquisito quando se tinha trinta e sete? Por que uma amizade não poderia ser tão boa quanto um namoro? Por que não poderia ser até melhor? Tratava-se de duas pessoas que permaneciam juntas, dia após dia, unidas não por sexo, atração física, dinheiro, filhos ou bens, mas apenas pela concordância em seguir em frente, numa dedicação mútua a uma união que não podia ser sistematizada.
No fim “Uma vida pequena” consegue a façanha de ser um livro que eu gostei, mas que não indicaria para qualquer pessoa. É um livro que mesmo quando indicado, isso precisa ser feito com algumas ressalvas. A partir da decisão de embarcar na leitura, é preciso estar preparado para imersão em uma obra que não tem qualquer intenção de nos poupar da violência física e psicológica, mas é também um belo exemplo de como uma salvação possível só pode existir no coletivo. “Uma vida pequena” é um livro sobre amor.