Um homem só do Christopher Isherwood, traduzido pela Débora Landsberg e com ótimo prefácio do João Silvério Trevisan (Companhia das Letras, 2021) é um livro que foi publicado pela primeira vez em 1964 e surpreende pelo quanto soa atual. A história acompanha um dia na vida de George, um professor de inglês de meia idade que está em processo de luto após perder seu marido em um acidente de carro. Além de tratar do tema da homoafetividade, a obra adentra discussões importantes sobre a solidão do homem gay e o envelhecimento.


Se ainda hoje, as vivências homossexuais são negligenciadas ou tratadas através de estereótipos, é difícil não parar para imaginar os estranhamentos que “Um homem só” deve ter causado na década de sessenta. É um livro que ao mesmo tempo consegue ser cru e lírico e não exita em mostrar as diversas formas que o preconceito pode impactar a vida de um homem. George, que é visto por todos como um homem muito reservado, na verdade é um homem que precisou se fechar para fugir da violência. A homofobia tirou de George até mesmo o direito ao luto. Ele, enquanto pessoa mais importante da vida de Jim não pôde se despedir.

A narrativa de Christopher Isherwood é genial. O autor escolhe partir de algo aparentemente simples, que é a descrição do cotidiano, mas ao escolher narrar um dia aleatório, consegue demonstrar o peso da solidão do personagem através da rotina e dos detalhes, o que torna o lado opressivo da solidão ainda maior. O livro inicia com o despertar de George pela manhã, já dando o tom dos passos que iremos acompanhar em diante. Passamos uma manhã, uma tarde e uma noite ao seu lado.

Acordar começa com dizer estou e agora. Então o que acorda fica um tempo deitado olhando para o teto e para si até se reconhecer como eu, e daí inferir eu estou, eu estou agora. Aqui vem em seguida, e pelo menos é negativamente reconfortante; pois aqui, esta manhã, é onde esperava se encontrar; chama-se casa.
Este é um trecho que, além de tocante, mostra o estado em que George se encontra, onde precisa reestabelecer sua presença no mundo diante da ausência de Jim. O narrador nos coloca dentro da casa e da cabeça de George, e utiliza de subterfúgios para demonstrar o peso de sua solidão. Em certo ponto, por exemplo, George fala de uma cozinha que não parece mais ser a mesma, pois numa cozinha de uma casa onde se vive a dois, precisa existir o esbarro acidental de corpos que se movimentam.

O café da manhã com Jim era um dos melhores momentos do dia. Era então, enquanto tomavam a segunda e a terceira xícaras de café, que tinham as melhores conversas. Falavam de tudo que lhes vinha à cabeça – inclusive da morte, é claro, e se existia vida depois dela, e, nesse caso, o que exatamente sobrevivia. Discutiam até as vantagens e desvantagens relativas de morrer de repente ou de saber que se está prestes a morrer.
Após observarmos a rotina de George em sua casa, começamos a acompanhar seu preparo e o trajeto para a universidade, onde é professor de inglês. Ao mesmo tempo, temos acesso a seus pensamentos sobre tudo que o cerca e nesse ponto o livro ganha mais força ao trabalhar muito bem a subjetividade de um homem gay para além do senso comum e dos estereótipos. 

É muito comum, em algumas produções atuais, seja na literatura, no cinema, nas séries, encontrarmos personagens da comunidade LGBT ocupando dois espaços que podem ser bem limitantes: ou o personagem é uma pessoa que beira a perfeição no que diz respeito a caráter e bondade, como uma forma de enfrentar o preconceito, ou é um personagem que está ali para ser “o representante” da comunidade, como se existisse apenas uma forma de ser queer e assim preencher uma cota de diversidade da produção.

A forma como a personalidade de George é construída é algo a frente do seu tempo, justamente porque sua subjetividade é de um homem gay que não está ali para representar toda a comunidade, mas sim para representar uma unidade de ser, o George com sua história de vida. Vemos um homem cheio de dualidades, que transita entre a persona do professor universitário confiável, respeitável e ilibado, mas que à medida que acessamos seus pensamentos, encontramos uma figura que por vezes está cheia de tristeza, ódio e raiva e que pode externar uma visão de mundo problemática.

Algo interessante na obra é também a forma como Isherwood não negligencia os desejos do personagem. As passagens em que ele visita sua própria sexualidade, seus desejos e até mesmo olha para outros corpos com admiração, nos faz refletir sobre a invisibilidades da sexualidade na maturidade. George é um homem maduro e também um ser desejante.

Estou vivo, ele diz para si mesmo, estou vivo! E a energia vital ondula calorosamente por ele, e o deleite, e o apetite. Que bom estar em um corpo – até mesmo essa carcaça velha decadente – que ainda tem sangue quente e sêmen vivo, medula abundante e carne saudável! Os jovens carrancudos nas esquinas sem dúvida o veem como um velhote ou, na melhor das hipóteses, como um possível ganho. Porém, com a força de seus braços, ombros e quadris jovens ele ainda reivindica um leve parentesco com eles...
Seja em casa, no trânsito enquanto dirige, na universidade enquanto ministra suas aulas e provoca os alunos com questões filosóficas, na interação com sua vizinha mais próxima que finge que o respeita, no jantar com sua amiga, no bar enquanto bebe com um de seus alunos, George está o tempo todo pensando e fazendo digressões sobre a vida.