Vila Vermelho do Jeter Neves (Editora Record, 2013) é um romance que conta a história de Caburé, um homem que após alcançar sucesso na vida, resolve fazer o trajeto de volta a Vila onde viveu. O retorno é físico e também um exercício de memória, onde ele nos apresenta não só a sua própria história, como também de uma Vila que abriga personagens simples e por isso complexos, que são um retrato do Brasil profundo e das questões sociais que moldam a nossa identidade.


Jeter Neves escreve de forma envolvente que mescla ironia, humor e linguagem poética dignas dos grandes nomes clássicos da literatura nacional. A narrativa é precisa, desenhada apenas daquilo que uma boa obra pede e que não se torna uma tarefa fácil quando boa parte do tema de exploração do livro está na rotina de uma vila bucólica, daquelas que os jovens abandonam quando querem “ser alguém na vida”. Segundo nosso narrador Caburé, Vila Vermelho era “um cu de Judas, o último lugar do planeta na mira de um míssil nuclear ou na rota de uma nave marciana”. Jeter consegue transformar a própria Vila Vermelho em um personagem inesquecível.

O “ser alguém na vida” é algo que move a narrativa de Vila Vermelho, pois o autor brinca exatamente com a ideia do que é ser um vencedor ou um perdedor na vida. Para tanto ele faz um passeio pelo nosso imaginário cultural que inicia em meados dos anos 50 até o tempo presente de Caburé. Jeter faz uma crítica a dita cultura do vencedor ao esmiuçar os lugares de onde vieram os nossos exemplos, os grandes heróis de uma geração que ainda precisa lidar com um acesso dificultado à informação.

Quando Caburé volta para Vila Vermelho, por conta de circunstâncias um pouco confusas, ele acaba se reencontrando com seu antigo professor, que agora está acamado, e começa a contar toda sua história de vida. É assim que nós vamos nos tornando íntimos da cidade de Vila Vermelho e de personagens apaixonantes. As trezentos e duas páginas de Vila Vermelho são necessárias para qualquer leitor se proclamar um habitante de Vila Vermelho.

Tié é o meu perdedor favorito, Professor, meu modelo supremo de fracasso. Os ianques têm um nome para isso: loser – perdedor, fracassado, fodido -, aprendi nos filmes deles.
Além de personagens divertidos e bem construídos como os gêmeos Tié e Taú, também desfilam pela história figuras como a cafetina Augustina, a menina Isadora, grande paixão da vida de Caburé, seu Giuseppe um apaixonado por livros, mas que odeia o cerceamento do pensamento gerado pelo currículo das escolas. Mas acredito que o personagem que realmente exerce uma revolução no pensamento de Caburé, e traz um vislumbre da vida para além da Vila, é o marinheiro Mário, que divide com Caburé suas impressões sobre a realidade através de cartões postais de cada lugar que visita.

A cada vinda, ele tinha mais e mais a cara do mundo lá fora. Até o cheiro mudou: de resina de lenha de fogão e de linguiça defumada de gente da Vila, ele ganhou cheiro de loja, pelo menos a imagem olfativa que eu tinha de loja.
A construção de Mário é um dos pontos altos da obra. Ele parte de Vila Vermelho cultuando a cultura americana, colocando o Tio Sam como modelo de desenvolvimento e civilidade, mas conforme vai conhecendo o mundo e tendo noção da dinâmica da exploração e da desigualdade, acaba se tornando uma luneta que mostra um mundo que Caburé tem resistência em enxergar. Em um dos postais enviados, Mário começa a enxergar um outro Brasil com um nível de crítica que até então não existia.

Belém do Pará, 10 de janeiro de 1956.

Caburé: O Amazonas é um mar. A floresta é um labirinto, estrada não existe, só se avança pelos rios. A terra dá de tudo: fruta, erva medicinal, peixe, caça e madeira. Se nosso país tem tanta riqueza, por que o povo vive nessa pindaíba? Riqueza e pobreza são carne e unha, aquela não vive sem esta. Precisamos descobrir o verdadeiro Brasil, marujo. Marinheiro Pompei...
Vila Vermelho é uma obra que pede imersão e ela vem naturalmente, pois somos conduzidos pelo relato sincero e saudoso de Caburé. Diante de seu relato é como se fossemos o silencioso professor que só faz escutar, e o fazemos com prazer. No desfilar de histórias trágicas, engraçadas, revolucionárias, libertadoras e românticas do povo de Vila Vermelho acabamos nos encontrando com nossa própria concepção trágica de heroísmo.