A outra filha da Annie Ernaux (Editora Fósforo, 2023) é uma verdadeira sessão de psicanálise, onde a autora explora o peso e o mistério da ausência de uma irmã que nunca conheceu. Annie descobre por acaso, ao ouvir uma conversa de sua mãe, que teve uma irmã morta pela difteria com apenas 6 anos de idade, falecida na quinta-feira Santa de 1938. Os anos seguintes da família serão de uma negação controlada, onde todos fingem não saber da história da menina morta. Com o decorrer dos anos, Annie vai entendendo que todo o silencio é apenas a forma que seus pais encontraram de lidar com a dor.


É tocante a forma como Annie Ernaux olha para seus pais na obra. Não existe julgamento pela lei do silêncio estabelecida, existe uma filha, a que viveu, tentando dar sentido à própria existência, que também passa pela existência de sua irmã e de seus pais. Ainda que o não dito tenha afetado profundamente a vida de Annie, em certo trecho da obra ela diz que não cabe a ela censurá-los, pois “os pais de uma criança morta não sabem o que a dor deles causa à criança que está viva”.

Com um texto sincero e visceral, ela fala sobre suas angústias e curiosidades em relação à irmã. Quando iniciamos o livro, imaginamos que o título “A outra filha” se trata da irmã morta, mas conforme a escritora devassa seus sentimentos, percebemos que a outra filha se trata da própria Annie, a irmã que veio depois.

Mas você não é minha irmã, você nunca foi minha irmã. Nós não brincamos, não comemos, não dormimos juntas. Eu nunca encostei em você, nunca te abracei. Não sei a cor dos seus olhos. Nunca te vi. Você não tem corpo nem voz, é apenas uma imagem chapada em algumas fotos em preto e branco. Não tenho lembranças suas. Quando nasci, você já tinha morrido havia dois anos e meio. Você é a criança dos céus, a menininha invisível de quem nunca falaram, a ausente de todas as conversas. Você é o segredo.
Com os resquícios deixados por poucas fotografias antigas, relatos tímidos e breves de familiares e objetos que pertenceram à menina, Annie vai construindo uma imagem sobre quem foi sua irmã em sua rápida passagem pela vida. Inevitavelmente a escritora começa a estabelecer comparações que versam sobre sua personalidade e a da irmã, a relação de seus pais com as lembranças e até mesmo o desenhar de um cenário onde a menina estivesse viva.

Como o livro é estruturado como se fosse uma carta para a irmã, Annie aproveita para falar abertamente sobre tudo o que sente e dá notícias de como a vida de seus pais seguiu após a perda. Ela dialoga com a irmã ao mesmo tempo que dialoga consigo. O texto da autora parece um grito em resposta a um pacto de silêncio involuntário firmado com seus pais. Principalmente com sua mãe.

Escrever para você é te falar dela o tempo todo, ela, a detentora da história, a que profere o julgamento, com quem o combate nunca cessou, exceto no fim, quando ela estava tão miserável, tão perdida em seu desatino, que, então, eu não queria que ela morresse.
Além de servir como uma forma de se entender, de comungar com os dilemas de sua família e internalizar a ausência da irmã, escrevendo uma carta, Annie Ernaux reflete sobre seu exercício de escrita e como o ato de escrever é a melhor representação de sua própria existência.